Hoje meu entrevistado é o extremamente gentil professor Alcione, que dá aula no curso de Letras, da UFPI, dentre outras coisas. Encontramo-nos por meio do Twitter uns anos atrás e agora o convido a esta conversa a respeito do pensamento e literatura negra, que são suas especialidades, e sobre os cotidianos de um corpo negro que sente, observa e fala a respeito disto e de outras coisas mais. Você pode ler mais entrevistas clicando na tag entrevistas ou aqui:
1. Alcione,
obrigada por aceitar participar do blog do passarinho, esse diário que, às
vezes, é construído por muitas mãos. Vamos lá! Quando você veio morar no Piauí,
o que você esperava encontrar aqui? O que de fato achou?
Em primeiro lugar,
bom dia e muitíssimo obrigado pelo convite, pela acolhida e pelas futuras
leituras, a estabelecer novas interlocuções que contribuam a nos fazer avançar
um pouco, em meio a contextos macro- tão desanimadores. Chegamos a um ponto no
qual estar-no-mundo, apesar de tudo, se tornou, também, um ato político.
Obrigado a ti e a todas(os) assinantes por cultivar, juntas(os), este espaço de cuidado.
Mês passado, no dia
primeiro, se completaram doze anos desta parcela de vida em Teresina; como se,
vivendo em um país distinto do Brasil, eu viesse para seguir existindo em outro
país igualmente distinto do Brasil; com exceção de um dinheiro parecido, todo
resto absolutamente novo, exigindo aprendizados todos os dias. Ainda não
aprendi a estar-no-mundo desde nosso lugar-Teresina, a socializar de maneira
satisfatória, mas sigo insistindo. À época do mestrado na UFRGS, se tratava de
uma escolha, de minha parte, viver em Teresina desde esta condição de docente
concursado da UFPI; esforços de muitas pessoas a me demover de uma ideia que,
em seu entender, não fazia o menor sentido; muito racismo travestido de
preocupação (de um tipo similar ao que tu experiencias e compartilhas conosco
desde tua experiência vivida em Florianópolis, outro lugar nem um pouco amigável
a sujeitas(os) racializadas(os)); após, o concurso; iniciei a viagem a Teresina
ao meio-dia e trinta, 22 de junho de 2008, oito graus, sete dias de uma viagem
sem pressa com o intuito de, precisamente, marcar esta trajetória de vida em
duas metades, antes e durante Teresina.
Hoje, apresentadas
oportunidades similares naquele mesmo momento de vida, escolheria Teresina,
novamente, escolheria a compra de discos e de uma vitrola no Troca, escolheria
retecer a relação com a universidade e com algo maior que ela através de sua
Rádio, escolheria o café da Serena, escolheria levar manga fiapo para casa,
escolheria a mesma bicicleta lilás e a mesma ciclista feminista onde sempre a
consertam, escolheria iniciar aqui uma relação ad infinitum com a
terapia.
De maneira a seguir
na resposta, me soa ímpar permanEcer, tantos anos depois, no mesmo estado de estranhamento de “Sampa”
admitindo que, quando cheguei por aqui, eu nada entendi. Nos primeiros anos,
havia uma pergunta racializada, em uma formulação particularmente teresinense:
“Tu não é daqui, né não?”. Uma estrutura peculiar de negar a diferença,
suprimindo-a três vezes, sem importar o tempo em que se está aqui; com o tempo,
praticando uma resposta do tipo “Sim, trabalhando aqui, pagando IPTU aqui,
jogando a pelada com o grupo de colegas daqui, portanto, sim, creio que sou
daqui; se não é para ser, para que vir?”, a pergunta foi sumindo à medida que o
devir-negro vinha chegando. Hoje, sem a certeza de por quanto tempo mais perceberei
o mundo desde o lugar-Teresina, tenho vivido a hipótese de que, se o lugar
racializado atribuído ao corpo-negro me imputa um sentimento de inadequação, de
estrangeiria em qualquer lugar, isso poderia implicar (em uma perspectiva do
“copo meio cheio”) a possibilidade de,
visto que uma
existência negra oferece problemas e riscos em qualquer lugar, em distintos
momentos de nossa trajetória nesta existência,
existi-la em
distintos lugares.
Hoje, os modos de
estabelecer relações de café, de discos e livros, de amor, de trabalho, são
modos em Teresina. Amanhã, ainda não posso responder como será nossa atuação,
somente nos repassam o script quase na hora das cenas; nunca sabemos
quando nossa personagem deixará a trama, quando cancelarão a nova temporada ou
quando seremos designadas(os) a outro espetáculo.
2. Os seus
projetos acadêmicos, dão uma boa pista de como você vivencia com seriedade a
valorização da cultura produzida na América Negra. Você já parou para pensar na
importância desses projetos em um estado negro que muitas vezes ignora essa
condição, que ainda é fortemente atrelada também à pobreza?
Assim como
anteriormente, muito obrigado por tua pergunta, na dimensão política que ela
nos apresenta. Sobre a ideia de pesquisar literaturas afroamericanas a partir
de um marco de pensamento negro
americano, frequentemente em uma perspectiva comparativa (basicamente, o
trabalho a que nos dedicamos no Projeto de Pesquisa Teseu, o labirinto e seu
nome), ainda que, em sua base, se trate de uma ideia assentada no compromisso
político de um lugar negro – um lugar de produção, discussão e difusão de
conhecimentos negros; investigado desde um lugar negro de enunciação científica
– vale a pena assinalar que tal lugar não se mostra evidente, dado, mas
necessita de construção, de cultivo, de mobilização constantes. Não se trataria
de um ser suficiente pelo fenótipo mas, antes, de um devir marcado pela
violência dos processos de racialização, do que nos desumaniza todos os dias
por meio desta racialização.
A despeito do
crescimento, quantitativo e qualitativo, de pesquisa acadêmica em pensamento
negro, a partir do advento das ações afirmativas e de suas consequências, a
interdição de corpas(os) negras(os) nos espaços de produção, discussão e
difusão de conhecimento, em um modelo propriamente acadêmico, se mostra uma
constante. Frequentemente, os signos negro e conhecimento seguem
incompatíveis em nossos modos de conceber o espaço acadêmico coabitando, não
obstante, com as lutas e avanços, na forma de políticas públicas de combate ao
racismo a ser disputadas, precisamente, “em um estado negro que muitas vezes
ignora essa condição”: a condição de humanidade de sujeitas(os) negras(os)
enquanto vidas que importam. Talvez em tal cenário, a mera presença neste
espaço interditado demarque, por si, a reivindicação de um lugar político; a
estratégia de conhecimento coletivo, mediante aquilombamento no Núcleo Ifaradá
(o NEAB da UFPI), como parte fundamental a nossos devires e à ciência proposta
a partir deles, constrói este lugar político em nosso cotidiano de trabalho.
A valorização da
cultura produzida na América Negra, no âmbito do Projeto Teseu, se efetua
mediante dimensões suplementares à análise comparativa entre literaturas
afroamericanas tomando os sentidos do prefixo afro- como se fossem
suficientes a uma suposta definição essencial de um ser negro: as Américas
Negras ou, em uma ideia mais adequada aprendida desde Lélia González, as
Améfricas, se manifestam em suas particularidades e naquilo que podemos
aprender com elas (onde somos nós que, na atividade de pesquisa, comparamos
aquilo que aprendemos e aquilo que nos descentra no contato com distintas
literaturas); as Améfricas se manifestam em nossa frequentação e aprendizagem
de pensamento negro em-diáspora, neste esforço de interpretar, compartilhar e
referenciar a este patrimônio, o mais efetivamente possível, em nosso fazer
científico; as Améfricas se desenham nas redes intelectuais que construímos com
os recursos disponíveis, gente preta produzindo, discutindo e difundindo
conhecimento sobre, para e, frequentemente, contra um estado negro que, muitas
vezes, ignora essa condição.
3. Você transita
com facilidade por muitas mídias, além de outros projetos de extensão, tem o
Clube do Vinil, o podcast Anansi e não são tanto professores de ensino superior
que abraçaram outros territórios para se comunicar com a comunidade acadêmica e
não acadêmica, além disso, vive-se um grande levante nas lutas pelos direitos
das minorias, usando redes sociais como ferramenta possível e até as ruas,
mesmo no meio da pandemia (e também por isso): é possível dizer que você está
no lugar certo, na hora certa? Percebe um tipo de interesse maior nos últimos
tempos? Ou não?
Uma vez mais, te
agradeço pela pergunta e por tua gentileza na menção, no comentário a
iniciativas de comunicação que têm integrado o trabalho docente desenvolvido,
neste momento, na UFPI. Ambas iniciativas (o programa de rádio e, mais
recentemente, o podcast) atendem a um problema comum, no cerne da tarefa
docente e, em certa medida, do elemento pessoal em nossas narrativas, nossos
modos de nos situar no mundo: além de atividades de extensão acadêmica, se
mostram modos de compartilhar conhecimento.
O ponto de partida
do Clube do Vinil, em 2012, partiu da constatação de que não fazia muito
sentido uma casa com cerca de 500 discos (à época), um par de vitrolas sem, contudo, pessoas para
compartilhar os discos e histórias em torno deles. Além de uma linha editorial
definida (música das Américas e, sempre que possível, música negra das
Américas), diretamente relacionada às atividades de ensino e pesquisa
desempenhadas na UFPI, o Clube do Vinil sempre se propôs um espaço de escuta e
compartilhamento de música em uma sala onde caiba muita gente, uma sala de
ondas de rádio – e onde se possa, frequentemente, sem contradição de termos,
viver a experiência solitária do disco, algo para beber, luzes apagadas, apenas
os ruídos dos seres da noite lá fora: um recurso corrente em programas noturnos
de rádios brasileiras, entre 20 horas e uma da madrugada, todas noites. O Clube
do Vinil recorre a este tipo de linguagem, muito mais próxima de programas em
frequência AM, embora hospedado em uma rádio pública, universitária. Como
programas dos quais bebemos para conceber o programa na FM Universitária 96,7
em seu formato, é preciso salientar que a cultura de ouvinte de rádio está
presente ao longo de boa parte da vida, de toda ela, talvez: ouvinte de rádio
em busca de informação (naquele tempo em que, ainda, se associava rádio a
qualidade de informação, de modo mais comprometido), ouvinte creditando sua
formação musical ao rádio. Os discos do Clube do Vinil, assim como a chave de
leitura a eles, reatualizada a cada novo programa, advêm dessa cultura de
audição de rádio (quase sempre, de rádio AM e, hoje em dia, de rádio em streamings
salvos no telefone celular). Como programas dos quais bebemos para conceber
o Clube do Vinil, destacaria, sobretudo, dois programas de rádio ainda em Porto
Alegre, o Conversa de Botequim (diário, na FM Cultura de lá; em sua linha
editorial, discos de MPB) e o Noturno Guaíba (diário, na madrugada, já
não existe mais; em sua linha editorial, a coleção de discos de acetato do
Museu Hipólito José da Costa). Nos últimos anos, houve um programa
especialmente marcante nesta formação em música das Américas: Tímpano,
apresentado por Daniel Viglietti, até o fim de sua vida; escutava-o em 2016,
mateando nas tardes de sábado às margens do Rio Mapocho (naquela parte mais
arborizada, cerquita do Teatro del Puente), em sua reprodução pela rádio da
Universidad de Chile (outra rádio pública imperdível a se ouvir por streaming,
particularmente a quem, como nosso querido Prof. Luizir de Oliveira, aprecia
repertório de música erudita). Mais contemporaneamente, audíveis por streaming,
recomendo imensamente dois programas seguidos, diários, exibidos nas manhãs de
dias úteis na rádio pública uruguaia Emisora del Sur: o Música de dos
orillas, tocando tango argentino e uruguaio; o El sonido de todos,
apresentado de modo brilhante por Héctor Numa Moraes. Além deles, há muitas
surpresas incríveis em rádios públicas universitárias, muitos programas do
gênero à espera da descoberta de novas(os) ouvintes. Hoje em dia, escuto rádio
por streaming para estudar conteúdos, chaves de leitura e modos de
apresentar o Clube do Vinil.
Mais recentemente,
o ponto de partida do Podcast Anansi, além de ampliar as possibilidades
de extensão acadêmica, em uma linha editorial definida (a fruição de
literatura; a divulgação científica em torno de uma ideia de Ciência da
Literatura), também diretamente relacionada às atividades de ensino e pesquisa
desempenhadas na UFPI, este podcast parte de uma ideia similar: uma
biblioteca não compartilhada, apenas disponível ao uso de um único indivíduo ou
grupo, compromete algo substancial de seu sentido. Por mais que, em meu caso
específico, este compartilhamento tenha sido levado razoavelmente a sério ao
longo de todos estes anos nesta empresa vital (discentes que entram em contato
com os livros, os tocam, cheiram, leem, tomam emprestado, efetuam tarefas e
avaliações coletivas democratizando seu uso), é preciso, sempre, ter em mente
que o mundo é bem maior que a universidade. Ainda pertenço a uma última geração
docente (espero, do fundo do coração, que tenha sido a última com este
pensamento) a dividir o mundo em duas grandes metades: o dentro e o fora da
universidade federal onde trabalham. E, corolário: a divisão humana em quem
está dentro ou fora deste espaço especifico que nós, de tão absortas(os) em sua
rotina, tomamos como equivalência do mundo. Neste sentido, o Podcast Anansi
se requer uma partilha da biblioteca hospedada na mesma sala onde repousa a
discoteca básica do Clube do Vinil; a sala como espaço de diálogo e partilha
com espaços maiores que ela; o setor em que trabalho, em uma universidade
pública, tentando se abrir como espaço de diálogo e partilha com espaços
maiores que ele – e, nos pensando como docentes, a consciência de que existe
mundo fora dele, que existem espaços maiores que ele.
Por sua vez (e
relacionado a ambas iniciativas de extensão acadêmica), as redes sociais me têm
ocupado mais nos últimos tempos, em um uso dedicado à discussão e divulgação
científica. Se, enquanto indivíduo, me comporto e me movo no mundo virtual (no
físico, também, de certa forma) como um usuário low profile flopado, sem
interesse algum em expor dimensão alguma de sua vida pessoal, tenho buscado
novas possibilidades neste domínio de divulgação científica. Não uso Whatsapp,
por exemplo (por não dispor de saúde mental suficiente a esta rede; e por sua
parcela de responsabilidade neste atoleiro macropolítico em que nos
encontramos); tampouco Instagram, por não compreender sua linguagem e seus
códigos; nem apepês de quaisquer redes sociais em meu telefone celular. Meu
perfil pessoal de Facebook tem servido, unicamente, para anunciar episódios
novos do Clube do Vinil. Em contrapartida, amo Twitter e o tenho utilizado,
especificamente, para seguir perfis de pessoas negras ou coletivos de ativismo
negro, aprendendo com eles para levá-los (conteúdos e, eventualmente, as
pessoas) aos espaços de ensino, pesquisa e extensão. Ademais, não tenho perfil
de Instagram mas nosso Projeto de Pesquisa, sim: <@nucleoifarada>; se
dedica a uma função semelhante, de modo a integrar redes negras de produção,
discussão e compartilhamento de conhecimento. O time do Projeto, de posse de
acesso ao perfil (e, diferentemente de meu caso, alfabetizadas nesta rede), se
entregam ao ofício de divulgação científica mediante o perfil de Instagram e o
perfil de Twitter do Projeto: <@projetoteseu>.
4. Qual sua
cantora e seu cantor favorito? E qual o show que mais marcou você que é
colecionador de discos de vinil?
Sobre a relação com
discos de vinil, o programa mudou, ao longo dos anos, tanto o modo de
apreciá-los quanto de adquirir novas peças velhas à coleção: chegar à feira em
alguma cidade latinoamericana e, entre os álbuns que passam ao olhar, se
defrontar com um que “Nossa, isso dá um programa!” como critério para levá-lo.
Em alguns momentos, a velocidade de compra supera a de escuta (como o que nos
passa, frequentemente, na relação com livros). Alguns discos anteriores
passaram a ganhar um sentido novo quando lidos pela chave de leitura do
programa, das rotinas da Rádio, do planejamento de tudo.
Contudo, aquilo que
repousa na base de minha própria formação musical, como ouvinte de rádio, por
vezes difere bastante das escolhas semanais do Clube do Vinil. Se, na
infância ena adolescência precoce,
trazia uma herança paterna de repertório de Jovem Guarda e de Roberto Carlos –
sem jamais a abandonar; se, na adolescência tardia, cheguei a ter todos discos
de Dire Straits e todos de Elton John antes de sua operação de cordas vocais
(boa parte destes últimos, seguindo na coleção, hoje); se a vivência na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul trouxe o repertório de música
brasileira própria a estes espaços de sociabilidade (uma certa ideia de MPB dos
anos 70; e alguns de seus diálogos com música dos anos 2000), assim como o
início da motagem da atual coleção básica do programa; se, ao final da
graduação, eu colecionava discos de novelas dos anos 70, naquilo que eles
implicam em uma formação musical básica – e, no mais das vezes, inconsciente –
ainda vigente em nosso país (seguindo a tese de Nilson Xavier em seu sítio http://teledramaturgia.com.br/ );
com todos estes
ses,
no momento de
minhas próprias escolhas, como ouvinte físico portador de CPF e de um
imaginário moldado pela ascensão de rádio e de televisão dos anos 70, 80 e 90;
no momento de minhas próprias escolhas
musicais, três têm sido as linhas daquilo que toca mais na intimidade.
Primeiramente, com muito espaço, um repertório de love songs, nacionais
e internacionais, em um estilo bem próximo daquela rádio teresinense que, nos
últimos meses, se tornou a coqueluche do momento; tenho uma lista inteira
disso, salva no Spotify, chamada “Love songs nojentas”, até seguida por algumas pessoas, que costuma funcionar como ruído branco
durante turnos de trabalho. Tem muita importância, também, nos últimos dez
anos, um repertório de música da pampa, tomada como um lugar no mundo muito
específico. Repertório de corte folclórico, vigente, se renovando
permanentemente na Argentina e, em certa medida, também no Uruguai e desde
alguns nomes do sul do Rio Grande do Sul (Pirisca Grecco, com grandissíssimo
exemplo contemporâneo). Mais antigamente, destacaria, nesse sentido, a geração
em torno da primeira formação portoalegrense do Paralelo 30, dentre os
quais aprecio, mais que todos, a figura de Raul Ellwanger como, talvez, um dos
artistas brasileiros mais empenhados em uma ideia de música de las Américas
– cantou em dueto com Mercedes Sosa e com Pablo Milanés, compôs em espanhol e
em portunhol, organizou xous no Uruguai, compôs canção a Nicarágua. Dignos de
menção, ainda, os demais irmãos de Vitor Ramil, em seus primeiros anos de
carreira, na formação do Almôndegas – deles, o disco Alhos com bugalhos,
de 1977, consiste em uma das peças com maior valor afetivo da coleção toda.
Esta herança gaucha vem, diretamente, desde meu ex-cunhado Daniel Hennemann,
como resultado de minha vinda ao Piauí e as mudanças no modo de perceber a
pampa, o sul do mundo, uma vez fora dela: de “tradição inventada” ao melhor
estilo de Eric Hobsbawn, a pampa passou a espaço decisivo em meus modos de
estar-no-mundo não apenas na música mas em como me visto, em como me exprimo
quando inevitável, em como escolho interior da Argentina, Montevideo ou sul do
Paraguai como lugares para estar quando não estou aqui.
5. Pra
finalizar, quais livros escrito por uma negra
um negro brasileiro todos nós deveríamos ler para nos conhecermos melhor
como povo?
Dia desses, um
pouco no clima da gravação dos dois pilotos do Podcast Anansi, passei um
tempo precioso na companhia de Quando me descobri negra, de Bianca
Santana; hoje, particularmente, essa circunstância se mostra atual, dada a
repercusssão da 44ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Talvez este
livro de Bianca Santana, assim como, por exemplo, uma tradição contemporânea de
contística negra brasileira, na qual Olhos d’água pode nos fornecer um
bom exemplo (percebemos a repercussão e distibuição da obra de Conceição
Evaristo no momento em que seus exemplares nos chegam com o selo do Programa
Nacional do Livro Didático), poderia iniciar um tratamento a tua ótima questão,
sobre nos conhecer melhor como povo. Um dado fundamental na base deste
problema, com força para mover nossas lutas a este respeito: gente preta,
racializada, não cabe em uma ideia circulante de povo, no Brasil. Nossa
presença, nossas agências, nossas resistências, nosso estar-no-mundo nos
constroi como parte desta ideia de povo; mas, a quem nos racializa (e que,
frequentemente, se apresenta como interlocução privilegiada de nosso discurso),
ainda não está assegurada nossa humanidade; e, levando o tempo que seja
necessário à garantia indubitável de nossa humanidade (que, em uma visão
pessoal e pessimista, estaria pronto a dizer que ainda estamos deveras
distantes; que, provavelmente, não acompanharei este estágio em vida), só e
somente só após isso, poderíamos passar a discutir, de modo pertinente, nosso
lugar nesta empresa de nos conhecer melhor como povo.
Evidentemente, há
muita literatura negra em curso, neste momento, difundida por políticas
editoriais renovadas e por uma atação crescente em redes sociais; contudo,
acompanhando mais de perto resultados de pesquisas desenvolvidas pela equipe de
nosso Projeto; e pensando, igualmente, nestes dois fatores supracitados como
facilitadores ao acesso a esta literatura (novas traduções de literatura e de
pensamento de mulheres negras, implicando a proposição e difusão de novas
pesquisas a seu respeito; projetos macro- como a Biblioteca Assata Shakur, o
Lendo Mulheres Negras, a Winnieteca); pensando nestes fatores, recomendaria um
conjunto de contística de mulheres negras contemporâneas (além de Conceição
Evaristo como uma espécie de metonímia desta literatura: Cristiane Sobral,
Miriam Alves, Geni Guimarães, por exemplo) e um conjunto de romances negros
contemporâneos não apenas de Eliana Alves Cruz mas, igualmente, de novas obras
literárias negras nordestinas encontradas em perfis de Twitter como Resistência
Afroliterária ou Impressões de Maria, para citar dois exemplos, assim como nos podcasts
que dialogam com estas iniciativas). Começar por Conceição Evaristo e por estas
mulheres negras supracitadas ofereceria um caminho ao início de uma resposta à
pergunta.