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sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Minha piração com Rita Hayworth foi a Paris e outras histórias [ou talvez pedaços]

capa do livro- uma cor crua com uma ilustração de fios contínuos em preto formando uma mulher, do ombro para a cabeça

 

A Rita do André é alguém que ultrapassou a linha que nos separa do nosso mundo dos sonhos; ela vive completamente mergulhada nele e se manifesta fisicamente com esse tecido. Eu não saberia dizer se Rita teria 7, 17, 27, 57 ou 87 anos! Toda aquela jovialidade, que deixa entrever por muito pouco tempo alguma melancolia, é descrita de uma maneira que poderia caber qualquer das idades, do mesmo jeito que a Paris de Rita poderia ser qualquer cidade em que a leitora se sentisse bem. Um canto de acolhimento e aconchego para as dores. Sim, porque é claro que Rita eventualmente se machuca. Mas como ela é basicamente feita de doces e matéria oníricalogo está por aí em suas piruetas, vitoriosa em sua existência quase pueril e mágica. Muito de Rita ou do mundo de Rita é possível a partir da escrita corrida, que acelera ou desacelera rumo a um quase surrealismo em tons pastéis do André. Tons pastéis com gotas de sangue. Se você tiver curiosidade de procurar as fotos que ele tira, vai concordar que Rita aparece de relance e desfocada em muitas daquelas fotos. Aquelas imagens das construçõesdos pés das bailarinasdas pessoas caminhando, sempre em preto e branco (ou quase sempre) inclusive tem fotos em Paris. E do mesmo modo como acontece com a sensação de sobreposição, e de recorte e colagem, ou montagens nas obras visuaispara causar essa sensação surrealismo no intencional ou não (estou interpretando por minha conta), também as obras escritas, que o diga Coisas de Amor Largadas na Noite (2008) e Pequeno Guia das Mínimas Certezas (2012)


Mas o que eu gosto de imaginar encontro entre a Rita Hayworth e a Maria de Deus. Seria curiosíssimo, porque a Maria de Deus ela não tem nada a ver com a Rita e ao mesmo tempo é como se ela fosse uma existência possível da Rita. Com todas as perdas que Maria de Deus sofreu, há uma dúvida se ela terminou por se chamar Maria do Cão ou só Maria, mas aí você vai ter que ler o livro para saber o que aconteceu. Do meio para o fim do textonós somos apresentadas a um outro tipo de atmosfera, uma mais próxima do sertão ou da Caatinga ou da nossa vivência sob o sol ardente aqui no Nordeste, aqui no Piauítalvez mais para o interior, talvez em outro tempo, ou talvez não. E algumas vidas começam a surgir e assimmas elas não são tornadamuito evidentes, como se ainda fizessem parte daqueles sonhos que deram origem RitaMas talvez não sejam realmente sonhos, mas memórias tão fragmentadas quanto aqueles sonhos. Enredando sentimentos e fatos e pessoas e desejos e a vida vivida de uma forma intensa e sem um ponto final. Eu lembrei também do modo como Macedôniescreveo escritor argentino, que também inspirou Borges- naquele livro sobre a morte. Talvez um tanto da escrita de papel da Matilde Campilho - que adquire outro ritmo quando ela declama em vídeos que para nossa tristeza tirou do Youtube. Com certeza ela está lá, também. Talvez o Saramago, talvez o Valter Hugo Mãe. Mas com certeza é o André ali. Eu estou compartilhando algumas referências que eu consigo intuir ou que eu sei por privilégio de conversar com o escritor, de vez em quando, não quero parecer Mãe Diná, apesar de sim saber ler tarô e outras coisas da alçada do mágico. 


Um dos motivos de eu não ter classificado como um sonhomas como memórias-recortadas-e-coladas-a-esmo a segunda parte do livro foi porque algumas das coisas escritas ali me surpreenderam pela semelhança com algumas vivências do passado dos meus avós, memória dos meus pais. Algumas coisas trágicas ou coisas que não se confessam, a não ser na literatura, mesmo que seja uma conversa com divino. 


Eu demorei para escrever essa resenha porque alguns tipos de literatura parece que sentam num lugar muito particular da minha vivência do sensível e daí eu demoro a conseguir organizar com algumobjetividade os sentimentos que me provocam. E eu ando tendo sorte esse ano. Já me aconteceram dois ou três livros e de pessoas próximas- gosto de pensar assim. Rita Hayworth foi a Paris e outras histórias foi uma delas.


➡️ Onde encontrar? Com o próprio autor ou na Amazon.

quarta-feira, 28 de junho de 2017

We've changed, honey boo & Fevereiro: Matilde Campilho

[Quando escrevi essa postagem, os vídeos da Matilde ainda estavam disponíveis. Resolvi deixar esse resíduo como documento da beleza que havia aqui. 04/08/2020]

Dedico ao amor que vai & ao amor que vem: dois vídeos poemas da portuguesa Matilde Campilho (declamados por ela), seguidos de seus versos.

 
We've changed, honey boo

Como estava previsto nos registos, agora você é muito mais dada à astrologia e eu ao estudo dos cafés servidos nas beiras de estrada. A polícia não nos procura mais. O tribunal dos seiscentos dias resolveu  que a misturada que fizemos com os nomes dos pássaros já não é uma questão para a segurança interna. Mensagens encriptadas na bula dos medicamentos, aromas desleais enfiados à socapa nos pacotinhos de sorvete, assobio nos ouvidos do sinaleiro- tudo parou. Quase nos prendiam por tráfico de influências, mas agora as urbanizações andam muito sossegadas. Daniel, entretanto, está morto. Walter emudeceu no caminho da composição e os jornais usam datas estranhas em seus cabeçalhos. Junto àquelas figuras de aviões e homens fardados aparece o nome do décimo sexto mês. Mudou tudo, honey, e a distância entre nós não foi certamente a causa para toda a explosão. Existem mais de 39 marcas diferentes de café, isso sem contar as misturas solúveis. As professoras de Westbridge preferem-no forte. Os astronautas fora de missão bebem cafezinho claro, não vá acontecer uma emergência qualquer - quem entende de gravidade está muito consciente da ligação entre leveza e sono. Antes do horóscopo e dos mapas você prestava alguma atenção ao despertar do soldado. Acho que tinha qualquer coisa a ver com luz ou com melancolia, tinha certamente tudo a ver com crença. Quero dizer, tu trabalhavas na tipografia e eu ainda guardo a revista onde plantaste o retrato do barcalhão fazendo a vênia à alvorada. Falávamos muito de príncipes nessa época, e os príncipes pertencem às manhãs. Cada motel serve um café diferente, raios. Distingo os ares da China do vento do Cazaquistão num minuto. We've change, honey boo, mas os climogramas permanecem.

Fevereiro

Escute só, isto é muito sério.
Anda, escuta que isso é sério!
O mundo está tremendamente esquisito. Há dez anos atrás o Leon me disse que existe uma rachadura em tudo e que é assim que a luz entra, não sei se entendi. Você percebe alguma coisa da mistura entre falhas e iluminação?
Aliás, me diga, você percebe alguma coisa de carpintaria? Você sabe por que meteram um boi naquele estábulo ao invés de um pequeno rinoceronte? Deve ter tido alguma coisa a ver com a geografia. Ou com os felizmente insolussionáveis mistérios que só podem vir do misticismo asiático. Um boi é um bicho tão… inexplicável. Ainda bem.
O amor é um animal tão mutante, com tantas divisões possíveis.
Lembra daqueles termômetros que usávamos na boca quando éramos pequenininhos? Lembra da queda deles no chão?
Então, acho que o amor quando aparece é em tudo semelhante à forma física do mercúrio no mundo. Quando o vidro do termômetro se quebra, o elemento químico se espalha e então ele fica se dividindo pelos salões de todas as festas. Mercúrio se multiplicando. Acho que deve ser isso uma das cinco mil explicações possíveis para o amor.
Ah é! Eu gosto de você. A luz entrou torta por nós a dentro, mas, olha, eu gosto de você! A luz do verão passado quebrou o vidro da melancolia e agora ela fica se expandindo pelas ruas todas. Desde aquele outro lado do Sol até esse tremendo agora.
Hoje ainda faz bastante frio. As cinzas ainda não aterraram sobre as cabeças disfarçadas, tem gente batucando suor e cerveja pelas ruas de nossa cidade sul. Na cidade norte, há ondas de sete metros tentando acertar no terceiro olho dos rapazinhos disfarçados de cowboys.
[suspiro]
O mestre ainda não veio decretar o começo da abstenção e, olha, a luz ainda está conosco. Sim, o mundo está absurdamente esquisito. Já ninguém confia nas imposições dos prefeitos, a esta hora na terra é um tanto carnaval, um tanto conspiração, um tanto medo. Metade fé, metade folia, metade desespero. E, provavelmente, a esta hora, uma metade do mundo está vencendo e a outra metade dormindo, há ainda outra metade limpando as armas, outra limpando o pó das flores. Mas,  por causa do que me ensinou o místico, eu acredito que exista, agora, alguém profundamente acordado. Alguém que esteja vivendo entre o intervalo tênue entre o sonho e a agilidade. Suponho que ele saiba perfeitamente que este começo de século será nosso batismo do voô para nossa persistência no amor.João molhou a testa de Manuel. Os gritos das ruas molham as testas de nossos corações.
De que lado você está, eu não me importo! De que garfo você come, de que copo você bebe, que posto certo você escolhe, qual é seu orixá, seu partido, sua altura, de qual de suas cicatrizes cuida, que pássaro você prefere, quem é seu pai, qual é seu samba, Pinot noir ou Chardonay, que protetor você usa,  qual é sua pele, seu perfume, qual político, quantos amores você sonha, em que Fernando, em que Ofélia, em que cinema, em que bandeira, em que cabelo você mora, qual dos túneis de Copacabana. Rezo para seus santos quando atravessar.
É… é impossível viver no país de Deus. Isso eu te dou de barato. Mas, atravessar o gramado de Deus em bicicleta, isso não é impossível, não.
Escuta, isso é sério!
Andamos crescendo juntos, distraidamente. As árvores crescem conosco. Nossa pele se estende, nosso entendimento, teso, também. O século cresce conosco. O amor pelas ventas da cara do mundo, também.
Quanto a um pra um entre nós dois, isso logo se vê. Não sei nada sobre a paixão, suspeito que você também não. Mas, começo a entender que o compasso da fé está mudando a passos largos. Dois pra lá e dois pra cá.
Portanto, escute.
Isto é muito serio!
Isto é uma proposta aos trinta anos.
Agora que o mercúrio assumiu sua posição certa, vem comigo achar o meu trono mágico entre a folhagem. E, no caminho até lá, vem dançar comigo, vem!

28/06/2017

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