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quarta-feira, 8 de abril de 2020

Entrevista: Heci Regina, tradução e Angela Davis


Heci Regina Candiani. Talvez você ainda não conheça esse nome, mas com certeza, já que você está aqui nesse blog, deve ter ouvido falar de Angela Davis, Ursula K. Le Guin, Octavia Butler, Magaret Atwood ou Nancy Fraser. A Heci, além de ser doutora em sociologia pela UNICAMP, é a incrível responsável pela tradução de muitas das obras dessas nossas autoras queridas. Por sorte minha, ela aceitou o convite para uma entrevista, que fiz lá na rede social do passarinho azul. Para não deixar a conversa muito dispersa, foquei mais no trabalho que ela desenvolveu com as obras da Angela Davis. Segue esse presente para todas e todos nós! <3

1.  Então, Heci, percebendo suas escolhas para tradução, notei que o conteúdo das obras parece quase sempre voltado para preocupações de justiça social, mesmo na literatura. Isso me fez pensar se, quando você está traduzindo, de algum modo sua formação em sociologia atravessa suas escolhas das obras ou até mesmo orienta suas escolhas por categorias, termos importantes para os livros? Ou você entende os dois como ofícios separados?

Acho que a sociologia e tradução são ofícios (gosto muito dessa palavra) que passam essencialmente pela pesquisa e, ainda que os métodos e objetivos dessa pesquisa sejam diferentes em cada atividade, existe sempre em comum a curiosidade, a investigação, a intenção de ir além do que está dado, do aparente, do superficial. Pela formação sociológica, tudo que leio, observo, me leva a pensar nas questões sociais e políticas envolvidas, nos discursos mobilizados, nas intenções que nem sempre estarão explícitas. Da mesma forma, a tradução me leva a estar atenta à escolha de um tempo verbal, de uma palavra e não de outra, da terminologia, da semântica. Todas essas ferramentas me servem tanto em uma atividade quanto na outra.

2.    Como foi que aconteceu seu encontro com a obra da Angela Davis? Você gostou da recepção do público à sua tradução?

Os textos da Angela Davis exigem uma abordagem feminista, conhecimento do marxismo e dos debates relativos a questões raciais, porque todos esses aspectos da obra têm reflexos na escolha de termos e no modo de apresentar as ideias. Quando comecei a trabalhar no primeiro livro de Angela Davis que traduzi, o Mulheres, raça e classe, eu fazia doutorado em estudos de gênero, então já estava envolvida com essas questões. Mas a obra que se sustenta em muitos detalhes da história e das relações sociais específicas dos Estados Unidos no momento do surgimento do movimento de mulheres e da luta abolicionista. Isso exigiu bastante pesquisa e a produção de muitas notas de rodapé para contextualização, tanto de termos como de informações que poderiam faltar para quem estivesse lendo o texto no Brasil, até porque mais de 30 anos separavam o lançamento do livro nos EUA e a tradução. E algumas pessoas que leram o livro comentaram justamente que consideraram importante a inclusão das notas e as escolhas de alguns termos, além da linguagem que problematiza a suposta neutralidade dos termos masculinos. Isso é muito gratificante para mim.  

3.    Na obra “Mulheres, Classe e Raça”, a Angela Davis desenvolve com muito respeito as críticas dela ao movimento para o voto feminino no século XIX, mas sem deixar de ser precisa em seus argumentos em apontar as graves falhas dele em diminuir a importância do movimento abolicionista que se tornaria o de maior destaque na época, ou ignorar as mulheres negras que também compunham o movimento, sendo esse seu principal ponto na primeira metade do livro. Você sentiu dificuldade em elaborar isso? Eu pergunto por que muitas vezes eu senti uma raiva absurda lendo as injustiças que os movimentos de mulheres negras sofriam (e sofrem) e eu acredito que raiva não deva ser um bom guia na hora de escolher as construções na hora da escrita. Como traduzir bem algo que dialoga com seus valores mais caros?

A própria Angela Davis, nas palestras que fez no Brasil no ano passado, comentou sobre a importância da raiva. A raiva é um chamado à ação, ela nos mobiliza, nos coloca em contato com a necessidade de transformar uma situação. (O que é totalmente diferente do ódio, que passa por um desejo de destruição do outro, presente na xenofobia, no racismo, no machismo, na exploração de uma classe pela outra). O que mais a raiva me dizia no momento de tradução desse livro é que quanto melhor eu pudesse fazer o meu trabalho, mais eu poderia colaborar para que o racismo, o machismo e a opressão de classe fossem compreendidos por mais pessoas e questionados.

4.    Você sente alguma diferença em traduzir autoras como Fraser e Davis e depois partir para obras literárias como as da Atwood? Pode falar um pouco sobre esse processo?

A obra literária coloca quem traduz diante de um número maior de questões estéticas, um cuidado diferente com a linguagem, experimentos linguísticos, recursos como rimas, aliterações, alguns aspectos formais do texto que precisam ser considerados porque, em geral, estão sendo usados para contar a história. Normalmente, isso exige, para mim, uma maior lentidão na leitura, na ponderação das escolhas, a exploração do vocabulário, é um processo mais demorado em cada frase. Já em um texto de não ficção, é mais raro que isso aconteça. Ao traduzir Davis, Fraser, Federici, as questões passam, em geral, mais por conceitos, termos, fatos históricos, referenciais teóricos. Há, claro, questões formais do texto, mas elas são menos presentes, as soluções exigidas passam mais pela pesquisa de dados, informações, a produção de uma nota de rodapé... É muito bom ter a possibilidade de lidar com esses aspectos diferentes de cada gênero, alternar entre obras diferentes, autoras e autores diferentes.

5.    Por último, você acredita que as tradutoras e tradutores devam se engajar mais em discussões públicas dos trabalhos que fazem ou não, devem ser profissionais discretos e distantes desse tipo de agitação?

Acredito que sim. Acho que os tradutoras e tradutores, por terem uma relação muito próxima com o texto, muitas vezes passando horas em uma só frase, dias tentando aprimorá-la, podem ter observações e percepções interessantes para compartilhar. Pensar o texto a partir da tradução traz mais elementos para compreendê-lo e analisá-lo.  



Heci, muito obrigada pela entrevista e já fica aqui o convite, desde já, para mais conversas sobre sua vivência no mundo da tradução!

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Conversa com Blake

Toda noite e toda manhã
Algo de miserável nasce bom
Cada manhã e cada noite
Algo de bom nasce da doce pernoite
Algo de bom que nasce da eterna noite*



*Tradução adaptada e alterada de propósito, como é de praxe aqui.

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Não há florescer mais belo

Não há florescer mais belo
que o das palavras concebidas-
nenhum tão gracioso
nenhum tão perfumado.

T.W.Higginson

quarta-feira, 25 de abril de 2018

Toni Morrison me ajuda a pensar a palavra



Tradução adaptada de um texto da e sobre a Toni Morrison. Enquanto eu me tratava de uma meningite, a escritora fazia seu belo discurso pelo recebimento do prêmio nobel. Fico feliz de ter sobrevivido à doença, para perceber essa coincidência. Aqui Morrison sabiamente explica porque a palavra não encerra a experiência, perspectiva que alguém que trabalha com filosofia no século XXI precisa recuperar.


TONI MORRISON SOBRE O PODER DA LINGUAGEM: SEU DISCURSO ESPETACULAR DO NOBEL DEPOIS DE SE TORNAR A PRIMEIRA MULHER AFRO-AMERICANA A RECEBER O PRÊMIO

“Nós morremos. Esse pode ser o significado da vida. Mas nós fazemos linguagem. Essa pode ser a medida de nossas vidas”

Nas últimas semanas de 1993, Toni Morrison (18 de fevereiro de 1931) tornou-se a primeira mulher afro-americana a receber o Prêmio Nobel, sendo premiada por ser uma escritora “que, em romances caracterizados por sua força visionária e importância poética, dá vida a um aspecto essencial da realidade americana.” Em 7 de dezembro, Morrison subiu ao pódio na Academia Sueca em Estocolmo e aceitou a honraria com um discurso espetacular sobre o poder da linguagem - seu poder de oprimir e libertar, cicatrizar e santificar, de expoliar e redimir. O discurso de Morrison, incluído no livro “Palestras Nobel: entre os laureados da literatura, de 1986 a 2006” (biblioteca pública), talvez seja nosso mais poderoso manifesto pela responsabilidade embutida na maneira como manejamos a ferramenta que é a marca registrada de nossa espécie.

Morrison escreve:

Era uma vez uma mulher idosa. Cega, mas sábia. "Ou era um homem velho? Um guru, talvez. Ou uma contadora de histórias acalmando crianças inquietas. Eu ouvi essa história, ou uma exatamente como ela, no folclore de várias culturas."

 Era uma vez uma mulher idosa. Cega. Sábia.

    Nessa versão eu sei que a mulher é filha de escravos, negros, americanos e mora sozinha em uma pequena casa fora da cidade. Sua reputação de sábia é sem par e inquestionável. Entre seu povo, ela é tanto a lei, quanto a sua transgressão. As honrarias que recebe e a reverência com que é mantida vão além do seu bairro, alcançando lugares distantes; até a cidade onde a inteligência dos profetas rurais é fonte de muita diversão.
    Um dia a mulher é visitada por alguns jovens que parecem estar dispostos a refutar sua clarividência e a mostrar a fraude que acreditavam que ela fosse. O plano deles era simples: eles entrariam em sua casa e fariam uma pergunta que só poderia ser respondida com base na diferença entre eles e ela, uma diferença que consideram uma deficiência profunda: a cegueira. Eles estão diante a mulher sábia e um deles diz: “Mulher velha, tenho na mão um pássaro. Diga-me se está vivo ou morto." 
    Ela não responde e a pergunta é repetida. "O pássaro que eu estou segurando está vivo ou morto?"
    Ainda assim ela não responde. Ela é cega e não pode ver seus visitantes, muito menos o que está em suas mãos. Ela não sabe sua cor, gênero ou pátria. Ela só conhece o motivo deles.

    
O silêncio da velha é tão longo, que os jovens têm dificuldade em segurar o riso.

    
Finalmente ela fala e sua voz é suave, mas severa. "Eu não sei", diz ela. "Eu não sei se o pássaro que você está segurando está vivo ou morto, mas o que eu sei é que ele está em suas mãos. Está em suas mãos."
    Sua resposta pode ser entendida como: se está morto, você o encontrou dessa forma ou o matou. Se estiver vivo, você ainda pode matá-lo. Ou seja,  mantê-lo vivo é uma decisão sua. Seja qual for o caso, é sua responsabilidade.
  A despeito do poder deles e do desamparo dela, os jovens visitantes são repreendidos, informados de que são responsáveis ​​não apenas pelo ato de zombaria, mas também por aquela pequenina vida sacrificada para alcançar seus objetivos. A mulher cega desvia a atenção das afirmações de poder, para o instrumento através do qual esse poder é exercido.

“ Especular sobre o que (além de seu próprio corpo frágil) aquele pássaro-na-mão pode significar sempre foi atraente para mim, mas especialmente agora, que eu tenho pensado sobre o trabalho que fiz e que me trouxe a essa premiação. Por isso escolho ler o pássaro como língua e a mulher como escritora experiente. Ela está preocupada com a forma como a linguagem em que ela sonha, dada a ela no nascimento, é tratada, colocada em serviço e até aprisionada para certos fins nefastos. Sendo escritora, ela pensaria na linguagem em parte como um sistema, em parte como uma coisa viva sobre a qual se tem controle, mas principalmente como agência - como um ato com consequências. Assim, a pergunta que os rapazes fazem a ela: “Está vivo ou morto?” não é desprovido de de sentido porque ela pensa que a linguagem é suscetível à morte, ao desaparecimento; ainda que ameaçada e aproveitada apenas por um esforço da vontade. Ela acredita que, na verdade, se o pássaro nas mãos de seus visitantes está morto, os guardiões são responsáveis ​​pelo cadáver. Para ela, uma língua morta não é apenas uma língua que não é mais falada ou escrita, é também conteúdo linguístico inflexível que admira sua própria paralisia. Como uma linguagem estatista, censurada e proibida. Impiedosa em seus deveres de policiamento, não tem desejo ou propósito além de sustentar o livre alcance de seu próprio narcisismo narcótico, sua própria exclusividade e domínio. Por mais moribunda que seja, contudo, surte efeito, pois frustra ativamente o intelecto, paralisa a consciência, suprime o potencial humano.”

Com um olhar cauteloso sobre como o nosso uso indevido da linguagem pode fazer  “renunciar a suas propriedades sutis, complexas e intermediárias até à ameaça e à subjugação”, escreve Morrison:

“A vitalidade da linguagem reside na sua capacidade de iluminar a vida real, imaginada e possível dos seus falantes, leitores, escritores. Embora a sua postura esteja, por vezes, na experiência de deslocamento, não é um substituto para ela. Inclina-se em direção ao lugar onde o significado pode estar. Quando um presidente dos Estados Unidos pensou no cemitério em que seu país se tornara, disse: “O mundo notará pouco ou nem se lembrará do que dizemos aqui. Mas nunca esquecerá o que fizemos”, suas palavras simples são essencialmente vitais porque são uma recusa a encapsular a realidade de 600.000 homens mortos em uma guerra racial cataclísmica. Recusando-se a monumentalizar, desdenhando a “palavra final”, o “resumo” preciso, reconhecendo seu “pobre poder de adicionar ou diminuir”, suas palavras sinalizam deferência à incapturabilidade da vida que lamenta. É a deferência que a move, o reconhecimento de que a linguagem nunca pode viver a vida de uma vez por todas. Nem deveria. A linguagem nunca pode "definir" a escravidão, o genocídio, a guerra. Nem deveria ansiar arrogantemente que fosse capaz de fazê-lo. Sua força, sua felicidade está em seu alcance para o inefável.
Seja grande ou esguio, escavando, detonando ou recusando-se a santificar; se é um riso alto ou se é um grito, a palavra escolhida, o silêncio escolhido, a linguagem não molestada surge em direção ao conhecimento, não à sua destruição.”

Em um sentimento que lembra a memorável meditação de James Baldwin sobre a linguagem e a vida - “é a experiência que molda uma linguagem; e é a linguagem que controla uma experiência ”, escreveu ele - Morrison acrescenta:

“O trabalho da palavra é sublime ... porque é gerador; faz o sentido que assegura nossa diferença, nossa diferença humana - a maneira como somos como nenhuma outra vida.”

 “Nós morremos. Esse pode ser o significado da vida. Mas nós fazemos linguagem. Essa pode ser a medida de nossas vidas.

(...)

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