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terça-feira, 4 de agosto de 2020

Entrevista: Alcione Correa

Hoje meu entrevistado é o extremamente gentil professor Alcione, que dá aula no curso de Letras, da UFPI, dentre outras coisas. Encontramo-nos por meio do Twitter uns anos atrás e agora o convido a esta conversa a respeito do pensamento e literatura negra, que são suas especialidades, e sobre os cotidianos de um corpo negro que sente, observa e fala a respeito disto e de outras coisas mais. Você pode ler mais entrevistas clicando na tag entrevistas ou aqui:


1. Alcione, obrigada por aceitar participar do blog do passarinho, esse diário que, às vezes, é construído por muitas mãos. Vamos lá! Quando você veio morar no Piauí, o que você esperava encontrar aqui? O que de fato achou?

Em primeiro lugar, bom dia e muitíssimo obrigado pelo convite, pela acolhida e pelas futuras leituras, a estabelecer novas interlocuções que contribuam a nos fazer avançar um pouco, em meio a contextos macro- tão desanimadores. Chegamos a um ponto no qual estar-no-mundo, apesar de tudo, se tornou, também, um ato político. Obrigado a ti e a todas(os) assinantes por cultivar, juntas(os),  este espaço de cuidado.

Mês passado, no dia primeiro, se completaram doze anos desta parcela de vida em Teresina; como se, vivendo em um país distinto do Brasil, eu viesse para seguir existindo em outro país igualmente distinto do Brasil; com exceção de um dinheiro parecido, todo resto absolutamente novo, exigindo aprendizados todos os dias. Ainda não aprendi a estar-no-mundo desde nosso lugar-Teresina, a socializar de maneira satisfatória, mas sigo insistindo. À época do mestrado na UFRGS, se tratava de uma escolha, de minha parte, viver em Teresina desde esta condição de docente concursado da UFPI; esforços de muitas pessoas a me demover de uma ideia que, em seu entender, não fazia o menor sentido; muito racismo travestido de preocupação (de um tipo similar ao que tu experiencias e compartilhas conosco desde tua experiência vivida em Florianópolis, outro lugar nem um pouco amigável a sujeitas(os) racializadas(os)); após, o concurso; iniciei a viagem a Teresina ao meio-dia e trinta, 22 de junho de 2008, oito graus, sete dias de uma viagem sem pressa com o intuito de, precisamente, marcar esta trajetória de vida em duas metades, antes e durante Teresina.

Hoje, apresentadas oportunidades similares naquele mesmo momento de vida, escolheria Teresina, novamente, escolheria a compra de discos e de uma vitrola no Troca, escolheria retecer a relação com a universidade e com algo maior que ela através de sua Rádio, escolheria o café da Serena, escolheria levar manga fiapo para casa, escolheria a mesma bicicleta lilás e a mesma ciclista feminista onde sempre a consertam, escolheria iniciar aqui uma relação ad infinitum com a terapia. 

De maneira a seguir na resposta, me soa ímpar permanEcer, tantos anos depois, no  mesmo estado de estranhamento de “Sampa” admitindo que, quando cheguei por aqui, eu nada entendi. Nos primeiros anos, havia uma pergunta racializada, em uma formulação particularmente teresinense: “Tu não é daqui, né não?”. Uma estrutura peculiar de negar a diferença, suprimindo-a três vezes, sem importar o tempo em que se está aqui; com o tempo, praticando uma resposta do tipo “Sim, trabalhando aqui, pagando IPTU aqui, jogando a pelada com o grupo de colegas daqui, portanto, sim, creio que sou daqui; se não é para ser, para que vir?”, a pergunta foi sumindo à medida que o devir-negro vinha chegando. Hoje, sem a certeza de por quanto tempo mais perceberei o mundo desde o lugar-Teresina, tenho vivido a hipótese de que, se o lugar racializado atribuído ao corpo-negro me imputa um sentimento de inadequação, de estrangeiria em qualquer lugar, isso poderia implicar (em uma perspectiva do “copo meio cheio”) a possibilidade de, 

visto que uma existência negra oferece problemas e riscos em qualquer lugar, em distintos momentos de nossa trajetória nesta existência, 

existi-la em distintos lugares.

Hoje, os modos de estabelecer relações de café, de discos e livros, de amor, de trabalho, são modos em Teresina. Amanhã, ainda não posso responder como será nossa atuação, somente nos repassam o script quase na hora das cenas; nunca sabemos quando nossa personagem deixará a trama, quando cancelarão a nova temporada ou quando seremos designadas(os) a outro espetáculo.

 

2. Os seus projetos acadêmicos, dão uma boa pista de como você vivencia com seriedade a valorização da cultura produzida na América Negra. Você já parou para pensar na importância desses projetos em um estado negro que muitas vezes ignora essa condição, que ainda é fortemente atrelada também à pobreza?

Assim como anteriormente, muito obrigado por tua pergunta, na dimensão política que ela nos apresenta. Sobre a ideia de pesquisar literaturas afroamericanas a partir de um marco de pensamento  negro americano, frequentemente em uma perspectiva comparativa (basicamente, o trabalho a que nos dedicamos no Projeto de Pesquisa Teseu, o labirinto e seu nome), ainda que, em sua base, se trate de uma ideia assentada no compromisso político de um lugar negro – um lugar de produção, discussão e difusão de conhecimentos negros; investigado desde um lugar negro de enunciação científica – vale a pena assinalar que tal lugar não se mostra evidente, dado, mas necessita de construção, de cultivo, de mobilização constantes. Não se trataria de um ser suficiente pelo fenótipo mas, antes, de um devir marcado pela violência dos processos de racialização, do que nos desumaniza todos os dias por meio desta racialização.

A despeito do crescimento, quantitativo e qualitativo, de pesquisa acadêmica em pensamento negro, a partir do advento das ações afirmativas e de suas consequências, a interdição de corpas(os) negras(os) nos espaços de produção, discussão e difusão de conhecimento, em um modelo propriamente acadêmico, se mostra uma constante. Frequentemente, os signos negro e conhecimento seguem incompatíveis em nossos modos de conceber o espaço acadêmico coabitando, não obstante, com as lutas e avanços, na forma de políticas públicas de combate ao racismo a ser disputadas, precisamente, “em um estado negro que muitas vezes ignora essa condição”: a condição de humanidade de sujeitas(os) negras(os) enquanto vidas que importam. Talvez em tal cenário, a mera presença neste espaço interditado demarque, por si, a reivindicação de um lugar político; a estratégia de conhecimento coletivo, mediante aquilombamento no Núcleo Ifaradá (o NEAB da UFPI), como parte fundamental a nossos devires e à ciência proposta a partir deles, constrói este lugar político em nosso cotidiano de trabalho.

A valorização da cultura produzida na América Negra, no âmbito do Projeto Teseu, se efetua mediante dimensões suplementares à análise comparativa entre literaturas afroamericanas tomando os sentidos do prefixo afro- como se fossem suficientes a uma suposta definição essencial de um ser negro: as Américas Negras ou, em uma ideia mais adequada aprendida desde Lélia González, as Améfricas, se manifestam em suas particularidades e naquilo que podemos aprender com elas (onde somos nós que, na atividade de pesquisa, comparamos aquilo que aprendemos e aquilo que nos descentra no contato com distintas literaturas); as Améfricas se manifestam em nossa frequentação e aprendizagem de pensamento negro em-diáspora, neste esforço de interpretar, compartilhar e referenciar a este patrimônio, o mais efetivamente possível, em nosso fazer científico; as Améfricas se desenham nas redes intelectuais que construímos com os recursos disponíveis, gente preta produzindo, discutindo e difundindo conhecimento sobre, para e, frequentemente, contra um estado negro que, muitas vezes, ignora essa condição.

 

3. Você transita com facilidade por muitas mídias, além de outros projetos de extensão, tem o Clube do Vinil, o podcast Anansi e não são tanto professores de ensino superior que abraçaram outros territórios para se comunicar com a comunidade acadêmica e não acadêmica, além disso, vive-se um grande levante nas lutas pelos direitos das minorias, usando redes sociais como ferramenta possível e até as ruas, mesmo no meio da pandemia (e também por isso): é possível dizer que você está no lugar certo, na hora certa? Percebe um tipo de interesse maior nos últimos tempos? Ou não?

Uma vez mais, te agradeço pela pergunta e por tua gentileza na menção, no comentário a iniciativas de comunicação que têm integrado o trabalho docente desenvolvido, neste momento, na UFPI. Ambas iniciativas (o programa de rádio e, mais recentemente, o podcast) atendem a um problema comum, no cerne da tarefa docente e, em certa medida, do elemento pessoal em nossas narrativas, nossos modos de nos situar no mundo: além de atividades de extensão acadêmica, se mostram modos de compartilhar conhecimento.

O ponto de partida do Clube do Vinil, em 2012, partiu da constatação de que não fazia muito sentido uma casa com cerca de 500 discos (à época), um par  de vitrolas sem, contudo, pessoas para compartilhar os discos e histórias em torno deles. Além de uma linha editorial definida (música das Américas e, sempre que possível, música negra das Américas), diretamente relacionada às atividades de ensino e pesquisa desempenhadas na UFPI, o Clube do Vinil sempre se propôs um espaço de escuta e compartilhamento de música em uma sala onde caiba muita gente, uma sala de ondas de rádio – e onde se possa, frequentemente, sem contradição de termos, viver a experiência solitária do disco, algo para beber, luzes apagadas, apenas os ruídos dos seres da noite lá fora: um recurso corrente em programas noturnos de rádios brasileiras, entre 20 horas e uma da madrugada, todas noites. O Clube do Vinil recorre a este tipo de linguagem, muito mais próxima de programas em frequência AM, embora hospedado em uma rádio pública, universitária. Como programas dos quais bebemos para conceber o programa na FM Universitária 96,7 em seu formato, é preciso salientar que a cultura de ouvinte de rádio está presente ao longo de boa parte da vida, de toda ela, talvez: ouvinte de rádio em busca de informação (naquele tempo em que, ainda, se associava rádio a qualidade de informação, de modo mais comprometido), ouvinte creditando sua formação musical ao rádio. Os discos do Clube do Vinil, assim como a chave de leitura a eles, reatualizada a cada novo programa, advêm dessa cultura de audição de rádio (quase sempre, de rádio AM e, hoje em dia, de rádio em streamings salvos no telefone celular). Como programas dos quais bebemos para conceber o Clube do Vinil, destacaria, sobretudo, dois programas de rádio ainda em Porto Alegre, o Conversa de Botequim (diário, na FM Cultura de lá; em sua linha editorial, discos de MPB) e o Noturno Guaíba (diário, na madrugada, já não existe mais; em sua linha editorial, a coleção de discos de acetato do Museu Hipólito José da Costa). Nos últimos anos, houve um programa especialmente marcante nesta formação em música das Américas: Tímpano, apresentado por Daniel Viglietti, até o fim de sua vida; escutava-o em 2016, mateando nas tardes de sábado às margens do Rio Mapocho (naquela parte mais arborizada, cerquita do Teatro del Puente), em sua reprodução pela rádio da Universidad de Chile (outra rádio pública imperdível a se ouvir por streaming, particularmente a quem, como nosso querido Prof. Luizir de Oliveira, aprecia repertório de música erudita). Mais contemporaneamente, audíveis por streaming, recomendo imensamente dois programas seguidos, diários, exibidos nas manhãs de dias úteis na rádio pública uruguaia Emisora del Sur: o Música de dos orillas, tocando tango argentino e uruguaio; o El sonido de todos, apresentado de modo brilhante por Héctor Numa Moraes. Além deles, há muitas surpresas incríveis em rádios públicas universitárias, muitos programas do gênero à espera da descoberta de novas(os) ouvintes. Hoje em dia, escuto rádio por streaming para estudar conteúdos, chaves de leitura e modos de apresentar o Clube do Vinil.

Mais recentemente, o ponto de partida do Podcast Anansi, além de ampliar as possibilidades de extensão acadêmica, em uma linha editorial definida (a fruição de literatura; a divulgação científica em torno de uma ideia de Ciência da Literatura), também diretamente relacionada às atividades de ensino e pesquisa desempenhadas na UFPI, este podcast parte de uma ideia similar: uma biblioteca não compartilhada, apenas disponível ao uso de um único indivíduo ou grupo, compromete algo substancial de seu sentido. Por mais que, em meu caso específico, este compartilhamento tenha sido levado razoavelmente a sério ao longo de todos estes anos nesta empresa vital (discentes que entram em contato com os livros, os tocam, cheiram, leem, tomam emprestado, efetuam tarefas e avaliações coletivas democratizando seu uso), é preciso, sempre, ter em mente que o mundo é bem maior que a universidade. Ainda pertenço a uma última geração docente (espero, do fundo do coração, que tenha sido a última com este pensamento) a dividir o mundo em duas grandes metades: o dentro e o fora da universidade federal onde trabalham. E, corolário: a divisão humana em quem está dentro ou fora deste espaço especifico que nós, de tão absortas(os) em sua rotina, tomamos como equivalência do mundo. Neste sentido, o Podcast Anansi se requer uma partilha da biblioteca hospedada na mesma sala onde repousa a discoteca básica do Clube do Vinil; a sala como espaço de diálogo e partilha com espaços maiores que ela; o setor em que trabalho, em uma universidade pública, tentando se abrir como espaço de diálogo e partilha com espaços maiores que ele – e, nos pensando como docentes, a consciência de que existe mundo fora dele, que existem espaços maiores que ele.

Por sua vez (e relacionado a ambas iniciativas de extensão acadêmica), as redes sociais me têm ocupado mais nos últimos tempos, em um uso dedicado à discussão e divulgação científica. Se, enquanto indivíduo, me comporto e me movo no mundo virtual (no físico, também, de certa forma) como um usuário low profile flopado, sem interesse algum em expor dimensão alguma de sua vida pessoal, tenho buscado novas possibilidades neste domínio de divulgação científica. Não uso Whatsapp, por exemplo (por não dispor de saúde mental suficiente a esta rede; e por sua parcela de responsabilidade neste atoleiro macropolítico em que nos encontramos); tampouco Instagram, por não compreender sua linguagem e seus códigos; nem apepês de quaisquer redes sociais em meu telefone celular. Meu perfil pessoal de Facebook tem servido, unicamente, para anunciar episódios novos do Clube do Vinil. Em contrapartida, amo Twitter e o tenho utilizado, especificamente, para seguir perfis de pessoas negras ou coletivos de ativismo negro, aprendendo com eles para levá-los (conteúdos e, eventualmente, as pessoas) aos espaços de ensino, pesquisa e extensão. Ademais, não tenho perfil de Instagram mas nosso Projeto de Pesquisa, sim: <@nucleoifarada>; se dedica a uma função semelhante, de modo a integrar redes negras de produção, discussão e compartilhamento de conhecimento. O time do Projeto, de posse de acesso ao perfil (e, diferentemente de meu caso, alfabetizadas nesta rede), se entregam ao ofício de divulgação científica mediante o perfil de Instagram e o perfil de Twitter do Projeto: <@projetoteseu>.

 

4. Qual sua cantora e seu cantor favorito? E qual o show que mais marcou você que é colecionador de discos de vinil?

Sobre a relação com discos de vinil, o programa mudou, ao longo dos anos, tanto o modo de apreciá-los quanto de adquirir novas peças velhas à coleção: chegar à feira em alguma cidade latinoamericana e, entre os álbuns que passam ao olhar, se defrontar com um que “Nossa, isso dá um programa!” como critério para levá-lo. Em alguns momentos, a velocidade de compra supera a de escuta (como o que nos passa, frequentemente, na relação com livros). Alguns discos anteriores passaram a ganhar um sentido novo quando lidos pela chave de leitura do programa, das rotinas da Rádio, do planejamento de tudo.

Contudo, aquilo que repousa na base de minha própria formação musical, como ouvinte de rádio, por vezes difere bastante das escolhas semanais do Clube do Vinil. Se, na infância  ena adolescência precoce, trazia uma herança paterna de repertório de Jovem Guarda e de Roberto Carlos – sem jamais a abandonar; se, na adolescência tardia, cheguei a ter todos discos de Dire Straits e todos de Elton John antes de sua operação de cordas vocais (boa parte destes últimos, seguindo na coleção, hoje); se a vivência na Universidade Federal do Rio Grande do Sul trouxe o repertório de música brasileira própria a estes espaços de sociabilidade (uma certa ideia de MPB dos anos 70; e alguns de seus diálogos com música dos anos 2000), assim como o início da motagem da atual coleção básica do programa; se, ao final da graduação, eu colecionava discos de novelas dos anos 70, naquilo que eles implicam em uma formação musical básica – e, no mais das vezes, inconsciente – ainda vigente em nosso país (seguindo a tese de Nilson Xavier em seu sítio http://teledramaturgia.com.br/ ); 

com todos estes ses, 

no momento de minhas próprias escolhas, como ouvinte físico portador de CPF e de um imaginário moldado pela ascensão de rádio e de televisão dos anos 70, 80 e 90; no momento de minhas  próprias escolhas musicais, três têm sido as linhas daquilo que toca mais na intimidade. Primeiramente, com muito espaço, um repertório de love songs, nacionais e internacionais, em um estilo bem próximo daquela rádio teresinense que, nos últimos meses, se tornou a coqueluche do momento; tenho uma lista inteira disso, salva no Spotify, chamada “Love songs nojentas”, até seguida por algumas pessoas, que costuma funcionar como ruído branco durante turnos de trabalho. Tem muita importância, também, nos últimos dez anos, um repertório de música da pampa, tomada como um lugar no mundo muito específico. Repertório de corte folclórico, vigente, se renovando permanentemente na Argentina e, em certa medida, também no Uruguai e desde alguns nomes do sul do Rio Grande do Sul (Pirisca Grecco, com grandissíssimo exemplo contemporâneo). Mais antigamente, destacaria, nesse sentido, a geração em torno da primeira formação portoalegrense do Paralelo 30, dentre os quais aprecio, mais que todos, a figura de Raul Ellwanger como, talvez, um dos artistas brasileiros mais empenhados em uma ideia de música de las Américas – cantou em dueto com Mercedes Sosa e com Pablo Milanés, compôs em espanhol e em portunhol, organizou xous no Uruguai, compôs canção a Nicarágua. Dignos de menção, ainda, os demais irmãos de Vitor Ramil, em seus primeiros anos de carreira, na formação do Almôndegas – deles, o disco Alhos com bugalhos, de 1977, consiste em uma das peças com maior valor afetivo da coleção toda. Esta herança gaucha vem, diretamente, desde meu ex-cunhado Daniel Hennemann, como resultado de minha vinda ao Piauí e as mudanças no modo de perceber a pampa, o sul do mundo, uma vez fora dela: de “tradição inventada” ao melhor estilo de Eric Hobsbawn, a pampa passou a espaço decisivo em meus modos de estar-no-mundo não apenas na música mas em como me visto, em como me exprimo quando inevitável, em como escolho interior da Argentina, Montevideo ou sul do Paraguai como lugares para estar quando não estou aqui. 

 

5. Pra finalizar, quais livros escrito por uma negra  um negro brasileiro todos nós deveríamos ler para nos conhecermos melhor como povo?

Dia desses, um pouco no clima da gravação dos dois pilotos do Podcast Anansi, passei um tempo precioso na companhia de Quando me descobri negra, de Bianca Santana; hoje, particularmente, essa circunstância se mostra atual, dada a repercusssão da 44ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Talvez este livro de Bianca Santana, assim como, por exemplo, uma tradição contemporânea de contística negra brasileira, na qual Olhos d’água pode nos fornecer um bom exemplo (percebemos a repercussão e distibuição da obra de Conceição Evaristo no momento em que seus exemplares nos chegam com o selo do Programa Nacional do Livro Didático), poderia iniciar um tratamento a tua ótima questão, sobre nos conhecer melhor como povo. Um dado fundamental na base deste problema, com força para mover nossas lutas a este respeito: gente preta, racializada, não cabe em uma ideia circulante de povo, no Brasil. Nossa presença, nossas agências, nossas resistências, nosso estar-no-mundo nos constroi como parte desta ideia de povo; mas, a quem nos racializa (e que, frequentemente, se apresenta como interlocução privilegiada de nosso discurso), ainda não está assegurada nossa humanidade; e, levando o tempo que seja necessário à garantia indubitável de nossa humanidade (que, em uma visão pessoal e pessimista, estaria pronto a dizer que ainda estamos deveras distantes; que, provavelmente, não acompanharei este estágio em vida), só e somente só após isso, poderíamos passar a discutir, de modo pertinente, nosso lugar nesta empresa de nos conhecer melhor como povo.

Evidentemente, há muita literatura negra em curso, neste momento, difundida por políticas editoriais renovadas e por uma atação crescente em redes sociais; contudo, acompanhando mais de perto resultados de pesquisas desenvolvidas pela equipe de nosso Projeto; e pensando, igualmente, nestes dois fatores supracitados como facilitadores ao acesso a esta literatura (novas traduções de literatura e de pensamento de mulheres negras, implicando a proposição e difusão de novas pesquisas a seu respeito; projetos macro- como a Biblioteca Assata Shakur, o Lendo Mulheres Negras, a Winnieteca); pensando nestes fatores, recomendaria um conjunto de contística de mulheres negras contemporâneas (além de Conceição Evaristo como uma espécie de metonímia desta literatura: Cristiane Sobral, Miriam Alves, Geni Guimarães, por exemplo) e um conjunto de romances negros contemporâneos não apenas de Eliana Alves Cruz mas, igualmente, de novas obras literárias negras nordestinas encontradas em perfis de Twitter como Resistência Afroliterária ou Impressões de Maria, para citar dois exemplos, assim como nos podcasts que dialogam com estas iniciativas). Começar por Conceição Evaristo e por estas mulheres negras supracitadas ofereceria um caminho ao início de uma resposta à pergunta.


domingo, 14 de junho de 2020

coronavírus: uma meia entrevista com Elias

Como as crianças pequenas estão encarando a pandemia e a redução do seu espaço de contato com o mundo? O diário quis ouvir um dos pequenos que ainda tem acesso nesse momento e trouxe aqui para compartilhar esse carisma: Elias Barros Romero (4 anos), que anda convivendo apenas com a família nessa quarentena- com a devida autorização do seu pai, meu irmão.



Infelizmente a tia tava mais preocupada em achar fofa a cena e perdeu os últimos segundos de fala dele, que continham algumas pérolas. Mas ele finalizou depois, mandando beijos. <3


Elias lembra que os espaços da cidade também são das crianças, coisa que é tão fácil de esquecer, falando daqui da altura do mundo adulto. Elas sentem falta de seus espaços. Em outra conversa ele comentou que sente falta de visitar as pessoas, da casa alheia, rs. Vamos continuar torcendo pra que essa pandemia passe logo, que sobrevivamos e que as ruas e os parque e os shoppings voltem a ficar apinhados de crianças só querendo o que é delas que é o brincar.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Entrevista: Heci Regina, tradução e Angela Davis


Heci Regina Candiani. Talvez você ainda não conheça esse nome, mas com certeza, já que você está aqui nesse blog, deve ter ouvido falar de Angela Davis, Ursula K. Le Guin, Octavia Butler, Magaret Atwood ou Nancy Fraser. A Heci, além de ser doutora em sociologia pela UNICAMP, é a incrível responsável pela tradução de muitas das obras dessas nossas autoras queridas. Por sorte minha, ela aceitou o convite para uma entrevista, que fiz lá na rede social do passarinho azul. Para não deixar a conversa muito dispersa, foquei mais no trabalho que ela desenvolveu com as obras da Angela Davis. Segue esse presente para todas e todos nós! <3

1.  Então, Heci, percebendo suas escolhas para tradução, notei que o conteúdo das obras parece quase sempre voltado para preocupações de justiça social, mesmo na literatura. Isso me fez pensar se, quando você está traduzindo, de algum modo sua formação em sociologia atravessa suas escolhas das obras ou até mesmo orienta suas escolhas por categorias, termos importantes para os livros? Ou você entende os dois como ofícios separados?

Acho que a sociologia e tradução são ofícios (gosto muito dessa palavra) que passam essencialmente pela pesquisa e, ainda que os métodos e objetivos dessa pesquisa sejam diferentes em cada atividade, existe sempre em comum a curiosidade, a investigação, a intenção de ir além do que está dado, do aparente, do superficial. Pela formação sociológica, tudo que leio, observo, me leva a pensar nas questões sociais e políticas envolvidas, nos discursos mobilizados, nas intenções que nem sempre estarão explícitas. Da mesma forma, a tradução me leva a estar atenta à escolha de um tempo verbal, de uma palavra e não de outra, da terminologia, da semântica. Todas essas ferramentas me servem tanto em uma atividade quanto na outra.

2.    Como foi que aconteceu seu encontro com a obra da Angela Davis? Você gostou da recepção do público à sua tradução?

Os textos da Angela Davis exigem uma abordagem feminista, conhecimento do marxismo e dos debates relativos a questões raciais, porque todos esses aspectos da obra têm reflexos na escolha de termos e no modo de apresentar as ideias. Quando comecei a trabalhar no primeiro livro de Angela Davis que traduzi, o Mulheres, raça e classe, eu fazia doutorado em estudos de gênero, então já estava envolvida com essas questões. Mas a obra que se sustenta em muitos detalhes da história e das relações sociais específicas dos Estados Unidos no momento do surgimento do movimento de mulheres e da luta abolicionista. Isso exigiu bastante pesquisa e a produção de muitas notas de rodapé para contextualização, tanto de termos como de informações que poderiam faltar para quem estivesse lendo o texto no Brasil, até porque mais de 30 anos separavam o lançamento do livro nos EUA e a tradução. E algumas pessoas que leram o livro comentaram justamente que consideraram importante a inclusão das notas e as escolhas de alguns termos, além da linguagem que problematiza a suposta neutralidade dos termos masculinos. Isso é muito gratificante para mim.  

3.    Na obra “Mulheres, Classe e Raça”, a Angela Davis desenvolve com muito respeito as críticas dela ao movimento para o voto feminino no século XIX, mas sem deixar de ser precisa em seus argumentos em apontar as graves falhas dele em diminuir a importância do movimento abolicionista que se tornaria o de maior destaque na época, ou ignorar as mulheres negras que também compunham o movimento, sendo esse seu principal ponto na primeira metade do livro. Você sentiu dificuldade em elaborar isso? Eu pergunto por que muitas vezes eu senti uma raiva absurda lendo as injustiças que os movimentos de mulheres negras sofriam (e sofrem) e eu acredito que raiva não deva ser um bom guia na hora de escolher as construções na hora da escrita. Como traduzir bem algo que dialoga com seus valores mais caros?

A própria Angela Davis, nas palestras que fez no Brasil no ano passado, comentou sobre a importância da raiva. A raiva é um chamado à ação, ela nos mobiliza, nos coloca em contato com a necessidade de transformar uma situação. (O que é totalmente diferente do ódio, que passa por um desejo de destruição do outro, presente na xenofobia, no racismo, no machismo, na exploração de uma classe pela outra). O que mais a raiva me dizia no momento de tradução desse livro é que quanto melhor eu pudesse fazer o meu trabalho, mais eu poderia colaborar para que o racismo, o machismo e a opressão de classe fossem compreendidos por mais pessoas e questionados.

4.    Você sente alguma diferença em traduzir autoras como Fraser e Davis e depois partir para obras literárias como as da Atwood? Pode falar um pouco sobre esse processo?

A obra literária coloca quem traduz diante de um número maior de questões estéticas, um cuidado diferente com a linguagem, experimentos linguísticos, recursos como rimas, aliterações, alguns aspectos formais do texto que precisam ser considerados porque, em geral, estão sendo usados para contar a história. Normalmente, isso exige, para mim, uma maior lentidão na leitura, na ponderação das escolhas, a exploração do vocabulário, é um processo mais demorado em cada frase. Já em um texto de não ficção, é mais raro que isso aconteça. Ao traduzir Davis, Fraser, Federici, as questões passam, em geral, mais por conceitos, termos, fatos históricos, referenciais teóricos. Há, claro, questões formais do texto, mas elas são menos presentes, as soluções exigidas passam mais pela pesquisa de dados, informações, a produção de uma nota de rodapé... É muito bom ter a possibilidade de lidar com esses aspectos diferentes de cada gênero, alternar entre obras diferentes, autoras e autores diferentes.

5.    Por último, você acredita que as tradutoras e tradutores devam se engajar mais em discussões públicas dos trabalhos que fazem ou não, devem ser profissionais discretos e distantes desse tipo de agitação?

Acredito que sim. Acho que os tradutoras e tradutores, por terem uma relação muito próxima com o texto, muitas vezes passando horas em uma só frase, dias tentando aprimorá-la, podem ter observações e percepções interessantes para compartilhar. Pensar o texto a partir da tradução traz mais elementos para compreendê-lo e analisá-lo.  



Heci, muito obrigada pela entrevista e já fica aqui o convite, desde já, para mais conversas sobre sua vivência no mundo da tradução!

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Cynthia Osório: entrevista




A Cynthia já apareceu aqui antes com sua poesia, mas agora fiquei com vontade de ouvi-la em uma entrevista e fiquei muito contente em saber que ela me concederia essa honra. É uma conversa importante para quem escreve, para mulheres que escrevem e também para quem de alguma maneira encarna algum marcador social que se sobressai nas relações sociais. Eu gostei bastante, espero que vocês curtam as respostas da nossa poeta convidada:

1.O modo como você se percebe influencia sua poesia? Como?

Total. Eu escrevo sobre o mundo que esta dentro de mim, ou ao menos, a partir dele. Então cabe aí muitas doses de mim mesma. Acho até que seja uma escrita imatura por isso, mas ela é  o que é. Não sei se te respondi.

2. Você entende a questão racial como um eixo que interfere na sua sensibilidade e vida criativa?

A questão racial é uma questão relativamente nova pra mim, estou em processo de descoberta  construção, aprendizagem de mim como mulher negra. Inconscientemente pode ter interferido já que, como disse antes,  falo muito sobre mim. Agora, nesse processo de conscientização, por assim dizer,  o que transparecer na minha escrita é/será intencional.  Então, interfere sim. A escrita pode ser uma ferramenta de luta antirracista, eu sinto a necessidade de construir em mim essa responsabilidade. E de maneira mais pessoal: escrever um instrumento de resistência ou re-existência num ambiente racista. Agora com sua pergunta reflito que quando/se o racismo me esgota mental e fisicamente, ainda assim, ele não me impede de criar, porque ainda que não saia uma poesia, por exemplo, eu escrevo. Escrever é criar.

3.Você pensa no Outro ou Outra que vai ler seu poema quando está escrevendo?

Quando escrevo pra que vejam eu elaboro mais, busco palavras. Outras vezes escrevo pra escrever, e acabo querendo que vejam, ou não. Quando faço essa escolha é sinal de que penso sim nas reações de quem lê.

4. Pretende publicar um livro físico? Quando?

Óbvio que já pensei e penso muito nisso, mas não é um peso nem uma urgência, não sei quando. O que sei é que vou escrever sempre. Confesso que a burocracia envolvida me intimida e até me cansa.

5. O que você acha que falta para a poesia feita por mulheres ser valorizada tanto quanto a do homem poeta no estado do Piauí?

Não sei se é apenas isso o que falta, mas iniciativas como clubes de leituras como o "Leia mulheres", publicações independentes como o zine "Desembucha, mulher!", por exemplo, são belas demonstrações de que só nós fazemos por nós mesmas, sem esperar aprovação ou apoio de homens, e dá certo. Claro, que se homens quiserem sair da sua zona de conforto e subverter a lógica  patriarcal etc ajuda, mas "homens, o que tenho a ver". É continuarmos a fazer como sabemos e podemos! 


6. Você tem algum conselho para dar a quem quer se aventurar pelo mundo da escrita, dos versos


Sugestão: escrever, ler, e olhar o mundo ao redor.



segunda-feira, 15 de julho de 2019

Entrevista: Malamanhadas Podcast

Olá, pessoas bonitas! Eu pedi para as jovens mulheres maravilhosas que fazem o Podcast piauiense & feminista Malamanhadas que respondessem 5 perguntinhas, naquele formato bem bruto que vocês veem aqui, vez ou outra. Inclusive, querendo ler as demais entrevistas, é só clicar na tag entrevistas ali embaixo.

Vamos para as perguntas!

1. Por que um podcast?

O podcast é uma excelente plataforma de comunicação por ser fácil e prazerosa. Embora já tenha alguns anos de existência, só agora, nesses últimos anos, eu diria, ele vem em um crescimento de popularidade, principalmente no Brasil. Apontam, inclusive, que 2019 pode ser considerado o ano do podcast. São vários os porquês. Assim como o rádio, ele permite aguçar suas habilidades sensoriais e também de concentração somente na audição, de você interpretar e entender a mensagem sem precisar estar vendo quem está falando. Fora também o lado de construção de podcast, esse lado mais colaborativo. É claro que há pessoas que fazem tudo sozinha, mas o podcast também é uma forma de reunir pessoas e de debater temas e pontos de vistas. Além disso, ele permite que você vá montando um audio de acordo com o que você quer que saia, com a edição. Sem falar que para quem escuta, há essa mobilidade, visto que por ele permitir download, ou seja, a reprodução no modo off-line, isso faz com que você possa ouvir e levar o conteúdo para diversos lugares, algo que o rádio não possibilita.

2. Por que um podcast sobre feminismo no Piauí?

Porque temos muitos podcast feministas pelo Brasil, mas muitos das regiões sudeste e sul, que inclusive amamos vários e temos como referência. Mas muitos também não representam nossa realidade não só como mulher nordestina, como também de referências do dia-a-dia. Fomos mais para esse lado de trazer algo diferente tanto para o mercado como também para as pessoas da nossa região. O lado do slogan ser “seu podcast feminista piauiense” é um regionalismo que foi unanime para a construção da nossa marca. Assim como o nome, “Malamanhadas”, uma expressão regional. Mas não queremos que seja algo restrito somente para quem é piauiense, muito pelo contrário. O podcast é daqui, mas é para todo mundo ouvir. O que é válido é estar ocupando esses espaços.

3. Em um tempo em que parece que não há tempo para ouvir o outro, como vocês se entendem sendo construtoras de uma mídia que pede justamente a escuta?

É difícil e é um dos porquês lá da primeira pergunta. Porque você não quer ser escutado só pela bolha que concorda com você. Nós do Malamanhadas queremos estar dialogando com várias pessoas e que pensam diferente. O podcast te permite o poder da voz, da palavra. Ele de fato é segmentado também, então geralmente, a pessoa que escuta podcast ela busca aqueles que levantam temáticas que lhe interessa, ela quer ouvir o que ela concorda minimamente com as colocações daquele produto. Esse caráter de restringir parece um pouco falho nessa questão de você ouvir pontos diferentes, mas é um desafio. Primeiro de tudo, tem que ocupar esse espaço. Tem que tornar esse tipo de conteúdo disponível, precisamos falar sobre questões importantes como o feminismo. Porque já é difícil quebrar essas barreiras com informação séria, imagine sem, prevalecendo só canais e meios de inverdades.

4. Quais podcasts inspiraram vocês ou que vocês curtem e que indicariam aqui para mim?

Más Feministas, Maria Vai Com As Outras, Pretas na Rede e Olhares Podcast são nossas referências na questão feminista, mas existe uma hashtag #mulherespodcasters que você coloca lá no twitter e é só sucesso. Eu sinto saudades do Bumbumcast e do Grampos Vazados, que são mais nessa pegada do humor, mas eles tão meio que parados, mas vale a pena muito conferir os antigos episódios. Enquanto eles não voltam, temos o Potocas Podcast, Filhos da Grávida de Taubaté e o Decrépitos Podcast. Gosto muito muito muito do Esquizofrenoias, Anticast e Revolushow.

Mas sempre que fazem essa pergunta pra gente, gostamos de citar essa hastag que falamos acima, e agora também acrescentamos uma lista feita pelas mulheres do Olhares: https://olharespodcast.com.br/200-podcasts-com-mulheres-podcasters/

(um parêntese para dizer que essa foi a primeira lista de indicação de podcast que aparecemos hahaha! Mas, muito além disso, essa é a lista mais completa que tem muita dicas incríveis!)

5. Quem vocês gostariam de convidar para um podcast de vocês e que seria aquela coroação do trabalho que realizam?

Qualquer integrante do Bumbumcast, principalmente a Hell Havani. A Branca Vianna do Maria Vai Com as Outras. As meninas do Más Feministas. A Eliane Brum, jornalista incrível. E a Rihanna, porque seria incrível conversar com a Rihanna em qualquer hipótese e gravar esse encontro. Seria mais legal ainda se eu soubesse inglês.


Respostas feitas por Ananda Omati, idealizadora e integrante do Malamanhadas, e Aldenora Cavalcante, integrante do projeto.

Interface do site do podcast (um desenho de uma jogadora de futebol negra com cabelos longos)

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Entrevista: Mauricio Gaia

Retomando as postagens de entrevistas com amigos que trabalham com arte em geral, hoje eu trouxe um convidado especial lá de São Paulo. O produtor cultural Maurício Gaia, que não gosta de ser chamado de Gaia (rs) e que para as amizades é mais conhecido como Mau. 
Jornalista e especialista em mídias digitais, Maurício Gaia, segundo sua descrição no blog Combate Rock, diz crer que "o rock morreu na década de 60 e que hoje é um cadáver insepulto e fétido e que gosta de baião-de-dois". Por esse último apreço, desconfio que o paulista sempre será bem-vindo ao nordeste:
1.       Então, Gaia, queria começar perguntando o que a música significa para você?
Pra começar, Gaia era meu pai. Eu sou Maurício para a geral, Mau para os amigos e Gaia para a moça que imprime meus boletos - aposto que é tuiteira, porque começou a me chamar assim da noite para o dia.

Música é um lugar que nos coloca em lugares que já pudermos ser confortáveis e, ao mesmo tempo, nos levar para outros lugares.  Quando eu escuto, sei lá, o primeiro álbum do Led Zeppelin, eu lembro da primeira que ouvi, em um verão muito, muito quente. Da mesma forma, quando escuto "future Days", do Can, eu me sinto m um lugar onde nunca estive, mas me parece confortável.

Mas a verdade que eu consigo passar alguns dias sem ouvir música, a não ser a trabalho. Música transcende, mas temos que saber o que acontece no mundo :) 

2.       Aproveitando que está acontecendo agora o In-Edit Brasil 2019, conta para a gente como é organizar um evento desse porte?

Não é fácil. Mesmo sem contar com a diretriz do governo atual, que trata o setor de cultura como inimigo, nos últimos anos enfrentamos MUITA dificuldade para conseguir patrocínio - nem dá para dizer que o In-Edit seja um grande (no sentido de estrutura, tamanho, etc) festival de cinema, nao conseguimos fazer que ele seja possível sem leis de incentivo - e a cada ano, vem diminuindo o dinheiro que conseguimos captar.

O fato é que, nos últimos anos fizemos com poucos recursos financeiros e com muita ajuda de amigos parceiros. Se chegamos a 2019, foi por conta disso. Nos próximos anos, não sei como será.

3. Como é ter um programa que fala sobre música transversalmente, mas tendo o rock como ponto de partida (ou de chegada)?

O produto música, de forma geral, perdeu muito do seu valor, e nem digo que isso se deva por conta da internet e sim por outros fatores. Todo mundo amava MTV, mas mesmo lá eles não tinham audiência o suficiente para bancar toda a operação. Como diz o jornalista Ricardo Alexandre, quer perder audiência, só colocar música, ou seja, de cara já saímos perdendo. Quando colocamos rock, que é um gênero que vem perdendo, não só no Brasil, mas como no mundo, nós nos colocamos na terceira divisão do rolê.

Mas, aí falo por mim, e não pelo Marcelo Moreira, meu sócio, meu foco não é só rock, ou pelo menos no que o roqueirão tradicional considera "rock". Dentro do Combate cabe rock e suas derivações, cabe soul, cabe samba, cabe rap, cabe tudo aquilo que é música boa e que tenha um contato com o universo contemporâneo. Já colocamos tanto Dorsal Atlântica como Luiz Melodia e Beth Carvalho. E Fela Kuti. E Ozzy Osbourne cantando com Kim Bassinger. E, se bobearem, coloco Banda de Pífanos de Caruaru. Porque o universo é muito vasto e a música também é.

Viajei.

4.       Conta aqui: quais seus planos para os próximos cinco anos?

Planos? Quais planos? Qualquer plano meu depende de grana e eu nem sei como isso vai ser nos próximos três meses, quiçá cinco anos.


5.       E, finalizando essa entrevista, sugere aí 3 músicas ou bandas para as leitoras e leitores do blog e aproveita e diz quando você vem no Piauí (rs).
três links, sem me preocupar com o tempo
https://open.spotify.com/track/7Dprt8s1FohodJYtCNcM4a?si=Y9hNHqNzS-6ExSmlu4b6nA (pode ser que eu tenha chorado na plataforma de embarque de metrô ouvindo isso)
https://open.spotify.com/track/1Y6Dv0tWYUP3Za2Es9FUL2?si=v7eyh_KvQrmWvYS8Il7gtw - amo hendrix, não é minha música favorita dele, mas mostra o que mais eu gosto nele - as baladas. 

Por mim, iria para o Piaui e pelo Nordeste inteiro, que é o que salva o país, o mais rápido possível, espero que em breve possa ir ao PIAUÍ.

Ps. Como bônus, Maurício Gaia falou um pouco sobre a construção do Combate Rock:

Ele surgiu em 2010, no grupo O Estado. E existiam outras pessoas: além do Marcelo Moreira, que hojé é um dos sócios da holding, tinha o Décio Trujillo, que era editor-chefe do Jornal da Tarde, Daniel Morango, Marcos Burghi, todos eles, juntos com Moreira, vulgo Coxa, colegas de trabalho. 
Eu tinha um podcast, chamado "Noites de Insomnia" - nem o nome foi dado por mim, sim por Carla Coutinho (de quem eu perdi contato, aliás), e o Coxa me pediu ajuda para fazer, gravar podcasts. Foi assim que eu acabei entrando na equipe do Combate - eu gravava, editava e produzia os programas de rádio, que começaram como podcast e depois viraram programas no Território Eldorado. 
Com o fim do "Jornal da Tarde", o grupo Estado disso que gostaria do conteudo, mas sem pagar nada. Aí, levei o projeto ao UOL. Naquele momento, ficamos Marcelo Moreira e eu, e os demais partipantes decidiram ceder a mim e a Moreira o nome Combate Rock - muitos deles participarem de programas já na fase UOL, por absoluta conta e risco deles ) 
Bom, em 2013, levei o projeto para o UOL e, desde então, somos Marcelo Moreira e eu, com o apoio e simpatia de todos os demais que já passaram pelo Combatão das Massas.

E é isso aí! Até a próxima entrevista! <3

Mauricío Gaia, puro estilo em sua blusa de galáxias da Tampa de Crush (Natássia)


segunda-feira, 21 de maio de 2018

Qual o lugar na mulher na produção cultural piauiense?

Gostaria de compartilhar com vocês essa bonita reportagem. Ela fala de duas iniciativas belíssimas de promoção cultural liderada por mulheres: o "Leia Mulheres", Teresina e o "Zine Desembucha, Mulher!".




Infelizmente não foi ao ar [edit. foi transmitido na semana seguinte]. Seja lá quais tenham sido os motivos, é importante frisar que para começarmos a criar um novo vocabulário, que promova uma ruptura no foco das reportagens locais em apresentar mulheres apenas em papéis tradicionais, ou como corpos assassinados por seus companheiros (feminicídio, com números a não serem ignorados no nordeste), é preciso que não seja tão fácil assim cortar a divulgação das muitas iniciativas femininas, em ambientes marcadamente dominado por homens. Limitando-me a pensar o espaço da escrita e do seu reconhecimento, ainda que as mulheres tendam a ser maioria em cursos como o de Letras, por exemplo, os cargos de poder nas universidades, as cadeiras das academias de letras e os escritores convidados como estrelas dos eventos literários continuam sendo homens (e homens brancos). Por esses lapsos estruturais, que terminam excluindo as mulheres de modo institucional e também, por conta das falácias imediatistas da moda, que tentam desmerecer os dados e as políticas públicas já plenamente justificadas por décadas mundo afora sobre as questões de gênero, é que se torna dever de cada uma de nós e cada um de nós, nos esforçarmos para termos nossas vozes ouvidas e as das demais mulheres e também dos homens que entenderam que o mundo agora é outro. 

Na terça-feira, dia 22 de maio, às 18:30h estarei compondo a primeira mesa de um ciclo de conversas que a Revista Revestrés promoverá para dialogarmos sobre as diversidades que são as bases do nosso mundo e sobre o papel da mídia e do jornalismo em meio a tudo isso, incluindo aí as tentativas de retrocesso, backlashes esperados de quem ainda não entendeu que seu tempo passou.


quinta-feira, 20 de abril de 2017

Uma entrevista com André Gonçalves

André na sua instalação [ quanta fotografia]. Foto tirada pelo Maurício Pokémon


Na postagem especial de hoje, eu trago o artista que mais apareceu no meu blog desde o início dele. Fiquei bastante feliz e até emocionada com o resultado da conversa (que foi por email, por questões geográficas) e com a disponibilidade do André Gonçalves em atender meu singelo convite em fazer essa participação no Diário, agora como voz ativa.

Espero que curtam como eu curti ler e pensar sobre o que André compartilha conosco:



    [DCPA] Antes de tudo, eu gostaria de agradecer a sua disponibilidade em participar como entrevistado do blog. Faz algum tempo que lhe acompanho como artista e eventualmente algumas obras já foram usadas aqui como “pré-texto” de algumas divagações do Diário, com sua autorização (rs), por isso eu gostaria de frisar minha alegria com a entrevista. Agora posso começar.
A. De nada. 


[DCPA] André, como surgiu essa vontade de se expressar por meio da arte? Houve um momento epifânico?
A. Se houve esse momento eu não percebi. O que lembro, e não sei até que ponto lembro ou preencho lacunas na memória, é que desde muito cedo eu já tinha o hábito de criar imagens e personagens pra mim. Aprendi a ler muito cedo, aos 3 anos já lia frases e aos 5 lia e escrevia, lia inclusive revistas e começava a ler livros. Aos nove eu já fazia textos, arremedos de poemas. Nessa época também ganhei minha primeira câmera fotográfica, dessas de plástico, passava o dia fotografando. Com 12 ou 13 anos acompanhava meu padastro que era fotógrafo de casamentos, e eu segurava o “pau de luz”.  Além disso fui criado sozinho, e brincava comigo mesmo. Imagine, eu jogava War sozinho, sendo, ao mesmo tempo, 5 ou 6 jogadores. Era algo até meio esquisito, eu fazia disputa de pênaltis comigo mesmo, era ao mesmo tempo goleiro e batedor, chutando a bola na parede e tentando defender. Então, tudo isso me leva a crer que nunca houve “um” momento: isso de criar personagens, histórias, imagens, vem mesmo desde muito cedo, quase que como uma necessidade para sobreviver a uma infância bem solitária e com momentos bem difíceis.

     [DCPA]Lembrando do seu trabalho, que passeia pela fotografia para publicidade, fotografia enquanto arte, literatura, instalações artísticas, pintura: haveria uma hierarquia entre essas suas escolhas no sentido de que uma delas ocuparia o lugar de destaque dentre as demais? Se existe, qual delas e por quê?
A. Não vejo nenhuma hierarquia, não que saia de mim, pelo menos. Talvez alguém, olhando de fora, perceba algo. Não tenho nenhum rigor para quase nada na vida, então isso também vai acontecendo. Tem dias que fico louco para fazer uma imagem com a câmera, às vezes passo 6 meses sem nem olhar para ela, é um objeto estéril. Às vezes passo dias intermináveis lendo, querendo escrever, e acontece de passar 2, 3 meses sem abrir um livro (digo, abrir de forma “ordenada”, ler inteiro), fico vendo um trecho aqui e ali, lendo na internet. Então, não tenho nenhuma hierarquia. Na verdade eu não suporto hierarquias, luto intimamente comigo mesmo para sobreviver a cada dia nesse mundo tão hierarquizado.  Às vezes é bem complexo acordar, passar o dia e chegar à hora de dormir. Até nisso “desierarquizo”, às vezes. Às vezes decido não dormir, e pronto: porque, sou mesmo obrigado a isso? 
     
     [DCPA]  Até o momento, você escreveu dois livros de literatura, fora os livros jornalísticos pela Revestrés. Nos dois livros, fica bem claro seu desapego aos modelos tradicionais da escrita e do formato literário, no “Coisas de Amor Largadas na Noite” nós temos as páginas soltas como cartões e em cada uma das páginas um escrito seu, que pode ser descrito como poesia, mas nem sempre. Eu vejo alguma influência da literatura do século XX nisso, nesse modelo mais fluido, mas também percebo sua habilidade como comunicador na publicidade. Já no "Pequeno dicionário das mínimas certezas", além do texto escrito, também bastante provocador em termos de forma, inclusive tem um que chega ao meio e você precisa lê-lo de cabeça para baixo que eu achei ótimo, a numeração aleatória ou com algum padrão desconhecido, a linguagem com imagens construídas tão repentinamente que umas se sobrepõem às outras ao longo do desenvolvimento do texto e todos esses volteios que, tenho a impressão, dialogam bem com uma parcela da juventude que te consome como escritor, tendo alguns até já transformado em música teus poemas. Eu queria saber três coisas sobre seu processo de escrita: quais suas influências literárias, ou pelo menos, qual o tipo de literatura que te agrada? Qual o conselho que você daria para uma escritora ou um escritor iniciante que gostaria de se aventurar no mundo da criação e publicação literária? Quando teremos um novo livro de literatura seu?

A. Eu sou do século XX, né? Com tudo que isso pode ter de bom e ruim. Nasci em maio de 1968 e desde muito cedo, com aquela curiosidade infantil, fiquei sabendo que era uma época muito simbólica, e certeza que isso interferiu demais em mim, mesmo que eu nem entendesse bem o que significou maio de 1968 naquela época. Claro que a literatura do século XX grudou em mim. Em Minas tive um contato bem cedo com Roberto Drummond, cheguei a conhecê-lo pessoalmente ainda garoto, lia os livros dele e tive um encontro emblemático com ele quando eu tinha uns 12 ou 13 anos, que me marcou profundamente. Para dar uma ideia, ele perguntou se eu lia os livros dele e eu citei de cor duas páginas inteiras de Sangue de Coca-Cola, e ele ficou um tanto abismado. De algum modo tentei imitá-lo, escrever como ele, e daí a coisa foi se tornando algo que ia aglutinando as referências dele, Roberto, e você sabe: é como quando se lê um livro de filosofia, por exemplo. Você lê, diz “uau, sei de tudo” e chega à bibliografia: aí tem mais 50, 60, 70 autores que você precisa ler, que são as referências daquele que você acabou de ler, e aí você volta a se sentir quase um analfabeto. Isso foi acontecendo, e alguns escritores em especial foram me formando “enquanto pessoa”. Vou citar alguns, mas vou esquecer de algumas dezenas: Cortázar, Borges, Bioy Casares, Saramago, Carlos Drummond, Ana Cristina César (que conheci em mais uma coincidência quando eu era criança, em Brasília), Manuel Puig, Caio Fernando Abreu, Leminski, o próprio Roberto Drummond, Rubem Fonseca, Garcia Marquez, Neruda, Alejandra Pizarnik, Carlos Eduardo Novaes, Luís Fernando Veríssimo, um pouco de Machado de Assis, um pouco de Guimarães Rosa. E ainda um Sidney Sheldon, de vez em quando. Perceba que tem muitos argentinos. Fui vizinho de argentinos, minha avó viajava com frequência para a Argentina, então eu me considerava quase portenho, e isso me trouxe a literatura argentina. Adolescente, li Henry Miller (Sexus, Nexus e Plexus), o que era meio “pesado” para quem tinha 13, 14 anos . E a partir dele li mais alguns beats: Kerouac, Allen Ginsberg, Neal Cassady. Então, veja que eram muitos e, ainda hoje, é uma literatura não muito “comportada”, digamos. Só depois de adulto cheguei a alguns clássicos, à literatura europeia, além de filosofia, psicanálise, psicologia, etc. Mas tudo muito aleatório, sem grande ordenamento nem orientação de ninguém. Tenho buracos enormes na minha formação literária. Digamos então que, com toda a modéstia que é possível, essas pessoas formaram uma “base”, não apenas literária, mas existencial. Como disse, fui muito solitário na infância, e esses eram meus amigos e amigas. Com elas e eles aprendi sobre amor, sobre vida, sobre amor, desamor, hierarquia, desierarquia, medos, valores, tristeza, melancolia. Não tem como, mesmo com uma certa avalanche de leituras posteriores, deixar de perceber que desde uma forma de escrita (pretensiosamente falando, já que tenho dois livrinhos, apenas) até a busca dessas falta de ordem: numeração de páginas trocada, histórias entrecruzadas, textos “sem começo”, ou sem linha mestra. O que eu li nessa fase, e eu lia às vezes dois ou três livros de uma vez (hoje estou bem preguiçoso), me formou como cidadão e todo meu “ideário” surge a partir deles e delas.
Quanto a conselhos, sou incapaz de dá-los, ao menos de forma “séria” ou “profunda”. Digo apenas para procurarem sua verdade. Fazerem como e o que quiserem e os fizer felizes. O resto, não importa. Não fazer do criar um “negócio”, mais do que um momento de libertação. Se isso é um bom conselho, depende de quem lê. E sobre um novo livro meu, não sei. Tentei fazer um romance, mas sou um desastre para ter a disciplina necessária para isso, ainda. Vamos ver um dia se sai algo, se possível melhor que o que já fiz. Mas, no mínimo, se sair, eu terei sido verdadeiro com o que sair.

      [DCPA] Agora sobre as artes plásticas, que apesar de ser sua incursão mais recente em termos de arte, me sugere uma certa conexão, mesmo que por meio de um salto, com o trabalho que você vinha desenvolvendo com a fotografia, já que ambas apelam para um certo grau de abstração, a fotografia eventualmente e a pintura, sempre. Então: por que o abstrato? Você poderia falar um pouco dos artistas que te inspiram na pintura? Como você tem percebido a relação do seu público com sua obra mais recente?
A. Não pensei sobre isso, mas acredito que haja, sim, uma conexão forte. Durante um bom tempo tive a ilusão de que ser fotógrafo era ser Bresson, o que, claramente, é impossível. E limitador. Hoje, com a fotografia expandida e todas as convicções virando pó (eu falava sobre isso há 20 anos, o fim das convicções, e olha como isso chegou), a gente vê que é impossível ser uma coisa só, “a fotografia” são muitas e, de certo modo, radicalizando um pouco, nem dá para afirmar com certeza de que ainda existe “A” fotografia. Isso abre espaço para que possamos ser nós mesmos, e não novos “Bressons”. Clicar subjetividades, transformar a realidade ao invés de retratá-la, ou mais ainda, criar uma não-realidade maravilhosa para se viver. Ou seja: a fotografia, se ainda a chamamos assim, se liberta definitivamente da obrigação documental que muitos ainda impunham a ela, e se torna imagem, o que faz, dela, qualquer coisa que se queira. Então chegamos a um certo estatuto “mole” da fotografia contemporânea, que se liberta também da eterna discussão “é arte x não é arte” e vai além de qualquer definição clara. Quanto a meu fazer arte, posso dizer que só foi possível quando percebi essa libertação em mim mesmo. Um dos lados ruins do século XX foi uma tendência a tentar definir algumas coisas dentro de estruturas rígidas, de certo modo um contrassenso histórico, né? Então eu nunca me senti “artista”. Sempre fui algo paralelo, que caminhava ao lado flertando com o fazer artístico, mas nunca me pensei “artista” porque veja, eu mal sei desenhar um círculo, e por muito tempo me disseram que para ser artista era preciso desenhar círculos perfeitos, corpos humanos irretocáveis, saber a escala cromática mesmo de olhos fechados, e por aí vai. Descobri ficando mais velho que não é isso “A” arte. Porque, talvez, ela não “seja” nada. Há pouco tempo decidi que não interessa o que pensem, eu sou artista – mas também posso não ser – dependendo, apenas, do que penso e faço a esse respeito. Você pergunta porque o abstrato, e mais uma vez não sei explicar. De novo, acho, são as questões pulsantes no século XX me pegando pelo pé. Sempre gostei dos artistas e dos movimentos do pós-guerra – o expressionismo abstrato norte-americano de Franz Kline, Rauschenberg, Pollock, De Kooning, Rohtko, Reinhardt; o tachismo europeu de Soulages, Hartung, Tápies; desobri os coreanos do Dansaekhwa, como Lee Ufan e Park Seobo; o movimento Gutai do Japão; - todos eles se ligando, de alguma maneira, pela recusa à forma figurativa, pela crítica às belas-artes, pela valorização do gesto e se contrapondo a qualquer formalismo, no caso dos japoneses e coreanos de alguma forma também ligados a alguns norte-americanos a busca pelo mínimo, seja em cores ou gestual, além de materiais fora da produção industrial ou “caros”. Acho que aí chego também no lugar de recusar as formalidades e hierarquias, e instintivamente, claro, tento me aproximar deles. Mas é ainda um momento de estudos, de busca, ainda em busca da minha verdade e do meu fazer como artista visual. Já sei muito claramente o que não quero, mas ainda não cheguei a definir algo que queira. E ainda tem as frustrações do não ter habilidade para algumas coisas e ter para outras: quero dizer que muitas vezes quero algo mas nunca conseguirei fazê-lo, então vai por ai também a busca dessas “verdades”. Descobrir o lugar onde meu querer se cruza com o meu conseguir fazer. No fim das contas, o mais importante é mesmo o caminho, é nesse caminho que a gente se diverte e sobrevive. Chegar a um ponto determinado anteriormente é algo bem utópico e, talvez, meio sem graça. Sobre a relação com o público preciso, antes, ter um “público”. Não sei se já o tenho e, mesmo que tenha, não tenho condições de falar sobre. Quero que esse público se relacione com o que faço, porque será nessas coisas que eu estarei. Gostaria que um dia as pessoas possam se relacionar com meu trabalho. Eu, eu mesmo, não importo. Eu sou aquilo que está exposto nisso que chamam de minha “obra”. Todas as minhas contradições e dúvidas e convicções que se dissolvem e se tornam outras estão ali.

 [DCPA] Sobre seu trabalho com criação e divulgação de arte e cultura, você vê caminhos possíveis do artista sobreviver do trabalho dele mesmo em um estado com recursos escassos como o nosso?

O que tenho visto é gente criando e produzindo independentemente da certeza de viver desse ou daquele modo. A experiência da Revestrés tem me mostrado muita, muita gente maravilhosa jogando suas verdades, seus sonhos, suas vidas no fazer artístico, e isso emociona quando se sente essa tal verdade na criação. Não posso dizer qual o caminho ideal, nem se a arte como modo de produzir possibilidades de sobrevivência material é algo assim ou daquele jeito. São questões que me afligem no dia a dia, como observador, como divulgador, como espectador ou como artista, mas não consigo fechar uma equação. Não sei se um dia “o artista”, esse ser um tanto genérico, poderá sobreviver dentro de padrões e expectativas sociais. Certamente alguns sim, muitos não. Uns vão abandonar a arte por necessidade material, outros vão abandonar o material e dar a vida pela arte. Alguns devem ficar ricos, outros, a maioria, talvez não. Acredito, sim, que o Estado tem a obrigação de apoiar os fazeres artísticos, porque nem tudo que se produz em arte – talvez a grande maioria da produção artística – não tem nem deverá ter “valor de marcado”, não será vendida, o artista não poderá viver apenas do que fizer e precisará de apoio. E a busca pela sobrevivência pode atrofiar certas formas de criação. No fim de tudo, acredito mesmo que quem sobreviverá será a arte. O poder público tem de pensar a arte não como produto nem como mercado, porque isso é a lógica de outra esfera, de outro campo. A arte é maior que qualquer mercado, por mais que existam mercados que façam circular fortunas por obras de arte, nem todas sendo arte. Os artistas, ricos ou não, com grandes resultados de mercado ou com grandes obras fantásticas porém esquecidas, vão passar. Só a arte não passa. Daqui a mil anos só o que for arte verdadeiramente falando vai estar aqui, se não fisicamente (afinal, pode haver arte sem objeto), como experiência inesquecível, ou simbólica, ou transformadora. E isso tem de ser pensado, preservado, compreendido. Outro dia alguém me disse: “porque você não assina seus trabalhos? Daqui a cem anos ninguém vai saber quem fez”. Respondi que, daqui a 100 anos, não farei a menor questão de que saibam que fui eu quem fez isso ou aquilo, já que estarei morto. Se o que fiz estiver ainda ali e despertando algo em alguém, eu estarei. Pensar nessa possibilidade, que é até remota, me basta, me move.


Para quem ainda não conhece. O trabalho do André pode ser apreciado nas redes sociais abaixo:
 http://cargocollective.com/andrepiaui

https://www.instagram.com/andrepiaui/

https://www.flickr.com/photos/andrepiaui

E claro, a maravilhosa Revestrés:  http://www.revistarevestres.com.br/ http://www.revistarevestres.com.br/blog/andregoncalves/

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