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sábado, 16 de abril de 2016

A fábula do santo e do passarinho azul


Um dia, andando pela floresta buscando inspiração, o jovem Giovanni di Pietro di Bernardone, que futuramente seria conhecido como São Francisco de Assis, encontrou um passarinho que chilreava baixinho, baixinho, em cima de uma pedra. Suas penas azuis pareciam folhinhas murchas, como se elas tivessem acabado de ficar sob a chuva. O estranho é que, olhando através das copas das árvores, Giovanni não viu qualquer sinal de nuvens no céu:
- Olá, senhor passarinho! O que houve que lhe deixou murcho de penas e de canto?- disse com bondade o rapaz.
- (Piiiu... Piiuu...) Amanheci com um profundo sentimento de solidão epistêmica, caro andarilho. Tentei explicar o que sentia ao primeiro rosto que me pareceu amigo aqui na floresta, e qual decepção não sofri quando ao dar a impressão que me ouvia, na verdade o dito amigo preparava um bote e, ai ai de mim, quase escorrego para o estômago daquele glutão!
- E quem era o amigo, meu caro?- perguntou o futuro santo, interessado.
-  (Piiu. Piiu!) Era o senhor Gato do Mato. Veja só: sei que parece imprudente minha atitude, agora que o senhor sabe de quais espécies se tratam. Mas compreenda que, junto ao sentimento de solidão epistêmica, paradoxalmente, me veio um ímpeto de que sim era possível ultrapassar o abismo dessa solidão no qual me encontrava, independentemente de com qual espécie eu me dispunha a dialogar.
- Sim, sim. É verdade, senhor passarinho, pois não estamos os dois aqui conversando?
- (Piu. Piu.) Isso é bem verdade. E até agora o senhor não tentou me devorar.
Após uma pausa constrangedora, o jovem disse num suspiro:
- Eu tenho um pensamento sobre a solidão epistêmica e gostaria de compartilhar com você. Esse é um sentimento de difícil expressão no mundo. A maior parte dos seres viventes (e talvez dos não viventes) nem mesmo se dá conta de que todos estão à mercê disso. No mundo humano da minha espécie, alguns grupos estão particularmente vulneráveis a esse fenômeno: as mulheres, as crianças, os indígenas, os idosos e aqueles que são chamados de loucos. O que eles falam tem o que chamamos de um status inferior, ou seja, não é levado a sério, sendo depreciado, ou mesmo ignorado, como acredito que tenha sido o seu caso.
- (Piu. Piu.) Na verdade, caro amigo, a coisa entre vocês parece mais grave do que eu imaginava, pois entre nós, os passarinhos azuis, sempre estivemos dispostos a ouvir e a perceber como relevante e bonita cada nota do canto do outro. Era uma das minhas maiores alegrias, aliás.
- Mas agora eu que não entendo, caro amigo. Por que então o sentimento de solidão epistêmica?
-(Piu...) Não percebe, meu senhor? Não existem mais passarinhos azuis... Todos um dia foram acometidos por esse sentimento de intensa solidão epistêmica compreendendo que conversar só entre nós, com o tempo, empalidecia nosso canto. Então, finalmente entendemos que havia todo um vasto mundo de amigos possíveis com os quais compartilhar nossa experiência de passarinho e receber de volta a sabedoria dos outros bichos. Até dos bichos da sua espécie. No entanto, todos tiveram o fim que eu teria hoje, caso o senhor Gato do Mato não tivesse ouvido seus passos na floresta. Pois os Gatos do Mato são assim: só se intimidam diante do fisicamente mais forte, fugindo. 
Depois de uma breve pausa para recuperar seu folegozinho de passarinho, chilreou num canto firme, um que Giovanni ainda não havia ouvido desde o início da conversa:
- (Piuuuuu. Piiiuuu.) Nós passarinhos azuis, contudo, sempre fomos até o fim quando se tratava das nossas disposições. Desse tipo de disposição que tomou a mim e a você nesta manhã.

Ainda naquele mesmo dia Giovanni saiu da floresta lamentando o fato dos passarinhos azuis já não mais existirem no nosso mundo. De fato tudo pareceu mais pálido, desde então.


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