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sábado, 30 de janeiro de 2021

N. K. Jemisin: sobre agradecer e continuar

 

N. K. Jemisin de blusa amarela, em uma rua (Crédito da imagem: John D. & Catherine T. MacArthur Foundation)

Terminei hoje a trilogia Terra Partida da grandiosíssima, brilhante e importante N.K. Jemisen. Trata-se de ficção científica de alto nível e ao mesmo tempo é um tratado de tantos temas importantes e delicados para o hoje e para o amanhã. Mas aqui agora eu trago os Agradecimentos do terceiro e último livro "O céu de pedra" e o discurso que a autora fez quando finalmente foi receber o prêmio Hugo (ela ganhou 3, um para cada volume da trilogia, mas só apareceu no terceiro- o que eu compreendo). O Hugo é a principal premiação mundial nos gêneros Fantasia e Ficção Científica e vergonhosamente ela foi a primeira pessoa negra a ganhá-lo (com recordes). Eu chorei litros com o final da história e para completar, chorei mais com esses dois textos curtos que trouxe. Eis as palavras dela:

 

Agradecimentos

 

Ufa. Isso levou um tempo, não levou? O céu de pedra marca mais do que apenas o fim de mais uma trilogia para mim. Por vários motivos, o período durante o qual escrevi este livro acabou sendo o momento de mudanças tremendas na minha vida. Entre outras coisas, saí do meu emprego formal e me tornei escritora em tempo integral em julho de 2016. Bem, eu gostava do meu emprego formal, no qual eu podia ajudar as pessoas a fazerem escolhas saudáveis – ou, pelo menos, sobreviver por tempo suficiente para fazer isso – em um dos pontos de transição mais cruciais da vida adulta. Ainda ajudo as pessoas, eu acho, como escritora, ou pelo menos essa é a impressão que tenho daqueles de vocês que me mandaram cartas ou mensagens online me contando o quanto a minha produção literária os tocou. Mas, no meu emprego diurno, o trabalho era mais direto, assim como suas agonias e recompensas. Sinto muita falta dele. Ah, não me entendam mal: essa era uma transição de vida boa e necessária a fazer. Minha carreira como escritora explodiu da melhor forma e, afinal, eu amo ser escritora também. Mas é da minha natureza refletir em tempos de mudança e reconhecer tanto o que foi perdido como o que foi ganho. Essa mudança foi facilitada por uma campanha de Patreon (financiamento coletivo para artistas) que eu comecei em 2016. E, tocando em uma notícia triste... esse financiamento via Patreon também foi o que me permitiu me concentrar totalmente em minha mãe durante os últimos dias de sua vida, no final de 2016 e início de 2017. Eu não falo com frequência de coisas pessoais em público, mas talvez vocês consigam ver que a trilogia A terra partida é minha tentativa de lidar com a maternidade, entre outras coisas. Os últimos anos de minha mãe foram difíceis. Acho (tantos dos alicerces dos meus romances se tornam claros em retrospecto) que, de algum modo, eu suspeitava que a morte dela estava chegando; talvez eu estivesse tentando me preparar. Ainda assim, não estava pronta quando aconteceu... mas ninguém jamais está. Então sou grata a todos: à minha família, aos meus amigos, à minha agente, aos meus patrocinadores, ao pessoal da Orbit, inclusive a meu novo editor, a meus antigos colegas de trabalho, à equipe da casa de repouso, a todos, que me ajudaram a passar por isso. E foi por isso que trabalhei tanto para que O céu de pedra saísse no prazo, apesar das viagens e das hospitalizações e do estresse e de todas as mil indignidades burocráticas da vida após a morte de um dos pais. Eu definitivamente não estava no meu melhor momento enquanto trabalhava neste livro, mas posso dizer uma coisa: onde há dor no livro, é dor de verdade; onde há raiva, é raiva de verdade; onde há amor, é amor de verdade. Vocês vêm fazendo esta viagem comigo, e sempre terão a melhor parte do que eu tenho. É o que minha mãe ia querer.

 

 

 

 

DISCURSO DE N.K: JEMISIN CERIMÔNIA DE PREMIAÇÃO DO HUGO WORLD DE 2018

 

Eu comecei a cultivar toda uma superstição de que só ganho prêmios quando não apareço [na cerimônia]. [...] Este tem sido um ano difícil, não é? Alguns anos difíceis, um século difícil. Para alguns de nós, as coisas sempre foram difíceis e escrevi a trilogia A terra partida para falar dessa luta e do que é preciso para viver, quem dirá prosperar, em um mundo que parece determinado a quebrar você. Um mundo de pessoas que constantemente questionam sua competência, sua relevância, sua própria existência. Eu recebo muitas perguntas sobre de onde vêm os temas da trilogia A terra partida. Acho que é bem óbvio que tirei inspiração da história humana de opressão estrutural, assim como meus sentimentos sobre este momento na história americana. O que talvez seja menos óbvio é o quanto da história deriva dos meus sentimentos sobre ficção científica e fantasia. Por outro lado, ficção científica e fantasia são microcosmos do mundo mais amplo, de modo algum excluídos da mesquinharia e do preconceito do mundo. Mas outra coisa que eu tento abordar com a trilogia A terra partida é que a vida num mundo difícil não é nunca apenas uma luta. A vida é família, de sangue e encontrada; a vida são aqueles aliados que se provam dignos por ações e não apenas discursos; a vida significa celebrar cada vitória, não importa quão pequena. Então, enquanto estou aqui diante de vocês, sobestas luzes, eu quero que vocês se lembrem que 2018 é também um bom ano. Este é um ano em que recordes foram estabelecidos, um ano em que mesmo os privilegiados mais cegos entre nós foram forçados a reconhecer que o mundo está

quebrado e precisa de conserto, e isso é uma coisa boa, porque reconhecer o problema é o primeiro passo para consertá-lo. Eu olho para a ficção científica e fantasia como o ímpeto de ambições do zeitgeist. Nós, criadores, somos os engenheiros da possibilidade. E à medida que esse gênero finalmente, embora relutantemente, reconhece que os sonhos dos marginalizados importam e que todos nós temos um futuro, o mundo também fará isso. Em breve, espero. Muito em breve. E sim, haverá contraposiçõs. Eu sei que estou aqui neste palco aceitando este prêmio por basicamente o mesmo motivo que todos os vencedores de melhor romance anteriores: porque eu trabalhei para caramba. Eu verti minha dor no papel quando não podia pagar por terapia, eu estudei uma ampla gama de obras de literatura e me aprofundei nelas para aprender o que podia e refinar minha voz; escrevi um milhão de palavras de merda e provavelmente um milhão de palavras de meh. E, além disso, eu sorri e acenei enquanto editores de revistas bem-intencionados me aconselharam a moderar minhas alegorias e minha raiva. Não fiz isso. Eu cerrei os dentes enquanto um escritor profissional estabelecido me fez uma diatribe de 10 minutos, basicamente como uma representante de todas as pessoas negras, por mencionar a falta de representatividade nas ciências. Eu continuei escrevendo embora meu primeiro romance, The Killing Moon, tenha sido inicialmente rejeitado sob a suposição de que apenas pessoas negras iriam querer ler o trabalho de uma escritora negra. Eu ergui minha voz para rebater outros convidados em mesas que tentaram falar acima de mim sobre minha própria vida. Eu lutei contra mim mesma e a vozinha dentro de mim que constantemente, e ainda, sussurra que eu devia manter a cabeça abaixada e calar a boca e deixar os escritores de verdade falarem. Mas este é o ano em que eu posso sorrir para todos os contraditares; cada um deles, medíocres, inseguros, aspirantes, que abriram a boca para sugerir que eu não pertenço a este palco, que pessoas como eu não podem merecer tal honra, e que quando eles ganham é meritocracia, mas quando nós ganhamos é por política de minorias. Eu posso sorrir para essas pessoas e erguer um dedo enorme, brilhante, em forma de foguete na direção deles[1].Então, quantos de vocês viram Pantera Negra? Provavelmente, minha parte preferida é a canção tema de Kendrick Lamar, “All the Stars”. O refrão diz: “Esta pode será noite em que meus sonhos vão me dizer que as estrelas estão mais próximas”. Que 2018 seja o ano em que as estrelas ficaram mais próximas para todos nós. As estrelas são nossas. Obrigada. N.K. JEMISIN

 

 

[1] O troféu do prêmio Hugo tem o formato de um foguete

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Entrevista: Alcione Correa

Hoje meu entrevistado é o extremamente gentil professor Alcione, que dá aula no curso de Letras, da UFPI, dentre outras coisas. Encontramo-nos por meio do Twitter uns anos atrás e agora o convido a esta conversa a respeito do pensamento e literatura negra, que são suas especialidades, e sobre os cotidianos de um corpo negro que sente, observa e fala a respeito disto e de outras coisas mais. Você pode ler mais entrevistas clicando na tag entrevistas ou aqui:


1. Alcione, obrigada por aceitar participar do blog do passarinho, esse diário que, às vezes, é construído por muitas mãos. Vamos lá! Quando você veio morar no Piauí, o que você esperava encontrar aqui? O que de fato achou?

Em primeiro lugar, bom dia e muitíssimo obrigado pelo convite, pela acolhida e pelas futuras leituras, a estabelecer novas interlocuções que contribuam a nos fazer avançar um pouco, em meio a contextos macro- tão desanimadores. Chegamos a um ponto no qual estar-no-mundo, apesar de tudo, se tornou, também, um ato político. Obrigado a ti e a todas(os) assinantes por cultivar, juntas(os),  este espaço de cuidado.

Mês passado, no dia primeiro, se completaram doze anos desta parcela de vida em Teresina; como se, vivendo em um país distinto do Brasil, eu viesse para seguir existindo em outro país igualmente distinto do Brasil; com exceção de um dinheiro parecido, todo resto absolutamente novo, exigindo aprendizados todos os dias. Ainda não aprendi a estar-no-mundo desde nosso lugar-Teresina, a socializar de maneira satisfatória, mas sigo insistindo. À época do mestrado na UFRGS, se tratava de uma escolha, de minha parte, viver em Teresina desde esta condição de docente concursado da UFPI; esforços de muitas pessoas a me demover de uma ideia que, em seu entender, não fazia o menor sentido; muito racismo travestido de preocupação (de um tipo similar ao que tu experiencias e compartilhas conosco desde tua experiência vivida em Florianópolis, outro lugar nem um pouco amigável a sujeitas(os) racializadas(os)); após, o concurso; iniciei a viagem a Teresina ao meio-dia e trinta, 22 de junho de 2008, oito graus, sete dias de uma viagem sem pressa com o intuito de, precisamente, marcar esta trajetória de vida em duas metades, antes e durante Teresina.

Hoje, apresentadas oportunidades similares naquele mesmo momento de vida, escolheria Teresina, novamente, escolheria a compra de discos e de uma vitrola no Troca, escolheria retecer a relação com a universidade e com algo maior que ela através de sua Rádio, escolheria o café da Serena, escolheria levar manga fiapo para casa, escolheria a mesma bicicleta lilás e a mesma ciclista feminista onde sempre a consertam, escolheria iniciar aqui uma relação ad infinitum com a terapia. 

De maneira a seguir na resposta, me soa ímpar permanEcer, tantos anos depois, no  mesmo estado de estranhamento de “Sampa” admitindo que, quando cheguei por aqui, eu nada entendi. Nos primeiros anos, havia uma pergunta racializada, em uma formulação particularmente teresinense: “Tu não é daqui, né não?”. Uma estrutura peculiar de negar a diferença, suprimindo-a três vezes, sem importar o tempo em que se está aqui; com o tempo, praticando uma resposta do tipo “Sim, trabalhando aqui, pagando IPTU aqui, jogando a pelada com o grupo de colegas daqui, portanto, sim, creio que sou daqui; se não é para ser, para que vir?”, a pergunta foi sumindo à medida que o devir-negro vinha chegando. Hoje, sem a certeza de por quanto tempo mais perceberei o mundo desde o lugar-Teresina, tenho vivido a hipótese de que, se o lugar racializado atribuído ao corpo-negro me imputa um sentimento de inadequação, de estrangeiria em qualquer lugar, isso poderia implicar (em uma perspectiva do “copo meio cheio”) a possibilidade de, 

visto que uma existência negra oferece problemas e riscos em qualquer lugar, em distintos momentos de nossa trajetória nesta existência, 

existi-la em distintos lugares.

Hoje, os modos de estabelecer relações de café, de discos e livros, de amor, de trabalho, são modos em Teresina. Amanhã, ainda não posso responder como será nossa atuação, somente nos repassam o script quase na hora das cenas; nunca sabemos quando nossa personagem deixará a trama, quando cancelarão a nova temporada ou quando seremos designadas(os) a outro espetáculo.

 

2. Os seus projetos acadêmicos, dão uma boa pista de como você vivencia com seriedade a valorização da cultura produzida na América Negra. Você já parou para pensar na importância desses projetos em um estado negro que muitas vezes ignora essa condição, que ainda é fortemente atrelada também à pobreza?

Assim como anteriormente, muito obrigado por tua pergunta, na dimensão política que ela nos apresenta. Sobre a ideia de pesquisar literaturas afroamericanas a partir de um marco de pensamento  negro americano, frequentemente em uma perspectiva comparativa (basicamente, o trabalho a que nos dedicamos no Projeto de Pesquisa Teseu, o labirinto e seu nome), ainda que, em sua base, se trate de uma ideia assentada no compromisso político de um lugar negro – um lugar de produção, discussão e difusão de conhecimentos negros; investigado desde um lugar negro de enunciação científica – vale a pena assinalar que tal lugar não se mostra evidente, dado, mas necessita de construção, de cultivo, de mobilização constantes. Não se trataria de um ser suficiente pelo fenótipo mas, antes, de um devir marcado pela violência dos processos de racialização, do que nos desumaniza todos os dias por meio desta racialização.

A despeito do crescimento, quantitativo e qualitativo, de pesquisa acadêmica em pensamento negro, a partir do advento das ações afirmativas e de suas consequências, a interdição de corpas(os) negras(os) nos espaços de produção, discussão e difusão de conhecimento, em um modelo propriamente acadêmico, se mostra uma constante. Frequentemente, os signos negro e conhecimento seguem incompatíveis em nossos modos de conceber o espaço acadêmico coabitando, não obstante, com as lutas e avanços, na forma de políticas públicas de combate ao racismo a ser disputadas, precisamente, “em um estado negro que muitas vezes ignora essa condição”: a condição de humanidade de sujeitas(os) negras(os) enquanto vidas que importam. Talvez em tal cenário, a mera presença neste espaço interditado demarque, por si, a reivindicação de um lugar político; a estratégia de conhecimento coletivo, mediante aquilombamento no Núcleo Ifaradá (o NEAB da UFPI), como parte fundamental a nossos devires e à ciência proposta a partir deles, constrói este lugar político em nosso cotidiano de trabalho.

A valorização da cultura produzida na América Negra, no âmbito do Projeto Teseu, se efetua mediante dimensões suplementares à análise comparativa entre literaturas afroamericanas tomando os sentidos do prefixo afro- como se fossem suficientes a uma suposta definição essencial de um ser negro: as Américas Negras ou, em uma ideia mais adequada aprendida desde Lélia González, as Améfricas, se manifestam em suas particularidades e naquilo que podemos aprender com elas (onde somos nós que, na atividade de pesquisa, comparamos aquilo que aprendemos e aquilo que nos descentra no contato com distintas literaturas); as Améfricas se manifestam em nossa frequentação e aprendizagem de pensamento negro em-diáspora, neste esforço de interpretar, compartilhar e referenciar a este patrimônio, o mais efetivamente possível, em nosso fazer científico; as Améfricas se desenham nas redes intelectuais que construímos com os recursos disponíveis, gente preta produzindo, discutindo e difundindo conhecimento sobre, para e, frequentemente, contra um estado negro que, muitas vezes, ignora essa condição.

 

3. Você transita com facilidade por muitas mídias, além de outros projetos de extensão, tem o Clube do Vinil, o podcast Anansi e não são tanto professores de ensino superior que abraçaram outros territórios para se comunicar com a comunidade acadêmica e não acadêmica, além disso, vive-se um grande levante nas lutas pelos direitos das minorias, usando redes sociais como ferramenta possível e até as ruas, mesmo no meio da pandemia (e também por isso): é possível dizer que você está no lugar certo, na hora certa? Percebe um tipo de interesse maior nos últimos tempos? Ou não?

Uma vez mais, te agradeço pela pergunta e por tua gentileza na menção, no comentário a iniciativas de comunicação que têm integrado o trabalho docente desenvolvido, neste momento, na UFPI. Ambas iniciativas (o programa de rádio e, mais recentemente, o podcast) atendem a um problema comum, no cerne da tarefa docente e, em certa medida, do elemento pessoal em nossas narrativas, nossos modos de nos situar no mundo: além de atividades de extensão acadêmica, se mostram modos de compartilhar conhecimento.

O ponto de partida do Clube do Vinil, em 2012, partiu da constatação de que não fazia muito sentido uma casa com cerca de 500 discos (à época), um par  de vitrolas sem, contudo, pessoas para compartilhar os discos e histórias em torno deles. Além de uma linha editorial definida (música das Américas e, sempre que possível, música negra das Américas), diretamente relacionada às atividades de ensino e pesquisa desempenhadas na UFPI, o Clube do Vinil sempre se propôs um espaço de escuta e compartilhamento de música em uma sala onde caiba muita gente, uma sala de ondas de rádio – e onde se possa, frequentemente, sem contradição de termos, viver a experiência solitária do disco, algo para beber, luzes apagadas, apenas os ruídos dos seres da noite lá fora: um recurso corrente em programas noturnos de rádios brasileiras, entre 20 horas e uma da madrugada, todas noites. O Clube do Vinil recorre a este tipo de linguagem, muito mais próxima de programas em frequência AM, embora hospedado em uma rádio pública, universitária. Como programas dos quais bebemos para conceber o programa na FM Universitária 96,7 em seu formato, é preciso salientar que a cultura de ouvinte de rádio está presente ao longo de boa parte da vida, de toda ela, talvez: ouvinte de rádio em busca de informação (naquele tempo em que, ainda, se associava rádio a qualidade de informação, de modo mais comprometido), ouvinte creditando sua formação musical ao rádio. Os discos do Clube do Vinil, assim como a chave de leitura a eles, reatualizada a cada novo programa, advêm dessa cultura de audição de rádio (quase sempre, de rádio AM e, hoje em dia, de rádio em streamings salvos no telefone celular). Como programas dos quais bebemos para conceber o Clube do Vinil, destacaria, sobretudo, dois programas de rádio ainda em Porto Alegre, o Conversa de Botequim (diário, na FM Cultura de lá; em sua linha editorial, discos de MPB) e o Noturno Guaíba (diário, na madrugada, já não existe mais; em sua linha editorial, a coleção de discos de acetato do Museu Hipólito José da Costa). Nos últimos anos, houve um programa especialmente marcante nesta formação em música das Américas: Tímpano, apresentado por Daniel Viglietti, até o fim de sua vida; escutava-o em 2016, mateando nas tardes de sábado às margens do Rio Mapocho (naquela parte mais arborizada, cerquita do Teatro del Puente), em sua reprodução pela rádio da Universidad de Chile (outra rádio pública imperdível a se ouvir por streaming, particularmente a quem, como nosso querido Prof. Luizir de Oliveira, aprecia repertório de música erudita). Mais contemporaneamente, audíveis por streaming, recomendo imensamente dois programas seguidos, diários, exibidos nas manhãs de dias úteis na rádio pública uruguaia Emisora del Sur: o Música de dos orillas, tocando tango argentino e uruguaio; o El sonido de todos, apresentado de modo brilhante por Héctor Numa Moraes. Além deles, há muitas surpresas incríveis em rádios públicas universitárias, muitos programas do gênero à espera da descoberta de novas(os) ouvintes. Hoje em dia, escuto rádio por streaming para estudar conteúdos, chaves de leitura e modos de apresentar o Clube do Vinil.

Mais recentemente, o ponto de partida do Podcast Anansi, além de ampliar as possibilidades de extensão acadêmica, em uma linha editorial definida (a fruição de literatura; a divulgação científica em torno de uma ideia de Ciência da Literatura), também diretamente relacionada às atividades de ensino e pesquisa desempenhadas na UFPI, este podcast parte de uma ideia similar: uma biblioteca não compartilhada, apenas disponível ao uso de um único indivíduo ou grupo, compromete algo substancial de seu sentido. Por mais que, em meu caso específico, este compartilhamento tenha sido levado razoavelmente a sério ao longo de todos estes anos nesta empresa vital (discentes que entram em contato com os livros, os tocam, cheiram, leem, tomam emprestado, efetuam tarefas e avaliações coletivas democratizando seu uso), é preciso, sempre, ter em mente que o mundo é bem maior que a universidade. Ainda pertenço a uma última geração docente (espero, do fundo do coração, que tenha sido a última com este pensamento) a dividir o mundo em duas grandes metades: o dentro e o fora da universidade federal onde trabalham. E, corolário: a divisão humana em quem está dentro ou fora deste espaço especifico que nós, de tão absortas(os) em sua rotina, tomamos como equivalência do mundo. Neste sentido, o Podcast Anansi se requer uma partilha da biblioteca hospedada na mesma sala onde repousa a discoteca básica do Clube do Vinil; a sala como espaço de diálogo e partilha com espaços maiores que ela; o setor em que trabalho, em uma universidade pública, tentando se abrir como espaço de diálogo e partilha com espaços maiores que ele – e, nos pensando como docentes, a consciência de que existe mundo fora dele, que existem espaços maiores que ele.

Por sua vez (e relacionado a ambas iniciativas de extensão acadêmica), as redes sociais me têm ocupado mais nos últimos tempos, em um uso dedicado à discussão e divulgação científica. Se, enquanto indivíduo, me comporto e me movo no mundo virtual (no físico, também, de certa forma) como um usuário low profile flopado, sem interesse algum em expor dimensão alguma de sua vida pessoal, tenho buscado novas possibilidades neste domínio de divulgação científica. Não uso Whatsapp, por exemplo (por não dispor de saúde mental suficiente a esta rede; e por sua parcela de responsabilidade neste atoleiro macropolítico em que nos encontramos); tampouco Instagram, por não compreender sua linguagem e seus códigos; nem apepês de quaisquer redes sociais em meu telefone celular. Meu perfil pessoal de Facebook tem servido, unicamente, para anunciar episódios novos do Clube do Vinil. Em contrapartida, amo Twitter e o tenho utilizado, especificamente, para seguir perfis de pessoas negras ou coletivos de ativismo negro, aprendendo com eles para levá-los (conteúdos e, eventualmente, as pessoas) aos espaços de ensino, pesquisa e extensão. Ademais, não tenho perfil de Instagram mas nosso Projeto de Pesquisa, sim: <@nucleoifarada>; se dedica a uma função semelhante, de modo a integrar redes negras de produção, discussão e compartilhamento de conhecimento. O time do Projeto, de posse de acesso ao perfil (e, diferentemente de meu caso, alfabetizadas nesta rede), se entregam ao ofício de divulgação científica mediante o perfil de Instagram e o perfil de Twitter do Projeto: <@projetoteseu>.

 

4. Qual sua cantora e seu cantor favorito? E qual o show que mais marcou você que é colecionador de discos de vinil?

Sobre a relação com discos de vinil, o programa mudou, ao longo dos anos, tanto o modo de apreciá-los quanto de adquirir novas peças velhas à coleção: chegar à feira em alguma cidade latinoamericana e, entre os álbuns que passam ao olhar, se defrontar com um que “Nossa, isso dá um programa!” como critério para levá-lo. Em alguns momentos, a velocidade de compra supera a de escuta (como o que nos passa, frequentemente, na relação com livros). Alguns discos anteriores passaram a ganhar um sentido novo quando lidos pela chave de leitura do programa, das rotinas da Rádio, do planejamento de tudo.

Contudo, aquilo que repousa na base de minha própria formação musical, como ouvinte de rádio, por vezes difere bastante das escolhas semanais do Clube do Vinil. Se, na infância  ena adolescência precoce, trazia uma herança paterna de repertório de Jovem Guarda e de Roberto Carlos – sem jamais a abandonar; se, na adolescência tardia, cheguei a ter todos discos de Dire Straits e todos de Elton John antes de sua operação de cordas vocais (boa parte destes últimos, seguindo na coleção, hoje); se a vivência na Universidade Federal do Rio Grande do Sul trouxe o repertório de música brasileira própria a estes espaços de sociabilidade (uma certa ideia de MPB dos anos 70; e alguns de seus diálogos com música dos anos 2000), assim como o início da motagem da atual coleção básica do programa; se, ao final da graduação, eu colecionava discos de novelas dos anos 70, naquilo que eles implicam em uma formação musical básica – e, no mais das vezes, inconsciente – ainda vigente em nosso país (seguindo a tese de Nilson Xavier em seu sítio http://teledramaturgia.com.br/ ); 

com todos estes ses, 

no momento de minhas próprias escolhas, como ouvinte físico portador de CPF e de um imaginário moldado pela ascensão de rádio e de televisão dos anos 70, 80 e 90; no momento de minhas  próprias escolhas musicais, três têm sido as linhas daquilo que toca mais na intimidade. Primeiramente, com muito espaço, um repertório de love songs, nacionais e internacionais, em um estilo bem próximo daquela rádio teresinense que, nos últimos meses, se tornou a coqueluche do momento; tenho uma lista inteira disso, salva no Spotify, chamada “Love songs nojentas”, até seguida por algumas pessoas, que costuma funcionar como ruído branco durante turnos de trabalho. Tem muita importância, também, nos últimos dez anos, um repertório de música da pampa, tomada como um lugar no mundo muito específico. Repertório de corte folclórico, vigente, se renovando permanentemente na Argentina e, em certa medida, também no Uruguai e desde alguns nomes do sul do Rio Grande do Sul (Pirisca Grecco, com grandissíssimo exemplo contemporâneo). Mais antigamente, destacaria, nesse sentido, a geração em torno da primeira formação portoalegrense do Paralelo 30, dentre os quais aprecio, mais que todos, a figura de Raul Ellwanger como, talvez, um dos artistas brasileiros mais empenhados em uma ideia de música de las Américas – cantou em dueto com Mercedes Sosa e com Pablo Milanés, compôs em espanhol e em portunhol, organizou xous no Uruguai, compôs canção a Nicarágua. Dignos de menção, ainda, os demais irmãos de Vitor Ramil, em seus primeiros anos de carreira, na formação do Almôndegas – deles, o disco Alhos com bugalhos, de 1977, consiste em uma das peças com maior valor afetivo da coleção toda. Esta herança gaucha vem, diretamente, desde meu ex-cunhado Daniel Hennemann, como resultado de minha vinda ao Piauí e as mudanças no modo de perceber a pampa, o sul do mundo, uma vez fora dela: de “tradição inventada” ao melhor estilo de Eric Hobsbawn, a pampa passou a espaço decisivo em meus modos de estar-no-mundo não apenas na música mas em como me visto, em como me exprimo quando inevitável, em como escolho interior da Argentina, Montevideo ou sul do Paraguai como lugares para estar quando não estou aqui. 

 

5. Pra finalizar, quais livros escrito por uma negra  um negro brasileiro todos nós deveríamos ler para nos conhecermos melhor como povo?

Dia desses, um pouco no clima da gravação dos dois pilotos do Podcast Anansi, passei um tempo precioso na companhia de Quando me descobri negra, de Bianca Santana; hoje, particularmente, essa circunstância se mostra atual, dada a repercusssão da 44ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Talvez este livro de Bianca Santana, assim como, por exemplo, uma tradição contemporânea de contística negra brasileira, na qual Olhos d’água pode nos fornecer um bom exemplo (percebemos a repercussão e distibuição da obra de Conceição Evaristo no momento em que seus exemplares nos chegam com o selo do Programa Nacional do Livro Didático), poderia iniciar um tratamento a tua ótima questão, sobre nos conhecer melhor como povo. Um dado fundamental na base deste problema, com força para mover nossas lutas a este respeito: gente preta, racializada, não cabe em uma ideia circulante de povo, no Brasil. Nossa presença, nossas agências, nossas resistências, nosso estar-no-mundo nos constroi como parte desta ideia de povo; mas, a quem nos racializa (e que, frequentemente, se apresenta como interlocução privilegiada de nosso discurso), ainda não está assegurada nossa humanidade; e, levando o tempo que seja necessário à garantia indubitável de nossa humanidade (que, em uma visão pessoal e pessimista, estaria pronto a dizer que ainda estamos deveras distantes; que, provavelmente, não acompanharei este estágio em vida), só e somente só após isso, poderíamos passar a discutir, de modo pertinente, nosso lugar nesta empresa de nos conhecer melhor como povo.

Evidentemente, há muita literatura negra em curso, neste momento, difundida por políticas editoriais renovadas e por uma atação crescente em redes sociais; contudo, acompanhando mais de perto resultados de pesquisas desenvolvidas pela equipe de nosso Projeto; e pensando, igualmente, nestes dois fatores supracitados como facilitadores ao acesso a esta literatura (novas traduções de literatura e de pensamento de mulheres negras, implicando a proposição e difusão de novas pesquisas a seu respeito; projetos macro- como a Biblioteca Assata Shakur, o Lendo Mulheres Negras, a Winnieteca); pensando nestes fatores, recomendaria um conjunto de contística de mulheres negras contemporâneas (além de Conceição Evaristo como uma espécie de metonímia desta literatura: Cristiane Sobral, Miriam Alves, Geni Guimarães, por exemplo) e um conjunto de romances negros contemporâneos não apenas de Eliana Alves Cruz mas, igualmente, de novas obras literárias negras nordestinas encontradas em perfis de Twitter como Resistência Afroliterária ou Impressões de Maria, para citar dois exemplos, assim como nos podcasts que dialogam com estas iniciativas). Começar por Conceição Evaristo e por estas mulheres negras supracitadas ofereceria um caminho ao início de uma resposta à pergunta.


quinta-feira, 4 de junho de 2020

Os irmãos caminham

Os irmãos caminham
Não mais para a morte 
Talvez lá no norte 
Seus corpos descansem 
Serena tez da justiça
Arranca as mal disfarçadas garras 
da águia americana

Casa Branca com medo do protesto dos negros 

sábado, 1 de dezembro de 2018

Palavrançar

Convidei a Lara Matos, advogada e escritora que já apresentei aqui no blog (clica aqui), para fazer uma postagem sobre mulheres escritoras negras da preferência dela. O pedido foi uma referência ao novembro negro, que acabou ontem e ao movimento nacional que busca incentivar a leitura de mulheres negras, que no Piauí, ganhou força na Campanha Esperançar (clica aqui e aqui), incentivada pela professora da UESPI Andreia Marreiro.

Seguem a postagem e as dicas:


A maior parte dos livros que vão estar na lista dos melhores do ano, uma tradição minha das festas de Natal e Ano-Novo, foram escritos por mulheres, e deste universo, muitos por mulheres negras. Hoje eu vou falar sobre as melhores leituras de autoras negras que fiz ao longo da vida, e comentar minha lista de desejos (meu aniversário é dia 09 de dezembro, oie). Minhas leituras de ficção são bem maiores que as de não-ficção, e por isso vou me concentrar na primeira modalidade.

I-A Cor Púrpura, Alice Walker: quando eu tinha 11 anos, meu livro didático de inglês propunha que escolhêssemos um filme dirigido/produzido por Steven Spielberg de uma lista. Eu escolhi a Cor Púrpura pelo título, aluguei o filme e quando descobri que Cellie existia em livro, e ainda mais, que tinha este livro em casa, me entreguei às páginas. Minha infância e adolescência foi meio assim mesmo, lendo coisas não tão apropriadas para a minha idade mas que me deram uma visão de mundo mais humana. Cellie, uma mulher negra, lésbica, que nunca entendi como ela se dizia, feia, com um coração tão bonito, foi a primeira personagem que despertou minha curiosidade.




II-Amada, Toni Morrison: É um dos meus livros preferidos de sempre, mesmo porque o começo enigmático, descrevendo a ação de um fantasma, me intrigou bastante. Demora um pouco até você entender o que está acontecendo, mas quando o enredo se mostra, é de uma grandeza e de uma potência absurda. A relação da mãe Sethe com os filhos ainda hoje me dá nós na garganta. Em algum momento, filhos que lêem est livro verão suas mães, seja de modo positivo ou não.  De Toni, até ler Amada, eu havia tido contato apenas com Jazz, um livro curto que dá conta de muito da dinâmica urbana dos negros dos EUA e cuja personagem principal, Violet, me causou uma profunda empatia; não gostaria de estar em sua pele novamente, embora já tenha estado, e a entendo demais. Na verdade, eu poria tudo de Morrison nessa lista, inclusive meu desejo Deus Ajude Esta Criança, seu livro mais recente traduzido no Brasil pela Companhia das Letras.



III-O Ódio que Você Semeia, Angie Thomas: Eu levei esse livro para votar, só para vocês terem um ideia, e foi o destaque dos meus livros preferidos de 2017.  Poucas vezes eu li algo tão bom com a temática de raça quanto ele, que inclusive zomba na cara de alguns curadores que dizem que romances YA estão fora de um espectro artístico. Nunca leram Angie Thomas, Jacqueline Woodson ou Nnedi Orokafor. Coitados. As palavras de Angie na estreia do filme baseado em O Ódio que Você Semeia “eu fui assistida pelo seguro social, vim de uma periferia violenta e cheguei a achar que não terminaria a escola; hoje, na estreia do filme baseado no livro em que escrevi, eu digo: tudo é possível”. Angie é uma voz negra intelectual com uma relevância enorme, pois como mulher jovem, é a prova viva de que a juventude negra precisa de ações afirmativas e, uma vez tendo acesso a elas, é capaz de alçar voos inimagináveis para elas mesmas. É uma reconstrução não só de uma autoestima individual, mas de toda uma comunidade.



IV-O Caminho de Casa, Yaa Gyazi: a diáspora africana com todas as dores, alegrias e anseios. Eu gostaria de dar este livro para cada um que fala “negros escravizavam negros”, porque as páginas dissolvem esse preconceito ignorante com um lirismo belíssimo, explicando toda a complexidade de relações do colonialismo escravagista. Você aprende a não falar besteira com uma história bem amarrada e com imagens deslumbrantes. Além disso, personagens como Marcus situam a compreensão de uma questão ainda muito pouco abordada: a saúde mental de pessoas negras, em especial dos homens negros; a incursão nas drogas desse personagem, inclusive, é uma descrição que gera muitas nuances de análise, exigindo um texto próprio.
Antes de falar da poesia, gostaria de falar sobre um incômodo: a mulheres poetas, em especial mulheres negras poetas, é negado o dom à exatidão e à observação. Mulheres são seres empíricos, levados por paixões, e não racionais e cognoscíveis: é um preconceito velado ou muitas vezes até manifesto mesmo em muitos ensaios críticos. Uma mulher negra que escreve, se instrui e aprende o letramento em formas de prosa e poesia com técnica, ritmo e lirismo impecáveis, então, uma afronta. Algumas mulheres que entram chutando as portas do formalismo branco da poesia hermética estão aqui:



I-Lívia Maria Natália de Souza: O Poema As Mãos de Minha Mãe me leva às lágrimas toda vez que leio. Durante o Colóquio de Gênero realizado na Universidade Estadual do Piauí, no mês de setembro deste ano, a própria poeta recitou esses versos, que falam sobre sua mãe com mal de Alzheimer. Minha avó foi levada por esta doença, também, e a dor profunda de sentir o fio da vida de alguém que amamos escoando aos poucos pesa ao mesmo tempo que encontra alívio nas palavras dessa poeta, que tive a honra de abraçar e conversar. Meu livro preferido de Lívia é Correntezas e Outros Estudos Marinhos, mas indico todos. 



V-Eliane Marques: Para escrever poesia é preciso ler poesia. Para versificar bem, é preciso ver a prática de versificação. Eliane Marques me ensinou lições preciosas que acredito que não extrairia de tratados de poética. Há uma precisão nos versos que fez com que eu recitasse fragmentos espontaneamente apenas algumas leituras depois. Uma amostra:
e se irene não-à-lei
e se irene não-sinhô
e se não-tão-preta
e nem-tão-boa
e se ainda aos piores mortos
o amém das moças



VI-Não Vou mais Lavar os Pratos, Cristiane Sobral: Uma mulher negra que resolve se instruir. A afronta que uma pessoa sempre relegada aos bastidores e aos cuidados rudimentares lendo, escrevendo, pensando, criando e sendo protagonista altiva não só da própria história, mas inventando novos mundos líricos. Esta é Cristiane.



III-Bone, Yrsa Daley-Ward: tenho minhas ressalvas em ler poemas em línguas estrangeiras traduzidos; por isso, geralmente me atenho a versos escritos em inglês ou espanhol, idiomas que domino e sei traduzir. Digo isto para marcar minha ignorância acerca de poetas cujos versos só conheço por traduções em português ou inglês que de certo modo me parecem estranhas, com algo fora do lugar, seja a estrutura da versificação ou as imagens obtidas. Ah, e outra coisa: Daley-Ward é modelo e atriz também; artista da cabeça aos pés. Abaixo, um dos poemas dela, que eu mesma traduzi.
Nada é dito na mesa de jantar
Porque todo mundo tem raiva
O único barulho é o tilintar dos talheres de prata na porcelana chinesa
E o som das brincadeiras dos filhos de outras pessoas lá fora
Mas isto te dará poesia
Na cozinha não há faca
Afiada que possa cortar a tensão
E as mãos de sua avó tremem
A carne e o inhame entalam na garganta
E você nem ousa mais sussurrar “passe o sal”
Mas isto te dará poesia
Seu pai está bufando
Ele poderá extrair toda seu viço esta noite
Por razões que nem ele mesmo sabe
Ainda
Você sairá machucada
Você sairá machucada
Mas isto lhe dará poesia
A ferida irá se espalhar
Dispersar até ser
um diamante negro
Ninguém sentará ao seu lado na aula
Talvez sua vida dê certo
Embora de primeira
Não pareça:
Isto lhe dará poesia



Maya Angelou: Olha ela de novo! O gênio que foi Angelou é uma coisa rara. Eu me atrevi a traduzir alguns poemas dela, e aqui está o meu preferido, Mulher Fenomenal. Não pus um livro em especial porque sempre consumi Maya de maneira dispersa, e já mencionei o I Know why the caged Bird Sings. E o “Mamãe e Eu e Mamãe”, que ainda não li porque sou muito sensível a histórias que tratam das relações entre pais e filhos: mesmo depois de três anos ainda tento me recuperar da última leitura deste tipo que fiz, Patrimônio, de Philip Roth. Aqui está minha tradução de Mulher Fenomenal (poema que Angie Thomas, em o Ódio que você semeia, diz descrever totalmente sua avó):

Mulher fenomenal
Lindas mulheres perguntam
Que segredos escondo
Não sou adorável ou feita
Para envergar um traje de modelo
Se eu começasse a contar sobre mim
Diriam que minto
Se disser que está no movimento dos meus braços,
No sacudir do meu quadril
No molejo dos meus passos
Na curva dos meus lábios:
Sou fenomenalmente
Uma mulher fenomenal
É quem sou
Quando entro em um recinto
Fresca e cheia de graça
Faço homens e seus companheiros
Levantarem ou caírem de joelhos
Eles me cercam
Sou uma colmeia vazando mel
Digo:
É no fogo dos meus olhos, no brilho dos meus dentes
Minha cintura malemolente
A alegria dos meus pés
Sou uma mulher fenomenalmente
Fenomenal
É quem sou
Homens perguntam a si mesmos
O que veem em mim
Eles até tentam
Mas não conseguem tocar
Meu mistério interno
Quando eu tento lhes mostrar
Eles inda não veem
Eu digo
É na curvatura das minhas costas, no sol do meu sorriso
No elevar dos meus seios
Meu estilo impecável
Uma mulher fenomenalmente
Agora você entende
Que é minha mente errante: não grito, salto
Ou preciso falar alto
Quando você me vê passar, deveria se orgulhar
Eu afirmo:
É no som dos meus saltos altos
Meus cabelos penteados
A palma da minha mão
A necessidade do meu cuidado
Fenomenalmente
É quem sou
fenomenal





Lista de desejos e leituras futuras/em andamento:

I-Filhos de Sangue e Osso, (Série Legado de Orïsha #1), Tomi Adeyemi: Tenho verdadeira paixão por autores que estudam religiões e mitologias a fundo para criar suas próprias versões em histórias originais. Exemplos conhecidos dessa capacidade de “aprender tudo como um especialista e recriar como artista” são Neil Gaiman e Maggie Stiefvater. Tomi foi além deles. Toda a pesquisa minuciosa se descortina numa história cheia de alegorias e imagens que parecem sonhadas. Estou no início da leitura e espero conseguir terminar logo, porque este livro merece estar numa lista de melhores pelo fascínio que me induziu, estou obcecada! Este livro, inclusive, vem com um guia de pronúncia Iorubá, GENTE!!!!!!!!!

II-Fique Comigo, Ayòbámi Adébáyò: Margaret Atwood, autora de O Conto da Aia e Vulgo Grace, é uma autora ativa nas redes sociais, e partilha suas leituras para os seguidores. Foi assim que tomei conhecimento deste livro de Adébáyò, uma jovem escritora que teceu um romance a partir da experiência com violência, exílio, costumes e particularidades de relacionamentos amorosos. Não falo mais porque ainda não comecei a leitura de fato, porém mal posso esperar.

III-Bruxa Akata, Nnedi Okorafor: Chimamanda plantou sonhos na Nigéria ao riscar seu país com  palavras. Nnedi, ficcionista exímia, fala da realidade na Nigéria a partir do olhar de uma garota albina. Mal posso esperar para começar a leitura do novo romance da autora de Quem Teme A Morte, a única ficção distópica que conseguiu prender minha atenção. Agora, com um tema ainda mais cativante, vou pular uns livros da minha fila de leitura (desculpa Becky Albertalli).



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