Heci Regina Candiani. Talvez você ainda não
conheça esse nome, mas com certeza, já que você está aqui nesse blog, deve ter ouvido falar de Angela Davis, Ursula K. Le Guin, Octavia
Butler, Magaret Atwood ou Nancy Fraser. A Heci, além de ser doutora em
sociologia pela UNICAMP, é a incrível responsável pela tradução de muitas das
obras dessas nossas autoras queridas. Por sorte minha, ela aceitou o convite
para uma entrevista, que fiz lá na rede social do passarinho azul. Para não
deixar a conversa muito dispersa, foquei mais no trabalho que ela desenvolveu
com as obras da Angela Davis. Segue esse presente para todas e todos nós! <3
1. Então,
Heci, percebendo suas escolhas para tradução, notei que o conteúdo das obras
parece quase sempre voltado para preocupações de justiça social, mesmo na
literatura. Isso me fez pensar se, quando você está traduzindo, de algum modo
sua formação em sociologia atravessa suas escolhas das obras ou até mesmo
orienta suas escolhas por categorias, termos importantes para os livros? Ou
você entende os dois como ofícios separados?
Acho que a
sociologia e tradução são ofícios (gosto muito dessa palavra) que passam
essencialmente pela pesquisa e, ainda que os métodos e objetivos dessa pesquisa
sejam diferentes em cada atividade, existe sempre em comum a curiosidade, a
investigação, a intenção de ir além do que está dado, do aparente, do
superficial. Pela formação sociológica, tudo que leio, observo, me leva a
pensar nas questões sociais e políticas envolvidas, nos discursos mobilizados, nas
intenções que nem sempre estarão explícitas. Da mesma forma, a tradução me leva
a estar atenta à escolha de um tempo verbal, de uma palavra e não de outra, da
terminologia, da semântica. Todas essas ferramentas me servem tanto em uma
atividade quanto na outra.
2.
Como
foi que aconteceu seu encontro com a obra da Angela Davis? Você gostou da
recepção do público à sua tradução?
Os textos da Angela Davis exigem uma abordagem feminista, conhecimento do marxismo e dos debates relativos a questões raciais, porque todos esses aspectos da obra têm reflexos na escolha de termos e no modo de apresentar as ideias. Quando comecei a trabalhar no primeiro livro de Angela Davis que traduzi, o Mulheres, raça e classe, eu fazia doutorado em estudos de gênero, então já estava envolvida com essas questões. Mas a obra que se sustenta em muitos detalhes da história e das relações sociais específicas dos Estados Unidos no momento do surgimento do movimento de mulheres e da luta abolicionista. Isso exigiu bastante pesquisa e a produção de muitas notas de rodapé para contextualização, tanto de termos como de informações que poderiam faltar para quem estivesse lendo o texto no Brasil, até porque mais de 30 anos separavam o lançamento do livro nos EUA e a tradução. E algumas pessoas que leram o livro comentaram justamente que consideraram importante a inclusão das notas e as escolhas de alguns termos, além da linguagem que problematiza a suposta neutralidade dos termos masculinos. Isso é muito gratificante para mim.
3.
Na
obra “Mulheres, Classe e Raça”, a Angela Davis desenvolve com muito respeito as
críticas dela ao movimento para o voto feminino no século XIX, mas sem deixar
de ser precisa em seus argumentos em apontar as graves falhas dele em diminuir
a importância do movimento abolicionista que se tornaria o de maior destaque na
época, ou ignorar as mulheres negras que também compunham o movimento, sendo
esse seu principal ponto na primeira metade do livro. Você sentiu dificuldade
em elaborar isso? Eu pergunto por que muitas vezes eu senti uma raiva absurda
lendo as injustiças que os movimentos de mulheres negras sofriam (e sofrem) e
eu acredito que raiva não deva ser um bom guia na hora de escolher as
construções na hora da escrita. Como traduzir bem algo que dialoga com seus
valores mais caros?
A própria
Angela Davis, nas palestras que fez no Brasil no ano passado, comentou sobre a
importância da raiva. A raiva é um chamado à ação, ela nos mobiliza, nos coloca
em contato com a necessidade de transformar uma situação. (O que é totalmente diferente
do ódio, que passa por um desejo de destruição do outro, presente na xenofobia,
no racismo, no machismo, na exploração de uma classe pela outra). O que mais a
raiva me dizia no momento de tradução desse livro é que quanto melhor eu
pudesse fazer o meu trabalho, mais eu poderia colaborar para que o racismo, o
machismo e a opressão de classe fossem compreendidos por mais pessoas e
questionados.
4. Você sente alguma diferença em traduzir
autoras como Fraser e Davis e depois partir para obras literárias como as da
Atwood? Pode falar um pouco sobre esse processo?
A obra literária coloca quem traduz
diante de um número maior de questões estéticas, um cuidado diferente com a
linguagem, experimentos linguísticos, recursos como rimas, aliterações, alguns
aspectos formais do texto que precisam ser considerados porque, em geral, estão
sendo usados para contar a história. Normalmente, isso exige, para mim, uma
maior lentidão na leitura, na ponderação das escolhas, a exploração do
vocabulário, é um processo mais demorado em cada frase. Já em um texto de não
ficção, é mais raro que isso aconteça. Ao traduzir Davis, Fraser, Federici, as
questões passam, em geral, mais por conceitos, termos, fatos históricos, referenciais
teóricos. Há, claro, questões formais do texto, mas elas são menos presentes,
as soluções exigidas passam mais pela pesquisa de dados, informações, a
produção de uma nota de rodapé... É muito bom ter a possibilidade de lidar com
esses aspectos diferentes de cada gênero, alternar entre obras diferentes,
autoras e autores diferentes.
5. Por último, você acredita que as
tradutoras e tradutores devam se engajar mais em discussões públicas dos
trabalhos que fazem ou não, devem ser profissionais discretos e distantes desse
tipo de agitação?
Acredito que sim. Acho que os tradutoras e tradutores, por terem uma relação
muito próxima com o texto, muitas vezes passando horas em uma só frase, dias
tentando aprimorá-la, podem ter observações e percepções interessantes para
compartilhar. Pensar o texto a partir da tradução traz mais elementos para
compreendê-lo e analisá-lo.