A Rita do André é alguém que ultrapassou a linha que nos separa do nosso mundo dos sonhos; ela vive completamente mergulhada nele e se manifesta fisicamente com esse tecido. Eu não saberia dizer se Rita teria 7, 17, 27, 57 ou 87 anos! Toda aquela jovialidade, que deixa entrever por muito pouco tempo alguma melancolia, é descrita de uma maneira que poderia caber qualquer das idades, do mesmo jeito que a Paris de Rita poderia ser qualquer cidade em que a leitora se sentisse bem. Um canto de acolhimento e aconchego para as dores. Sim, porque é claro que Rita eventualmente se machuca. Mas como ela é basicamente feita de doces e matéria onírica, logo está por aí em suas piruetas, vitoriosa em sua existência quase pueril e mágica. Muito de Rita ou do mundo de Rita é “possível” a partir da escrita corrida, que acelera ou desacelera rumo a um quase surrealismo em tons pastéis do André. Tons pastéis com gotas de sangue. Se você tiver curiosidade de procurar as fotos que ele tira, vai concordar que Rita aparece de relance e desfocada em muitas daquelas fotos. Aquelas imagens das construções, dos pés das bailarinas, das pessoas caminhando, sempre em preto e branco (ou quase sempre) - inclusive tem fotos em Paris. E do mesmo modo como acontece com a sensação de sobreposição, e de recorte e colagem, ou montagens nas obras visuais, para causar essa sensação surrealismo no intencional ou não (estou interpretando por minha conta), também as obras escritas, que o diga Coisas de Amor Largadas na Noite (2008) e Pequeno Guia das Mínimas Certezas (2012).
Mas o que eu gosto de imaginar encontro entre a Rita Hayworth e a Maria de Deus. Seria curiosíssimo, porque a Maria de Deus ela não tem nada a ver com a Rita e ao mesmo tempo é como se ela fosse uma existência possível da Rita. Com todas as perdas que Maria de Deus sofreu, há uma dúvida se ela terminou por se chamar Maria do Cão ou só Maria, mas aí você vai ter que ler o livro para saber o que aconteceu. Do meio para o fim do texto, nós somos apresentadas a um outro tipo de atmosfera, uma mais próxima do sertão ou da Caatinga ou da nossa vivência sob o sol ardente aqui no Nordeste, aqui no Piauí, talvez mais para o interior, talvez em outro tempo, ou talvez não. E algumas vidas começam a surgir e assim, mas elas não são tornadas muito evidentes, como se ainda fizessem parte daqueles sonhos que deram origem a Rita. Mas talvez não sejam realmente sonhos, mas memórias tão fragmentadas quanto aqueles sonhos. Enredando sentimentos e fatos e pessoas e desejos e a vida vivida de uma forma intensa e sem um ponto final. Eu lembrei também do modo como Macedônio escreve, o escritor argentino, que também inspirou Borges- naquele livro sobre a morte. Talvez um tanto da escrita de papel da Matilde Campilho - que adquire outro ritmo quando ela declama em vídeos que para nossa tristeza tirou do Youtube. Com certeza ela está lá, também. Talvez o Saramago, talvez o Valter Hugo Mãe. Mas com certeza é o André ali. Eu estou compartilhando algumas referências que eu consigo intuir ou que eu sei por privilégio de conversar com o escritor, de vez em quando, não quero parecer Mãe Diná, apesar de sim saber ler tarô e outras coisas da alçada do mágico.
Um dos motivos de eu não ter classificado como um sonho, mas como memórias-recortadas-e-coladas-a-esmo a segunda parte do livro foi porque algumas das coisas escritas ali me surpreenderam pela semelhança com algumas vivências do passado dos meus avós, memória dos meus pais. Algumas coisas trágicas ou coisas que não se confessam, a não ser na literatura, mesmo que seja uma conversa com divino.
Eu demorei para escrever essa resenha porque alguns tipos de literatura parece que sentam num lugar muito particular da minha vivência do sensível e daí eu demoro a conseguir organizar com alguma objetividade os sentimentos que me provocam. E eu ando tendo sorte esse ano. Já me aconteceram dois ou três livros e de pessoas próximas- gosto de pensar assim. Rita Hayworth foi a Paris e outras histórias foi uma delas.
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