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sábado, 7 de janeiro de 2017

Um caminho para o crescimento: a família do capitão fantástico

[contém spoilers]

E se levássemos a sério os jovens, ao ponto de os criarmos, em uma educação sem séries, sem restrição de leituras, nem de desafios esportivos, partilhando com elas e eles livremente os saberes do mundo?

Não, a postagem não é sobre o movimento da desescolarização, mas bem que poderia ser. Ontem fui ao cinema ter um encontro com um filme que me tocou bastante, uma comédia dramática, recomendação de um amigo: "Capitão fantástico".

"Walden" (Thoreau)  e "A república" (Platão), parece que era algo nesse sentido que estava na cabeça de Ben e sua esposa, Leslie, quando decidem criar seus filhos em meio ao ambiente selvagem das florestas do norte dos EUA. O poético filme de Matt Ross (2016), apresenta-nos lindamente essa possibilidade. Ben e Leslie esforçam-se em educar sua prole, como fortes e sábios, por meio de uma disciplina que requer exercícios físicos diários no meio da mata e nas alturas das montanhas, incluindo luta, meditação, respiração pranayana e caça, além de estudos avançados sobre literatura, filosofia, línguas, política, direito, física, anatomia e o que mais o intelecto estimulado dos jovens pedisse- e que a biblioteca particular dos pais tivesse, que parecia ser constantemente realimentada por pedidos pelos correios.

Guiando os filhos por meio do que acreditavam ser um modo de vida que desafiava a sociedade capitalista da qual provinham, a família discutia todas as leituras que realizavam, como Marx e demais socialistas, além de Chomsky, em sua faceta libertária (no sentido positivo do termo), Dostoievski, Nabokov, alcançando mesmo a declaração de direitos dos EUA. O pequeno clã também se entretinha com música e praticava rituais sincréticos de alegria (como o aniversário de Chomsky, que era algo como o natal), ritual de iniciação e ritual de luto, quando necessários.

O grande desafio da família no mundo "real" começa ao decidirem comparecer ao velório e enterro de sua mãe, mesmo sob a proibição do avô, que nunca havia concordado com o estilo de vida excêntrico de sua filha. Leslie, que desenvolveu transtorno bipolar após uma depressão pós-parto, havia partido para a cidade, tentando tratar-se. Não conseguindo uma melhora suficiente, termina por cometer suicídio.

Apesar da morte trágica da mãe, o filme não se torna um filme mórbido. A verdade é dita às crianças, que foram criadas acostumadas ao diálogo sincero e aberto, o que não impede o sofrimento. Por outro lado,  parece abrir espaço para um tipo luto expansivo, que é manifestado de modos diferentes por cada membro e depois por todos juntos. A despedida final acontece bem depois do enterro, num ritual sugerido pela própria defunta, que tinha muito bom humor- apesar da depressão.

O desenrolar da trama até esse desfecho, incluem pequenos eventos como o desafio de conseguir comida na cidade, aprender a paquerar, o que fazer diante aprovação do mais velho em todas as universidades mais prestigiadas do país, ou com a rebeldia do filho do meio, além do contato com os demais membros da família. Esse contato, inclusive, oferece-nos um fabuloso quadro comparativo entre os dois modus vivendi, o nosso e o deles, eu diria, que promove momentos divertidíssimos para quem assiste. A família de Ben nos lembra o quanto que alguns dos nossos hábitos já não passam de meras convenções e outros não chegam a contribuir em nada com o nosso bem-estar físico ou mental, pelo contrário.

Mesmo diferentes, as crianças em nenhum momento se sentem constrangidas e na verdade surgem altivas diante da família "civilizada" do avô e da tia.

O luto, as brigas e os acidentes que ocorrem até pouco depois do enterro da mãe terminam por funcionar como uma espécie de arena de aperfeiçoamento para os pequenos filósofos-reis, um novo desafio a cada uma e a cada um dos membros, que compreendem melhor a força da escolha dos pais, começando a ter noção de suas próprias. Passarão a enfrentar o mundo humano como seres diferentes (por sua excessiva autonomia e crítica), num caminho que parece ser guiado pela vontade de liberdade e autenticidade, que deveriam, na minha humilde opinião, serem dois dos mais importantes pilares de uma boa educação.

 
Capitão Fantástico- trailer

Ps. O filme é com meu querido Viggo Mortensen (Ben), o Aragorn de "O Senhor dos Anéis".


segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

A leste do Éden

Antes de tudo, um 2017 cheio de amor e de criação para vocês! Que possamos ter coragem e saúde para seguir adiante!

Vim aqui hoje, para falar de um livro lindo que terminei de ler na noite do dia 31: "A Leste do Éden", de John Steinbeck. Ganhei esse livro, por acaso, em um sorteio na UFPI- uma palestra do pessoal de letras. Em geral, a minha sorte vigora pra outras coisas, que não sorteios, exceto se for sorteio de livros.

Por conta desse acaso, fiquei sabendo que John Steinbeck (1962) foi um laureado pelo Nobel de Literatura e também vencedor do prêmio Pulitzer (1940). E por mais que prêmios não determinem se vou gostar ou não da obra, não tem como uma amante de livros ignorar esses fatos.

Isso não quis dizer, contudo, que li o livro num átimo. Não. A sorte me presenteou com ele em outubro de 2015, mas só suportei a leitura, na época, até uma certa altura. Tudo por culpa de uma personagem da obra: Kate. A maldade dela começou a ameaçar minha concentração na seleção de doutorado e, definitivamente, eu precisava de estímulos felizes.

Kate é má. Uma das melhores personagens construídas para o mal em uma obra de ficção, eu ousaria dizer. Descrita como um tipo de psicopata, Steinbeck utiliza dela como um veículo de reflexão sobre o que seria esse mal que nos habita e porque existiriam indivíduos mais propensos a ele. Kate, Charles e Joe, uma série de personagens surgem como gradações morais (ou não morais) nisso que parece ser o mal. 

Como contraponto, temos personagens admiráveis, bondosos, corajosos e justos, no outro lado do espectro moral. Adam (irmão de Charles), Lizza, Samuel (Sam Hamilton) e Lee. A partir deles, o autor constrói uma belíssima dinâmica de sabedoria entre as situações que as personagens se encontram e também a partir do encontro deles na obra. Adam, que poderíamos chamar de protagonista da maior parte da história; Samuel (Sam), sábio e inventivo, vizinho e protetor de Adam; e Lee, aquele que acompanhará Adam até o fim. Particularmente me tornei grande fã de Sam e Lee, mas especialmente do último, que vai se tornando, ao longo da obra, uma espécie de guru de todos, com forte senso autocrítico.

Aliás, a autocrítica é um dos pontos que geram tensões e viradas ao longo da história, especialmente quando as personagens mais jovens crescem. São elas que começam a mostrar que aquele espectro moral é bem mais complexo do que a primeira metade do livro faz pensar. Tom, Dessie, Una, Will, Abra, Aaron e Caleb. Tom, filho de Sam Hamilton, parece uma espécie de Liêvin (Anna Karênina) do velho oeste americano. Mais bruto que seu par russo, Tom é a manifestação da sensibilidade, da gentileza e também da força justa, que, ao contrário de Liêvin, jamais encontrará seu lugar. É comovente acompanhar sua tentativa de apenas ser, em um mundo tão árido, que parece tentar ensiná-lo que perfeição e bondade não andam lado a lado, sendo essa a principal lição do livro. E me sinto livre em falar de "lição", autorizada pelos temas tratados pelo próprio autor, na obra e fora dela.

Dessie e Una, são irmãs de Tom, filhas de Sam e Lizza. De Una, pouco é dito, pequena, curiosa e amada. Dessie, a mais querida, a borboleta da família. Nenhuma teve sorte no amor, mas reforça-se a partir delas, e também de Tom, a força do caráter bravo, silencioso e resiliente da família, o que é relevante para sentirmos compreensivamente o tamanho que as dores sofridas em silêncio podem alcançar e como podem justificar nosso comportamento presente e futuro.

Will é o filho prático dos Hamilton e por isso, dá a impressão de escapar da tragédia que segue os dons da criatividade, paixão e coragem, da família. Com muito pouco desses atributos, consegue ser bem sucedido com sua loja de carros. 

Os outros filhos são pouco mencionados, mas você os encontrará por lá. 

Quanto a Abra, Aaron e Caleb, os dois últimos filhos de Adam, nos dão um belo quadro do que poderia ser um bom exemplo de como a formação do caráter humano é bem menos previsível do que parece. O que parece bom por si só, diante dos desafios do mundo pode se tornar inconsequente e até egoísta e aquele que é acusado de egoísmo, em princípio, pode ter motivações mais elevadas do que nossa antipatia pode levar a pensar e que nosso crescimento como ser humano não pára nunca, porque sempre teremos escolha.

A questão da escolha é outro dos pontos chaves para ir além de uma compreensão superficial da obra. Timshel, palavra que vem do hebraico, é apresentada por Lee, como uma belíssima interpretação da alegoria do pós Éden, da Bíblia. Timshel não é dever, é poder e por isso, escolha. Até as almas mais abjetas parecem ter escolhas na obra, nem que essa escolha seja o fim da própria vida.

E é isso. Nada do que falei aqui tira a beleza da obra. Demorei a engrenar na leitura, mas Steinbeck mostrou seu valor e digo que teria perdido todo um mundo de novas reflexões se não tivesse mudado de idéia e voltado. Da minha parte posso dizer que o mal de Kate veio para o bem. 

Aqui a minha edição. Tem 641 páginas, mas vale a pena o desafio. ^^



Sobre o John Steinbeck, na wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/John_Steinbeck

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