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sexta-feira, 5 de abril de 2024

Marguerite Yourcenar- Memórias de Adriano*


*Texto publicado originalmente na newsletter "Clube de Profecias" do mês de março.


Recentemente li um livro que uma grande amiga recomendou há muitos anos atrás. Escrito em 1951, por Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano realizou o feito de entrar no rol dos melhores livros que li na vida. E escrevendo esse breve comentário aqui, penso que não sei se eu teria aproveitado bem a leitura, se tivesse lido mais de 10 anos atrás, quando Laís me indicou. Há um tipo de maturidade que precisei acessar especialmente para ler esse tipo de monumento histórico-imaginado, em que eu passava a ser o Imperador, com todas as imensas contradições que a figura histórica deixou de resquício- que as páginas do livro aproveitam com ardor.

Não me envergonho de dizer que me senti o próprio personagem principal em suas memórias, mesmo quando elas me mostravam uma situação que meu eu do presente iria facilmente por outro caminho.

Eu digo não me envergonho, porque a própria autora confessa ter feito esse tipo de exercício mental ao longo dos vários anos em que pensou aquela pessoa: visitou várias vezes a Villa de Adriano, as esculturas, os lugares que ele construiu ou reconstruiu. Não só visitava, mas meditava, tentando ver pelos olhos dele, como ele encarava cada um daqueles espaços e quem estaria com ele naquele momento.

Não sendo acadêmica, Yourcenar criou muitos métodos para construir as cenas, os cenários, as pessoas que realmente existiram e que estão ali falando, andando, amando, morrendo. Ela era muito exigente consigo mesma, como todas as boas escritoras.

Marguerite Yourcenar sua companheira Grace Frick, no jardim,1955

Apesar da amiga querida ter me indicado o livro, o que me fez ir finalmente atrás de suprir essa falta no presente, foi um comentário de uma pessoa que compartilhava nas redes sociais uma visita a uma estátua de Antinoo (ou Antinous). Fui atrás da história dessas estátuas e descobri a história do amor entre Antinoo e do Imperador, o que me deixou perplexa, porque de fato existem ainda hoje inúmeras estátuas que Adriano mandou ser esculpidas, após a perda do jovem companheiro- inclusive no Vaticano. Quer dizer: por que um imperador se importaria tanto com uma pessoa? Talvez eu esteja julgando seres humanos do passado precipitadamente? É óbvio que o erro é certo em algum nível.

Enquanto lia sobre, me chamou atenção umas questões bastante mundanas, como: que tipo de patriarcado era esse? Não havia cristianismo como a grande religião, havia uma mistura de cultura entre Grécia, completamente dominada por Roma e esta última que estava praticamente com sua extensão máxima desde o imperador anterior, cheia de outros povos incorporados. Não havia família como era concebida hoje, os papéis dos gêneros eram especialmente diversos nas camadas mais poderosas. Não havia culpa cristã, havia ainda o “instituto” da pederastia (sim era um instituto moral e é importante entender no caso da obra). Eu me permiti um exercício de entrega, confiando que a escritora sabia o que estava fazendo, ao ressuscitar um mundo tão diferente.

O resultado foi um primor. Pouquíssimas vezes eu saí da história por algum comentário que remetesse mais ao século XX, que ao século II, especialmente na questão ética e moral. Até a questão política me acrescentou novos espaços de reflexão, ao contextualizar a dinâmica entre o poder central e os poderes periféricos.

Acho que mesmo para aqueles e aquelas que não gostam de romance romântico- muitas vezes eu sou uma dessas pessoas- em livro, vai gostar porque várias facetas de Adriano aparecem: o jovem meio deixado de lado, o guerreiro, o juiz, o amante, o cônsul, o imperador, o construtor, o espiritualizado, o impiedoso, o espanhol e o grego. E a linguagem adotada é simplesmente: linda, belíssima.


busto de Antinoo


estátua de Antinoo, como Dionísio, encontrada no Vaticano

                          

Obs: O primeiro link está em português. O segundo foi posto mesmo em inglês, porque traz mais informações sobre a autora. Curiosamente a versão em português suprime até dados daquele quadro de informações básicas, como o nome da companheira da escritora. 🤔

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

A estepe - Anton Tchekhov

e tem apenas 144 páginas ☝



Esse livrinho marcou meu reencontro com um dos autores mais queridos dos meus vinte e tantos anos. Mais de uma década depois, por conta de uma Maratona de Leitura, decidi dar uma conferida, retornando a um terreno já conhecido. Ou quase.

A estepe é um dos primeiros trabalhos de Tchekhov, que antes escrevia basicamente textos não ficcionais. O Tchekhov teatrólogo, por exemplo, ainda não existia. Mas aos 28 anos, já trazia na escrita uma alma marcada pelo cenário exigente e melancólico de alguém que conhece a natureza da própria pátria, a Rússia, sendo já capaz de fundir personagens e paisagem, daquela  maneira que não é estranha à leitora que já teve curiosidade de folhear a literatura do país produzida durante o século XIX. Uma aproximação com os contos do Guimarães Rosa, que viria anos depois, por exemplo, seria muito justa. A estepe russa no verão e o cerrado brasileiro parecem oferecer esse tipo de vivência que no meu coração podem até ter uma estrada direta ligando (do calor ao frio e vice-versa), como se  fosse uma Pangeia.

Mas divagando um pouco menos, é uma leitura que se afasta do nosso hábito atual da velocidade, comandado pelas redes sociais, algo que pede calma, sossego, contemplação. A paisagem no convida a apreciar a lentidão das carroças e a viagem de um menino de 8 anos, em busca de ensino formal, de acordo com a vontade da mãe. A cena da tempestade é uma das minhas favoritas, unindo imaginação e natureza. Junto de um tio e outros viajantes, ele vai compartilhando o destino dos conhecidos e dos passageiros encontros, enquanto sua existência é esticada ao longo do caminho.

essa é ela, a famosa estepe russa


A interação do segundo grupo de companheiros de viagem do rapazinho indica com um potência que poderia ter sido explorado, deixando pinceladas que me lembravam um pouco do Dostoiévski. Não só isso, mas foi o que mais gostei.

Como se trata de uma história curta, mesmo as meditações explícitas das personagens são escassas, mas o sentimento, que vem forte, se dilui em um céu colorido, um campo amarelo, uma lagoa enevoada. No nascer e no por do sol.

Por fim, o texto retorna para a despedida da criança, de sua casa materna, para enfrentar o mundo que descobriu ser um pouco maior que casa dos pais, estendendo sua comunidade e seu olhar, suas sensações, um pouco mais além.

🌾

sábado, 13 de janeiro de 2024

Demônios- Aluísio de Azevedo & Guazzelli

Reencontrei um velho amigo dos tempos de escola ontem: Aluísio Azevedo. O escritor maranhense, o maior nome brasileiro do naturalismo, deu as caras em uma HQ que escolhi ler para um projeto de verão, o conto Demônios. Foi uma surpresa me deparar com essa obra ilustrada. E, pensando nisso,  concluí que o naturalismo combina demais com a questão imagética. Suas descrições sensoriais só ganharam com as cores do artista Eloar Guazzelli, que leu o conto muito jovem, ainda. Aquelas impressões não devem ter saído do inconsciente de Eloar, que uniu sua imaginação a do antigo escritor e criou uma obra menos perturbadora, que curiosa e bonita. ❤

capa em roxo, cidade de são luis, peixes gigantes flutuando
série clássicos em hq - petrópolis- demônios- aluísio de azevedo & guazzelii


Da minha parte fiquei positivamente surpresa em encontrar tanto subgêneros atuais, fragmentados nesse delírio de Aluízio de Azevedo. Uma boa parte se assemelhou até mesmo com Elantris, do Brando Sanderson! 😇

Psicanálise, biologia, evolução, fantasia, terror, surrealismo, suspense, poesia. Essas são as minhas palavras para esse conto. 

Muito curioso, rápido de ler e eu acredito que inclusive as ilustrações ajudaram bastante a aumentar a dinamicidade do texto, que poderia ser enfadonho para o padrão acelerado contemporâneo. 

Por fim, deixo uma pergunta para você pensar depois que lê-lo: quem são os demônios? 😉

Super recomendado! ✌


Ps. Li Demônios para a Maratona de Leitura de Verão #MLV2024, que é um movimento na comunidade de leitores, criado pelo Victor Almeida, do Canal Geek Freak. Estou gostando de participar porque estou tentando variar um pouco nos gêneros e subgêneros. 💚

Pps. Eu aprendi na escola a chamar Aluísio DE Azevedo, então você viu escrito das duas maneiras, porque não estou aqui para padronizar. Ah! O nome dele todo era Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo. 

quarta-feira, 9 de março de 2022

Notícias do BREU



 

● EU Sou Uma Livraria: Dani Marques, com seu sebo e livraria, divulga todos os dias no Instagram, ótimos livros que você pode adquirir para ler e também dar uma força para o pequeno negócio. Dani também colabora no site "Noise Land", falando sobre música, livros e shows; 


● CINTHIA Osório continua num produtivo momento com suas poesia, que ela compartilha com seu público também no Instagram "Gosto de Letras". Segue uma delas, resgatada do ano de 2014:

 


Medida

 

o tamanho da minha espera

celebra sua presença exagerada

quando você é tudo o que couber de saudade

mas não me ame sem rumo

decore as imediações dos meus lábios

não me ame à espreita

percorra a distância dos meus braços abertos

me queira com hora marcada

e faça um acerto com a hora errada

não asfixie declarações na sua boca de cigarro

nem cuspa o chão como ruído do que não é

possível dizer

não esteja presente se não puder dê-lo

 Cynthia Osório, 19/06/2014.


 



● SAIU o mais novo texto da Laís Romero no site d'O Estado Do Piauí. Lá ela retorna ao primeiros passos do ato de escrever, que seria compreender como se escreve, ou como escrevem nossas inspirações. O metatexto sugere leituras muito ricas em suas margens, vindos da diversa experiência da Laís com a escrita; 

 

● LARA Matos está concluindo seu novo trabalho em poesia, "Os Santos Dias". Logo teremos um belo zine para ler;

● NAYARA (eu) logo menos estarei divulgando aqui novos poemas, talvez acompanhados por alguns dos seus experimentos: desenhos simples, inspirados por flores, Pinterest e seus diários. Continuo atendendo tarô. 



quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Os labirintos [estudo]: duas versões para o mesmo poema

Poema sobre o mito do Minotauro

o labirinto em que me encontro
não tem soluções felizes
ao acaso
e todos os dias que me restam 
pergunto: qual será o dia da minha liberdade?

se dependo de teseu e não
de ariadne,
sei que metade de mim é
herói em apuros e a outra metade,
príncipe amaldiçoado.

se dependo de ariadne e não de teseu
morreria esperando por um fio que fosse da sua roca.


quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Hoje você tocou na minha pele- Dani Marques

O texto hoje é de uma amiga. Convido-lhe a dar play e ouvir esse sensível monólogo, que trata sobre família, sentimentos, expectativas e outras coisas que você vai encontrar(-se):



 A Dany já apareceu AQUI no blog. 

terça-feira, 18 de maio de 2021

Romances & Fantasias que saem da caixinha

 

bandeira do orgulho lgbtqi+
Arte da Bandeira do Arco-Íris

Depois de muuuito tempo, senti vontade de escrever uma postagem longa. Chega mais! 😉

Aproveitando o dia internacional de combate à lgbtqi+ fobia (17 de maio!), cumpro um desejo de fazer essa postagem falando de alguns livros queridos que andei lendo ultimamente. Lembrando que aboli quase todas as leituras distópicas e que tirem o pouco de esperança que me resta- vocês entendem, né? Talvez viver sob pandemia e no Brasil tenha algo a ver com isso. Infelizmente, ainda não consigo cobrir toda a bandeira, mas, ao final, tem uns links de outros blogs muito mais avançados nesse quesito. Bora lá!

Os três livros da trilogia as peças infernais
As peças infernais. Por acaso os três personagens das capas são representações jovens Will, Jem e Tessa, que você conhece logo de cara na obra

No meio das minhas leituras de romances e históricos e livros de fantasia (escrito por mulheres), que tem sido meu foco de leitura desde o ano passado- tipo, exclusivamente MESMO- terminei esbarrando na trilogia PEÇAS INFERNAIS, da maravilhosa escritora estadunidense, mas nascida no Irã, Cassandra Clare*. A história é envolvente, os personagens são adoráveis e mesmo se tratando de adolescente, são poucos os momentos em que eu perdi a paciência com as teimosias que as escritoras de ficção fantástica impõem às heroínas e heróis para darem a impressão de que tem a personalidade forte. É um mundo cheio de figuras fantásticas como lobisomens, vampiros, fadas, feiticeiros e os Caçadores das Sombras, quase sempre o foco de suas trilogias. É curioso o modo como um triângulo amorosos (mas eu confesso que detesto livros com triângulos amorosos em um mundo em que existem outras possibilidades de relacionamento) é desenvolvido lá, além disso, não me escaparam a percepção de que a classe que tem o digamos “Poder estatal dos anjos”, pode ser sim um tanto fascista.

As Crônicas de Banes, que já está traduzida para o Brasil 😋

Bom, mas não sendo esse o meu foco, passo adiante, no meio de toda a confusão desta trilogia, conhecemos o poderosíssimo feiticeiro indonésio Magnus Bane! E foi ele que me cativou e me chamou a atenção para as obras que indico a seguir. Tudo isso porque Magnus Banes é um imortal bissexual que tende a tragicamente a se apaixonar por mortais. 

Magnus, com seus olhos de gato em destaque e uma chama azul nas mãos- olhando de lado
O feiticeiro maravilhindo Magnus Bane. Sim, eu gosto muito dele

Fui completamente arrebatada por ele! Mais uma prova do poder de gerar empatia da literatura. A série de TV na Netflix cumpre bem o papel de apresentar o personagem, ainda que peque em outras coisas (efeitos, simplificação de tramas mais densas etc), é fato que Harry Shum Jr., valeu à pena demais a audiência que eu dei, não me arrependo de NADA!

uma sala com um sofá escuro, flores no canto esquerdo, Alec, um homem branco alto, beijando um homem moreno com traços asiáticos (Magnus Bane), nesse sofá
Nenéns- Sim, nosso ship MALEC, no início da relação dos dois 😍

O melhor de tudo é que ao mesmo tempo que fui assistindo a série fui descobrindo (e lendo!), que a autora também é fã de Magnus Bane- inclusive lutando para sua permanência nas bibliotecas escolares dos EUA. Ela escreveu um livro que é mencionado na mais famosa trilogia INSTRUMENTOS MORTAIS, convertido n’As CRÔNICAS DE BANE, e, como o nome diz, trata da episódios da vida do feiticeiro cheio de malemolência, glitter e um maravilhoso topete. Também está saindo no Brasil (até a data desta postagem) a trilogia AS MALDIÇÕES ANCESTRAIS, com ele e seu par romântico mais popular, o Caçador das Sombras Alexander Gideon Lightwood, tendo dos livros já traduzidos. Enquanto tentam se acertar na relação, os dois lutam pela aceitação no meio da resistência da Clave (a entidade que manda nos Caçadores das Sombras) e até entre os ditos “submundanos”, além de enfrentarem a resistência ao fato de serem de “grupos” diferentes (feiticeiro, portanto filho do demônio e caçadores das sombras, filhos do Anjo Raziel), precisam enfrentar a homofobia até de pessoas próximas, como a família de Alec. E autora não se esquiva de tornar isso uma questão. E tem mais casais lgbtqi+ lá, mas ainda não terminei a leitura de todas as trilogias da Cassandra (confesso que meu foco vinha sendo o ship MALEC- com as melhores fanarts e fanfics, procurem aí, não tem erro). Eu comentei no Clube de Profecias, que "Instrumentos Mortais" e seus derivados são "Harry Potter" com diversidade (Dumbledore adoraria Magnus). 

Capa do livro- os pergaminhos da Magia, volume 1 da trilogia mencionada
A capa do volume 1

Eu achei esses dois tão queridinhos, fiquei tão encantada, que fui atrás de mais livros, de outras autoras, com uma pegada parecida- sempre lembrando que não fosse tão horrivelmente pesado. Então achei mais dois (na verdade três), mais românticos, pois agora sou dessas. Um deles foi o “Vermelho, Branco, Sangue Azul”, que é muito adolescente ou jovem adulto e tão incrível, o casal lá é simplesmente o filho mais velho da presidenta dos EUA e... o príncipe da Inglaterra! Tem uns trechos sobre a pragmática da política estadunidense que acontece lá que me entendiou um pouco, mas a história deles é simplesmente fofa. No caso do príncipe, ele já havia assumido para si que era homoafetivo, o problema que ele enfrenta é parte da sua família (novidade), e o “primeiro filho” americano, ainda passando pelo processo de se compreender como lgbtqi+. E o percurso que eles fazem, cheio de altos e baixos, é muito cativante e a gente vira facilmente uma torcida desse casal. Fica aí minha dica! 💙💓

A capa do livro Vermelho, Branco e Sangue Azul- um desenhp de um rapaz moreno bonito e despojado e um príncipe loiro
Uma capa bonita dessas no meio da nossa biblioteca heteronormativa né meninas 👑💘👬

E, por último, mas não menos importante, uma duologia que também achei que merecia estar nessa postagem, chama-se ELE e NÓS, conta a história de dois amigos jogadores de hockey que, enfim, tinham tudo para ser um casal desde muito cedo, na adolescência, mas um mal entendido, ou mal conversado fato, atrasa esse encontro. O desenvolvimento do reencontro e do tempo que perderam foi bem escrito e eu adorei acompanhar- entre deliciosas cenas para maiores de 18 anos- estão de parabéns, aliás. ⛄💥👬

Capa (que capa!) do primeiro livro 


Como eu tinha prometido, aqui estão colegas blogueiras que são muito melhores que eu e com muito mais dicas de livros de romance LGBTQI+. Inclusive agradeço a elas abrir mais essa portinha para que eu pudesse diminuir minha defasagem nisso. Tenta ai! Quem sabe alguma dessas histórias de surpreende e você nota que amor é amor e a resistência é só manifestação da nossa ignorância. FORA QUE VOCÊ AMA LIVROS COMO EU E ATÉ MAIS, NÃO É MESMO?? 📚

Ps. Eu ia colocar na lista "A quinta estação", mas eu achei que precisava de uma postagem só para ele, porque aquilo ali é uma tratado brilhante! 

https://www.reviewbox.com.br/livros-lgbt/

https://www.laoliphant.com.br/resenhas/resenha-radio-silencio-alice-oseman

http://leitoracretina.blogspot.com/2020/08/new-adult-com-personagens-gays-lesbicas.html

https://lgbteca.com.br/gratuitos

https://blog.estantevirtual.com.br/2019/03/12/os-melhores-livros-com-tematica-lgbt/


segunda-feira, 12 de outubro de 2020

A bruxa pragmatista: Emily Dickinson e convidadas

O Suplemento Pernambuco foi uma dessas boas descobertas dos anos recentes. Já falei dele antes nas recomendações aqui. Consegui assiná-lo por cerca de um ano e tenho um carinho imenso pelas edições de papel, com aquelas colagens feitas por talentosos artistas no período (2016-2017 ou 2017-2018). Ele tem ainda seu pdf  gratuito.

Lembrei disso, porque uma postagem no Instagram do periódico ontem, me fez rir sozinha. Lá dizia: "toda feiticeira, no fundo, é pragmática", o que me remeteu ao tema da minha dissertação que fala de pragmatismo e traz um pouco de Emily Dickinson, poeta que escreveu dos meus versos favoritos de todos:

Longos anos de distância - não podem fazer
Romper um segundo não podem sequer preencher -
A ausência da Feiticeira não
Anula o feitiço—

As brasas de mil anos
Descobertas pela mão
Que as acariciava quando eram Fogo
Vai se agitar e compreender—

 (tradução minha)

 No original, aqui.

O pragmatismo não é lá benquisto na filosofia, talvez pelo excesso de ceticismo nos fundacionalismos, sem oferecer uma resposta dura e talvez por isso mesmo, ele pareça menos interessado em respostas definitivas. Mas pelo menos ele me permitiu ter bons encontros com autoras e autores interessantes. A gente se diverte com o que pode nesse meio esquisitão.

 No que toca ao que motivou essa postagem, eu acho que as feiticeiras precisavam ser mais pragmáticas, por questão de sobrevivência, ainda que pareçam sempre estar a evocar as essências do mundo. Que mundo, não é mesmo? E aí está um outro segredo da feiticeira: ela parte do mundo em que está, mas quando precisa, assume outro e outro. Até porque eles nascem e morrem, como nós.

Quanto a Louise Glück, eu tinha esquecido que ela foi a ganhadora do Nobel desse ano quando comecei essa postagem, mas não é descaso, foi só esquecimento de gente distraída para conhecimento recém adquirido. Espero que ela seja traduzida logo para o nosso português, daí, quem sabe, quando eu lê-la com mais contexto, esse tipo de gafe não me ocorra. Mas não tenho pressa. O feitiço sabe esperar.

Essa postagem eu dedico à minha amiga Kelly, minha bruxinha favorita. Eu sei que de vez em quando, ela lê esses meus textos.


Aquarela da Malévola feita por mim num papel próprio A5
Malévola, bruxa redimida na cultura pop. Um dos meus estudos de aquarela.



terça-feira, 4 de agosto de 2020

Entrevista: Alcione Correa

Hoje meu entrevistado é o extremamente gentil professor Alcione, que dá aula no curso de Letras, da UFPI, dentre outras coisas. Encontramo-nos por meio do Twitter uns anos atrás e agora o convido a esta conversa a respeito do pensamento e literatura negra, que são suas especialidades, e sobre os cotidianos de um corpo negro que sente, observa e fala a respeito disto e de outras coisas mais. Você pode ler mais entrevistas clicando na tag entrevistas ou aqui:


1. Alcione, obrigada por aceitar participar do blog do passarinho, esse diário que, às vezes, é construído por muitas mãos. Vamos lá! Quando você veio morar no Piauí, o que você esperava encontrar aqui? O que de fato achou?

Em primeiro lugar, bom dia e muitíssimo obrigado pelo convite, pela acolhida e pelas futuras leituras, a estabelecer novas interlocuções que contribuam a nos fazer avançar um pouco, em meio a contextos macro- tão desanimadores. Chegamos a um ponto no qual estar-no-mundo, apesar de tudo, se tornou, também, um ato político. Obrigado a ti e a todas(os) assinantes por cultivar, juntas(os),  este espaço de cuidado.

Mês passado, no dia primeiro, se completaram doze anos desta parcela de vida em Teresina; como se, vivendo em um país distinto do Brasil, eu viesse para seguir existindo em outro país igualmente distinto do Brasil; com exceção de um dinheiro parecido, todo resto absolutamente novo, exigindo aprendizados todos os dias. Ainda não aprendi a estar-no-mundo desde nosso lugar-Teresina, a socializar de maneira satisfatória, mas sigo insistindo. À época do mestrado na UFRGS, se tratava de uma escolha, de minha parte, viver em Teresina desde esta condição de docente concursado da UFPI; esforços de muitas pessoas a me demover de uma ideia que, em seu entender, não fazia o menor sentido; muito racismo travestido de preocupação (de um tipo similar ao que tu experiencias e compartilhas conosco desde tua experiência vivida em Florianópolis, outro lugar nem um pouco amigável a sujeitas(os) racializadas(os)); após, o concurso; iniciei a viagem a Teresina ao meio-dia e trinta, 22 de junho de 2008, oito graus, sete dias de uma viagem sem pressa com o intuito de, precisamente, marcar esta trajetória de vida em duas metades, antes e durante Teresina.

Hoje, apresentadas oportunidades similares naquele mesmo momento de vida, escolheria Teresina, novamente, escolheria a compra de discos e de uma vitrola no Troca, escolheria retecer a relação com a universidade e com algo maior que ela através de sua Rádio, escolheria o café da Serena, escolheria levar manga fiapo para casa, escolheria a mesma bicicleta lilás e a mesma ciclista feminista onde sempre a consertam, escolheria iniciar aqui uma relação ad infinitum com a terapia. 

De maneira a seguir na resposta, me soa ímpar permanEcer, tantos anos depois, no  mesmo estado de estranhamento de “Sampa” admitindo que, quando cheguei por aqui, eu nada entendi. Nos primeiros anos, havia uma pergunta racializada, em uma formulação particularmente teresinense: “Tu não é daqui, né não?”. Uma estrutura peculiar de negar a diferença, suprimindo-a três vezes, sem importar o tempo em que se está aqui; com o tempo, praticando uma resposta do tipo “Sim, trabalhando aqui, pagando IPTU aqui, jogando a pelada com o grupo de colegas daqui, portanto, sim, creio que sou daqui; se não é para ser, para que vir?”, a pergunta foi sumindo à medida que o devir-negro vinha chegando. Hoje, sem a certeza de por quanto tempo mais perceberei o mundo desde o lugar-Teresina, tenho vivido a hipótese de que, se o lugar racializado atribuído ao corpo-negro me imputa um sentimento de inadequação, de estrangeiria em qualquer lugar, isso poderia implicar (em uma perspectiva do “copo meio cheio”) a possibilidade de, 

visto que uma existência negra oferece problemas e riscos em qualquer lugar, em distintos momentos de nossa trajetória nesta existência, 

existi-la em distintos lugares.

Hoje, os modos de estabelecer relações de café, de discos e livros, de amor, de trabalho, são modos em Teresina. Amanhã, ainda não posso responder como será nossa atuação, somente nos repassam o script quase na hora das cenas; nunca sabemos quando nossa personagem deixará a trama, quando cancelarão a nova temporada ou quando seremos designadas(os) a outro espetáculo.

 

2. Os seus projetos acadêmicos, dão uma boa pista de como você vivencia com seriedade a valorização da cultura produzida na América Negra. Você já parou para pensar na importância desses projetos em um estado negro que muitas vezes ignora essa condição, que ainda é fortemente atrelada também à pobreza?

Assim como anteriormente, muito obrigado por tua pergunta, na dimensão política que ela nos apresenta. Sobre a ideia de pesquisar literaturas afroamericanas a partir de um marco de pensamento  negro americano, frequentemente em uma perspectiva comparativa (basicamente, o trabalho a que nos dedicamos no Projeto de Pesquisa Teseu, o labirinto e seu nome), ainda que, em sua base, se trate de uma ideia assentada no compromisso político de um lugar negro – um lugar de produção, discussão e difusão de conhecimentos negros; investigado desde um lugar negro de enunciação científica – vale a pena assinalar que tal lugar não se mostra evidente, dado, mas necessita de construção, de cultivo, de mobilização constantes. Não se trataria de um ser suficiente pelo fenótipo mas, antes, de um devir marcado pela violência dos processos de racialização, do que nos desumaniza todos os dias por meio desta racialização.

A despeito do crescimento, quantitativo e qualitativo, de pesquisa acadêmica em pensamento negro, a partir do advento das ações afirmativas e de suas consequências, a interdição de corpas(os) negras(os) nos espaços de produção, discussão e difusão de conhecimento, em um modelo propriamente acadêmico, se mostra uma constante. Frequentemente, os signos negro e conhecimento seguem incompatíveis em nossos modos de conceber o espaço acadêmico coabitando, não obstante, com as lutas e avanços, na forma de políticas públicas de combate ao racismo a ser disputadas, precisamente, “em um estado negro que muitas vezes ignora essa condição”: a condição de humanidade de sujeitas(os) negras(os) enquanto vidas que importam. Talvez em tal cenário, a mera presença neste espaço interditado demarque, por si, a reivindicação de um lugar político; a estratégia de conhecimento coletivo, mediante aquilombamento no Núcleo Ifaradá (o NEAB da UFPI), como parte fundamental a nossos devires e à ciência proposta a partir deles, constrói este lugar político em nosso cotidiano de trabalho.

A valorização da cultura produzida na América Negra, no âmbito do Projeto Teseu, se efetua mediante dimensões suplementares à análise comparativa entre literaturas afroamericanas tomando os sentidos do prefixo afro- como se fossem suficientes a uma suposta definição essencial de um ser negro: as Américas Negras ou, em uma ideia mais adequada aprendida desde Lélia González, as Améfricas, se manifestam em suas particularidades e naquilo que podemos aprender com elas (onde somos nós que, na atividade de pesquisa, comparamos aquilo que aprendemos e aquilo que nos descentra no contato com distintas literaturas); as Améfricas se manifestam em nossa frequentação e aprendizagem de pensamento negro em-diáspora, neste esforço de interpretar, compartilhar e referenciar a este patrimônio, o mais efetivamente possível, em nosso fazer científico; as Améfricas se desenham nas redes intelectuais que construímos com os recursos disponíveis, gente preta produzindo, discutindo e difundindo conhecimento sobre, para e, frequentemente, contra um estado negro que, muitas vezes, ignora essa condição.

 

3. Você transita com facilidade por muitas mídias, além de outros projetos de extensão, tem o Clube do Vinil, o podcast Anansi e não são tanto professores de ensino superior que abraçaram outros territórios para se comunicar com a comunidade acadêmica e não acadêmica, além disso, vive-se um grande levante nas lutas pelos direitos das minorias, usando redes sociais como ferramenta possível e até as ruas, mesmo no meio da pandemia (e também por isso): é possível dizer que você está no lugar certo, na hora certa? Percebe um tipo de interesse maior nos últimos tempos? Ou não?

Uma vez mais, te agradeço pela pergunta e por tua gentileza na menção, no comentário a iniciativas de comunicação que têm integrado o trabalho docente desenvolvido, neste momento, na UFPI. Ambas iniciativas (o programa de rádio e, mais recentemente, o podcast) atendem a um problema comum, no cerne da tarefa docente e, em certa medida, do elemento pessoal em nossas narrativas, nossos modos de nos situar no mundo: além de atividades de extensão acadêmica, se mostram modos de compartilhar conhecimento.

O ponto de partida do Clube do Vinil, em 2012, partiu da constatação de que não fazia muito sentido uma casa com cerca de 500 discos (à época), um par  de vitrolas sem, contudo, pessoas para compartilhar os discos e histórias em torno deles. Além de uma linha editorial definida (música das Américas e, sempre que possível, música negra das Américas), diretamente relacionada às atividades de ensino e pesquisa desempenhadas na UFPI, o Clube do Vinil sempre se propôs um espaço de escuta e compartilhamento de música em uma sala onde caiba muita gente, uma sala de ondas de rádio – e onde se possa, frequentemente, sem contradição de termos, viver a experiência solitária do disco, algo para beber, luzes apagadas, apenas os ruídos dos seres da noite lá fora: um recurso corrente em programas noturnos de rádios brasileiras, entre 20 horas e uma da madrugada, todas noites. O Clube do Vinil recorre a este tipo de linguagem, muito mais próxima de programas em frequência AM, embora hospedado em uma rádio pública, universitária. Como programas dos quais bebemos para conceber o programa na FM Universitária 96,7 em seu formato, é preciso salientar que a cultura de ouvinte de rádio está presente ao longo de boa parte da vida, de toda ela, talvez: ouvinte de rádio em busca de informação (naquele tempo em que, ainda, se associava rádio a qualidade de informação, de modo mais comprometido), ouvinte creditando sua formação musical ao rádio. Os discos do Clube do Vinil, assim como a chave de leitura a eles, reatualizada a cada novo programa, advêm dessa cultura de audição de rádio (quase sempre, de rádio AM e, hoje em dia, de rádio em streamings salvos no telefone celular). Como programas dos quais bebemos para conceber o Clube do Vinil, destacaria, sobretudo, dois programas de rádio ainda em Porto Alegre, o Conversa de Botequim (diário, na FM Cultura de lá; em sua linha editorial, discos de MPB) e o Noturno Guaíba (diário, na madrugada, já não existe mais; em sua linha editorial, a coleção de discos de acetato do Museu Hipólito José da Costa). Nos últimos anos, houve um programa especialmente marcante nesta formação em música das Américas: Tímpano, apresentado por Daniel Viglietti, até o fim de sua vida; escutava-o em 2016, mateando nas tardes de sábado às margens do Rio Mapocho (naquela parte mais arborizada, cerquita do Teatro del Puente), em sua reprodução pela rádio da Universidad de Chile (outra rádio pública imperdível a se ouvir por streaming, particularmente a quem, como nosso querido Prof. Luizir de Oliveira, aprecia repertório de música erudita). Mais contemporaneamente, audíveis por streaming, recomendo imensamente dois programas seguidos, diários, exibidos nas manhãs de dias úteis na rádio pública uruguaia Emisora del Sur: o Música de dos orillas, tocando tango argentino e uruguaio; o El sonido de todos, apresentado de modo brilhante por Héctor Numa Moraes. Além deles, há muitas surpresas incríveis em rádios públicas universitárias, muitos programas do gênero à espera da descoberta de novas(os) ouvintes. Hoje em dia, escuto rádio por streaming para estudar conteúdos, chaves de leitura e modos de apresentar o Clube do Vinil.

Mais recentemente, o ponto de partida do Podcast Anansi, além de ampliar as possibilidades de extensão acadêmica, em uma linha editorial definida (a fruição de literatura; a divulgação científica em torno de uma ideia de Ciência da Literatura), também diretamente relacionada às atividades de ensino e pesquisa desempenhadas na UFPI, este podcast parte de uma ideia similar: uma biblioteca não compartilhada, apenas disponível ao uso de um único indivíduo ou grupo, compromete algo substancial de seu sentido. Por mais que, em meu caso específico, este compartilhamento tenha sido levado razoavelmente a sério ao longo de todos estes anos nesta empresa vital (discentes que entram em contato com os livros, os tocam, cheiram, leem, tomam emprestado, efetuam tarefas e avaliações coletivas democratizando seu uso), é preciso, sempre, ter em mente que o mundo é bem maior que a universidade. Ainda pertenço a uma última geração docente (espero, do fundo do coração, que tenha sido a última com este pensamento) a dividir o mundo em duas grandes metades: o dentro e o fora da universidade federal onde trabalham. E, corolário: a divisão humana em quem está dentro ou fora deste espaço especifico que nós, de tão absortas(os) em sua rotina, tomamos como equivalência do mundo. Neste sentido, o Podcast Anansi se requer uma partilha da biblioteca hospedada na mesma sala onde repousa a discoteca básica do Clube do Vinil; a sala como espaço de diálogo e partilha com espaços maiores que ela; o setor em que trabalho, em uma universidade pública, tentando se abrir como espaço de diálogo e partilha com espaços maiores que ele – e, nos pensando como docentes, a consciência de que existe mundo fora dele, que existem espaços maiores que ele.

Por sua vez (e relacionado a ambas iniciativas de extensão acadêmica), as redes sociais me têm ocupado mais nos últimos tempos, em um uso dedicado à discussão e divulgação científica. Se, enquanto indivíduo, me comporto e me movo no mundo virtual (no físico, também, de certa forma) como um usuário low profile flopado, sem interesse algum em expor dimensão alguma de sua vida pessoal, tenho buscado novas possibilidades neste domínio de divulgação científica. Não uso Whatsapp, por exemplo (por não dispor de saúde mental suficiente a esta rede; e por sua parcela de responsabilidade neste atoleiro macropolítico em que nos encontramos); tampouco Instagram, por não compreender sua linguagem e seus códigos; nem apepês de quaisquer redes sociais em meu telefone celular. Meu perfil pessoal de Facebook tem servido, unicamente, para anunciar episódios novos do Clube do Vinil. Em contrapartida, amo Twitter e o tenho utilizado, especificamente, para seguir perfis de pessoas negras ou coletivos de ativismo negro, aprendendo com eles para levá-los (conteúdos e, eventualmente, as pessoas) aos espaços de ensino, pesquisa e extensão. Ademais, não tenho perfil de Instagram mas nosso Projeto de Pesquisa, sim: <@nucleoifarada>; se dedica a uma função semelhante, de modo a integrar redes negras de produção, discussão e compartilhamento de conhecimento. O time do Projeto, de posse de acesso ao perfil (e, diferentemente de meu caso, alfabetizadas nesta rede), se entregam ao ofício de divulgação científica mediante o perfil de Instagram e o perfil de Twitter do Projeto: <@projetoteseu>.

 

4. Qual sua cantora e seu cantor favorito? E qual o show que mais marcou você que é colecionador de discos de vinil?

Sobre a relação com discos de vinil, o programa mudou, ao longo dos anos, tanto o modo de apreciá-los quanto de adquirir novas peças velhas à coleção: chegar à feira em alguma cidade latinoamericana e, entre os álbuns que passam ao olhar, se defrontar com um que “Nossa, isso dá um programa!” como critério para levá-lo. Em alguns momentos, a velocidade de compra supera a de escuta (como o que nos passa, frequentemente, na relação com livros). Alguns discos anteriores passaram a ganhar um sentido novo quando lidos pela chave de leitura do programa, das rotinas da Rádio, do planejamento de tudo.

Contudo, aquilo que repousa na base de minha própria formação musical, como ouvinte de rádio, por vezes difere bastante das escolhas semanais do Clube do Vinil. Se, na infância  ena adolescência precoce, trazia uma herança paterna de repertório de Jovem Guarda e de Roberto Carlos – sem jamais a abandonar; se, na adolescência tardia, cheguei a ter todos discos de Dire Straits e todos de Elton John antes de sua operação de cordas vocais (boa parte destes últimos, seguindo na coleção, hoje); se a vivência na Universidade Federal do Rio Grande do Sul trouxe o repertório de música brasileira própria a estes espaços de sociabilidade (uma certa ideia de MPB dos anos 70; e alguns de seus diálogos com música dos anos 2000), assim como o início da motagem da atual coleção básica do programa; se, ao final da graduação, eu colecionava discos de novelas dos anos 70, naquilo que eles implicam em uma formação musical básica – e, no mais das vezes, inconsciente – ainda vigente em nosso país (seguindo a tese de Nilson Xavier em seu sítio http://teledramaturgia.com.br/ ); 

com todos estes ses, 

no momento de minhas próprias escolhas, como ouvinte físico portador de CPF e de um imaginário moldado pela ascensão de rádio e de televisão dos anos 70, 80 e 90; no momento de minhas  próprias escolhas musicais, três têm sido as linhas daquilo que toca mais na intimidade. Primeiramente, com muito espaço, um repertório de love songs, nacionais e internacionais, em um estilo bem próximo daquela rádio teresinense que, nos últimos meses, se tornou a coqueluche do momento; tenho uma lista inteira disso, salva no Spotify, chamada “Love songs nojentas”, até seguida por algumas pessoas, que costuma funcionar como ruído branco durante turnos de trabalho. Tem muita importância, também, nos últimos dez anos, um repertório de música da pampa, tomada como um lugar no mundo muito específico. Repertório de corte folclórico, vigente, se renovando permanentemente na Argentina e, em certa medida, também no Uruguai e desde alguns nomes do sul do Rio Grande do Sul (Pirisca Grecco, com grandissíssimo exemplo contemporâneo). Mais antigamente, destacaria, nesse sentido, a geração em torno da primeira formação portoalegrense do Paralelo 30, dentre os quais aprecio, mais que todos, a figura de Raul Ellwanger como, talvez, um dos artistas brasileiros mais empenhados em uma ideia de música de las Américas – cantou em dueto com Mercedes Sosa e com Pablo Milanés, compôs em espanhol e em portunhol, organizou xous no Uruguai, compôs canção a Nicarágua. Dignos de menção, ainda, os demais irmãos de Vitor Ramil, em seus primeiros anos de carreira, na formação do Almôndegas – deles, o disco Alhos com bugalhos, de 1977, consiste em uma das peças com maior valor afetivo da coleção toda. Esta herança gaucha vem, diretamente, desde meu ex-cunhado Daniel Hennemann, como resultado de minha vinda ao Piauí e as mudanças no modo de perceber a pampa, o sul do mundo, uma vez fora dela: de “tradição inventada” ao melhor estilo de Eric Hobsbawn, a pampa passou a espaço decisivo em meus modos de estar-no-mundo não apenas na música mas em como me visto, em como me exprimo quando inevitável, em como escolho interior da Argentina, Montevideo ou sul do Paraguai como lugares para estar quando não estou aqui. 

 

5. Pra finalizar, quais livros escrito por uma negra  um negro brasileiro todos nós deveríamos ler para nos conhecermos melhor como povo?

Dia desses, um pouco no clima da gravação dos dois pilotos do Podcast Anansi, passei um tempo precioso na companhia de Quando me descobri negra, de Bianca Santana; hoje, particularmente, essa circunstância se mostra atual, dada a repercusssão da 44ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Talvez este livro de Bianca Santana, assim como, por exemplo, uma tradição contemporânea de contística negra brasileira, na qual Olhos d’água pode nos fornecer um bom exemplo (percebemos a repercussão e distibuição da obra de Conceição Evaristo no momento em que seus exemplares nos chegam com o selo do Programa Nacional do Livro Didático), poderia iniciar um tratamento a tua ótima questão, sobre nos conhecer melhor como povo. Um dado fundamental na base deste problema, com força para mover nossas lutas a este respeito: gente preta, racializada, não cabe em uma ideia circulante de povo, no Brasil. Nossa presença, nossas agências, nossas resistências, nosso estar-no-mundo nos constroi como parte desta ideia de povo; mas, a quem nos racializa (e que, frequentemente, se apresenta como interlocução privilegiada de nosso discurso), ainda não está assegurada nossa humanidade; e, levando o tempo que seja necessário à garantia indubitável de nossa humanidade (que, em uma visão pessoal e pessimista, estaria pronto a dizer que ainda estamos deveras distantes; que, provavelmente, não acompanharei este estágio em vida), só e somente só após isso, poderíamos passar a discutir, de modo pertinente, nosso lugar nesta empresa de nos conhecer melhor como povo.

Evidentemente, há muita literatura negra em curso, neste momento, difundida por políticas editoriais renovadas e por uma atação crescente em redes sociais; contudo, acompanhando mais de perto resultados de pesquisas desenvolvidas pela equipe de nosso Projeto; e pensando, igualmente, nestes dois fatores supracitados como facilitadores ao acesso a esta literatura (novas traduções de literatura e de pensamento de mulheres negras, implicando a proposição e difusão de novas pesquisas a seu respeito; projetos macro- como a Biblioteca Assata Shakur, o Lendo Mulheres Negras, a Winnieteca); pensando nestes fatores, recomendaria um conjunto de contística de mulheres negras contemporâneas (além de Conceição Evaristo como uma espécie de metonímia desta literatura: Cristiane Sobral, Miriam Alves, Geni Guimarães, por exemplo) e um conjunto de romances negros contemporâneos não apenas de Eliana Alves Cruz mas, igualmente, de novas obras literárias negras nordestinas encontradas em perfis de Twitter como Resistência Afroliterária ou Impressões de Maria, para citar dois exemplos, assim como nos podcasts que dialogam com estas iniciativas). Começar por Conceição Evaristo e por estas mulheres negras supracitadas ofereceria um caminho ao início de uma resposta à pergunta.


segunda-feira, 20 de julho de 2020

Entrevista: Leandro Durazzo

 
O twitter, presente na minha vida há 10 anos ou 11, não me lembro direito, me trouxe muitos encontros preciosos. E desses encontros felizes, alguns ainda trazem o brinde de serem pessoas com bastante afinidade criativa com a criadora deste blog (moi!). E é isso, eu tomo a liberdade de dizer que na entrevista de hoje eu converso um bocadinho com uma pessoa assim e compartilho com vocês.

O Leandro Durazzo se apresenta logo aí:

 
1.       Leandro, obrigada pela alegria de estar aqui concedendo essa entrevista. Você pode falar um pouco de você, apresente-se para nossas leitoras e leitores. =)
 
Quem sabe da gente é o outro, né? Mas até onde me cabe entender, sou um bicho inquieto, que não consegue não ter na estrada o horizonte. Nasci em Santos/SP, cresci ali, me formei em Araraquara, interior também de SP, e de lá pra cá foi Recife, Espanha, Caruaru, Araraquara outra vez, Santos a intervalos intervalados, Portugal, volta pra Santos, São Paulo, Florianópolis, Natal, Rodelas, no sertão da Bahia, junto ao povo Tuxá com quem pesquisei em meu doutorado – e que me ensinam tanto, desde então e sempre – daí João Pessoa, e agora outra vez Natal, mas nunca se sabe. Eu sou essa estrada: a circulação é o mais importante no dizer-quem-sou. Sou antropólogo, tradutor, budista, um pouco escritor, e neste exato instante ouço “Qué qui tu tem canário” de Xangai, um dos maiores cantadores deste planeta. Ouçam também.
 
2.       Quando e como surge o Leandro Durazzo poeta? A escola teve algo a ver com isso?
 
Daí depende. No colégio eu lia muito, muito mesmo, de me fazer inveja hoje. Ali pelo ensino médio assumi a função de bibliotecário da escola, que era estadual, caindo aos pedaços e com a biblioteca fechada havia anos. Resolvi abrir a biblioteca e me dispus a ficar lá em períodos alternados a minhas aulas. Acho que ia sempre à tarde, enquanto estudava de manhã. Daí li infernalmente mais. Obras completas, poesias completas, prosas e quetais. Era começo dos anos 2000, 2002, se não me engano, pouco antes da faculdade. É minha memória mais antiga de me dispor a escrever poesia (na época lia muito Vinicius Bilac Florbela Byron Castro Alves as tirinhas da Mafalda coisa demais, nem-te-conto). Os primeiros versos de que me lembro escrevi por ali (antes, contos e letras de pagode já tinham sido escritos, mas não conta exatamente como poesia). Agora, o “Leandro Durazzo poeta” é um bicho que não existe. Não me digo isso, nunca jamais, pelo menos até o momento.
 
3.       Do que eu li do seu trabalho, o que mais me chama a atenção é seu cuidado com o pequeno, o insignificante ganha muita significação nos seus versos. O que você pode dizer dessa capacidade que a palavra parece ter para reanimar o mundo?
 
A palavra tem a capacidade de despertar a atenção para o mundo. O mundo e o ânimo do mundo existem muito bem sem a palavra. Ela, no fim das contas, é nossa forma humana de puxar outros humanos pela orelha e dizer, de um modo muitas vezes sucinto, faz-silêncio-e-escuta. O que a palavra faz é dar um corpo humano ao ritmo do mundo, ao movimento, à música e à dança das coisas. Por isso mesmo a palavra, quanto menos palavrosa e humana, tanto melhor.
 
4.       Você gosta mais de ler poesia ou de escrever poesia? Quem são suas inspirações?
 
Já li bastante, já não leio tanto mais. Poesia, poesia mesmo, tenho lido bem pouco, e o que mais tem me interessado é a prosa. Não só pelas histórias, mas pela cadência, ritmo, pelo corpo das palavras que se encadeiam sem necessariamente buscarem a forma poema. Mas destes, Murilo Mendes é dos maiores, e me interessou muitíssimo durante minha formação. Antes, claro, os que citei acima: Bilac (formalistíssimo viu?) e Vinicius (um bonvivã) acho que foram dois que, no começo, importaram muito a minha leitura. Mais recente, além de Murilo Mendes, o enormíssimo Leonardo Fróes, um monumento. Mas agora, agora mesmo, quer saber o que mais interessa, ao que mais dou ouvidos, o que mais inspira e que mais admiro? Poetas populares, cantadores, cantigueiros, benzedeiras com suas rezas, toantes, benditos, a toada do mundo e não a pena do poeta.
 
5.       E a prosa? Em “Mar de viração” você sentiu uma necessidade de experimentar outros formatos por conta da história que tinha em mente, ou ela poderia ser contada de outro modo? 
 
É aqui que vai a poesia. Na fala. Na prosa. Guimarães Rosa, Italo Calvino, Ursula K. Le Guin, Neil Gaiman, Murilo Rubião, Lygia Fagundes Telles, Sophia de Mello Breyner, Ariano Suassuna, Tolkien e todo aquele que escreve e é preciso na inscrição. Poesia.
 
Mar de Viração é uma coletânea de novelas que se expressam de três formas bem distintas. A primeira, O Naufrágio do Aqueronte, é uma prosa razoavelmente tradicional, embora não tanto. Os diálogos, a fala dos personagens, o ritmo dos acontecimentos-como-vistos-por-quem-os-vive é o grande lance do naufrágio. A segunda, terra húmyda, é literalmente uma contação de estórias, barroca e etérea. No começo dela vem a inscrição: “Nota do leitor: escreve como se lê”, porque ela experimenta com o som do sentido mais do que com o sentido, e ler em voz alta ou ler tendo a voz alta da mente ajudam a seguir na terra húmyda. A terceira novela é, na verdade, um conjunto de solilóquios, personagens antiquíssimos e contemporâneos falando, falando, falando e deixando o leitor escutar. E, na escuta de suas falas, fazendo o cenário ao redor ganhar vida. Mesmo que mais ninguém fale, mesmo que narrador nenhum haja.
 
6.       Quanto da vida real do Leandro está lá acontecendo nas suas obras? Seu eu-lírico costuma parecer com você?
 
É tudo bem misturado, nos poemas. Na prosa, já nem tanto. Os poemas costumam ser parte da visão do mundo, da audição do mundo, do ritmo das coisas pelas quais passo e no passo pelo qual danço, etc etc e tal. Mas a prosa vai se compondo também com o mundo conforme o mundo vem vindo e eu por ele me sigo. Pouco antes de Mar de Viração ser lançado, publiquei no meu blog algumas reflexões sobre cada uma das novelas (aqui: https://miseramesa.blogspot.com/2018/06/mar-de-viracao-cronicas-de-uma-ficcao.html; aqui: https://miseramesa.blogspot.com/2018/06/mar-de-viracao-cronicas-de-uma-ficcao_27.html e um fio recente no twitter coletando coisas sobre o livro: https://twitter.com/durazzo/status/1281987658206650368). Mas é aquela história: tudo na vida é vida, então não é minha escrita que vai não-ser.
 
7.       O seu trabalho de tradução te ajuda a compor seu material poético e/ou vice-versa? E o trabalho do antropólogo?
 
Muitíssimo, claro. Só se traduz sabendo escrever em sua própria língua, e só se sabe isso lendo bastante, ouvindo bastante, pesquisando bastante, entendendo bastante. Conhecendo o mundo e as pessoas no mundo e as falas das pessoas no mundo e também as falas do mundo, que fala como ele só. O contrário, com o tempo, também vai acontecendo: a tradução que a gente faz como ofício, como pão-nosso-de-cada-dia, vai dando traquejo na escrita que a escrita-por-ela-só, especialmente quando somos jovens expressando sentimentos, nem sempre traqueja. Ou seja: a gente aprende a traduzir ouvindo o mundo e aprende a ouvir o mundo, e com o mundo falar, ao entender a tradução como processo comunicabilíssimo de comunicação. Que é o que a gente faz quando inventa de falar.
 
8.       Por fim, você tem alguma escritora e algum escritor para recomendar para as leitoras e os leitores do blog? 

Ouçam Izi Férro, leiam Leonardo Fróes.

 

Leandro estende um dedo para um passarinho num galho. Perto, um pedaço de melancia. Um homem próximo, onde só aparece parte da perna. Acredito que seja em uma aldeia.


O Leandro também está na coletânea organizada por Adriana Calcanhoto, que saiu pela Companhia das Letras, o "É agora como nunca":  https://www.companhiadasletras.com.br/trechos/14070.pdf
Aqui o primeiro livro “Tripitaka”: http://miseramesa.blogspot.com/2014/10/tripitaka.html?m=1
Tem aqui no ótimo jornal literário Quatro Cinco Um: https://quatrocincoum.folha.uol.com.br/br/resenhas/l/caldo-primordial 
Tem livro para ler disponível em pdf (recomendo fortemente): https://pt.scribd.com/doc/282324926/Leandro-Durazzo-o-Amor-e-Um-Brownie
E se você procurar no google, ainda encontra mais coisas. O escritor-antropólogo-tradutor-budista-andarilho é bastante prolífico. ;)

Até mais! 💜




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