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segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Livro: O corpo dos meus sonhos e outros poemas - Lara Matos

Esses dias minha amiga Lara organizou seus poemas em um livro (editora Entretrópicos) que tratei de obter, assim que aparecesse algum dinheiro e, bom, apareceu. Não que seja caro o livro, 20 reais está um ótimo valor, acessível, mesmo que você tenha que contar as moedas, não são tantas assim e a leitura vale muito a pena.

Como mencionei outro dia no twitter, Lara escreveu um livro de amor que não é romântico e muito sintonizado com transmutações afetivas geracionais, eu diria. Se o movimento feminista luta pela emancipação em vários aspectos sociais, eu diria que o resultado emocional e psicológico de suas conquistas e perdas pode ser percebido de modo bastante privilegiado nas escritoras que captam o espírito do tempo que coube ao movimento nas suas várias ondas, mesmo que não seja explicitamente a eles vinculadas. O que não é o caso da Lara Matos, é claro, tendo em vista que além de poeta é especialista em direitos humanos e mestranda em sociologia. 

Mas os versos da Lara não se resumem a isso, é claro. Não vou cometer o mesmo erro de reduzir a autora a um tema, ao tema "feminino" ou agora "feminista", erro que gerações e gerações de "críticos" de autoras mulheres, como Sylvia Plath, poeta lembrada por Lara, aliás, continuam a cometer. Que o digam seus metapoemas, poemas que tratam de poemas, que nos dão uma pausa enganadora.

Se o sofrimento nenhum um pouco disfarçado ou embelezado do seu eu-lírico parece lembrar o sofrimento de todas as mulheres, em todos os livros e mesmo no dia-a-dia, é melhor ler de novo, porque esse sofrimento é localizado. Não é qualquer corpo, é um corpo de mulher negra de um país que fala português. Se vire aí no mapa e viaje nas possibilidades. 

Gosto particularmente da acidez com que desdenha dos homens. Não parece que é qualquer homem, parece um homem típico de algum lugar que o eu-lírico foi obrigada a estar. Gosto que também como os momentos de felicidade que encontra, se com algum deles ou sozinha, o eu-lírico é bastante econômico em deixar revelar esse estado, como que para não agourarem ou para deixa bem evidente que sua vida é mais que isso. Bem mais. E quando o amor surge, é em meio ao mormaço.

É isso. O belo livro da Lara Matos é um oferecimento às leitoras, especialmente aquelas com raiva sub representada das províncias de todos os tamanhos deste país, continente, quiçá mais. Um dobrar-se e desdobra-se de um corpo que se alterna entre ruínas e êxtase.


EXPOSIÇÃO

Nunca tive pseudônimos, sequer
Eus- líricos falando por mim
Carregando minha música em voz falsa,
É minha cara que exibo para os tapas
Que pode muito bem ser aplausos
Meu corpo é todo verso sem saída.

O livro tem a capa de kraft com o título e nome da autora e alguns arabescos




sábado, 29 de dezembro de 2018

3 anos de blog de poesia


Quando criei esse blog, o primeiro que criei e continuei, a intenção era desabafar e compartilhar sem muitas intenções coisas que, por algum motivo banal (ou não), eu não conseguiria expor em nenhuma rede social em primeira mão. Com o tempo, o blog se tornou não só um lugar no qual eu poderia me olhar com outros olhos, ou olhar com outros olhos algumas vivências pessoais, ele se tornou ferramenta e também resultado de muito da minha vida criativa, coisa que eu não dava a devida atenção, mas que foi responsável por sustentar alguma vitalidade minha em anos interiormente muito difíceis. Já pensei em excluí-lo algumas vezes, mas curiosamente, bem menos do que eu acreditei que pensaria. Eu trago aqui, em números, uma amostra de que não estive só ao longo desses 3 anos. Um blog que fala de poesia, de arte e de cultura, eventualmente de questões existenciais e que apresenta poesia autoral de uma neófita sem muita habilidade no mundo das blogueiras, enfim, não é lá um locus que eu esperava receber muitas visitas. Mas recebi algumas e agradeço sinceramente a olhadinha rápida ou demorada que cada uma e cada um de vocês deram. Agradeço também às autoras e aos autores que participaram das postagens. Um 2019 maravilhosa para nós! Não somos muitas e nem muitos, mas somos fortes e sensíveis. Eu acredito nisso. ;))





sábado, 1 de dezembro de 2018

Palavrançar

Convidei a Lara Matos, advogada e escritora que já apresentei aqui no blog (clica aqui), para fazer uma postagem sobre mulheres escritoras negras da preferência dela. O pedido foi uma referência ao novembro negro, que acabou ontem e ao movimento nacional que busca incentivar a leitura de mulheres negras, que no Piauí, ganhou força na Campanha Esperançar (clica aqui e aqui), incentivada pela professora da UESPI Andreia Marreiro.

Seguem a postagem e as dicas:


A maior parte dos livros que vão estar na lista dos melhores do ano, uma tradição minha das festas de Natal e Ano-Novo, foram escritos por mulheres, e deste universo, muitos por mulheres negras. Hoje eu vou falar sobre as melhores leituras de autoras negras que fiz ao longo da vida, e comentar minha lista de desejos (meu aniversário é dia 09 de dezembro, oie). Minhas leituras de ficção são bem maiores que as de não-ficção, e por isso vou me concentrar na primeira modalidade.

I-A Cor Púrpura, Alice Walker: quando eu tinha 11 anos, meu livro didático de inglês propunha que escolhêssemos um filme dirigido/produzido por Steven Spielberg de uma lista. Eu escolhi a Cor Púrpura pelo título, aluguei o filme e quando descobri que Cellie existia em livro, e ainda mais, que tinha este livro em casa, me entreguei às páginas. Minha infância e adolescência foi meio assim mesmo, lendo coisas não tão apropriadas para a minha idade mas que me deram uma visão de mundo mais humana. Cellie, uma mulher negra, lésbica, que nunca entendi como ela se dizia, feia, com um coração tão bonito, foi a primeira personagem que despertou minha curiosidade.




II-Amada, Toni Morrison: É um dos meus livros preferidos de sempre, mesmo porque o começo enigmático, descrevendo a ação de um fantasma, me intrigou bastante. Demora um pouco até você entender o que está acontecendo, mas quando o enredo se mostra, é de uma grandeza e de uma potência absurda. A relação da mãe Sethe com os filhos ainda hoje me dá nós na garganta. Em algum momento, filhos que lêem est livro verão suas mães, seja de modo positivo ou não.  De Toni, até ler Amada, eu havia tido contato apenas com Jazz, um livro curto que dá conta de muito da dinâmica urbana dos negros dos EUA e cuja personagem principal, Violet, me causou uma profunda empatia; não gostaria de estar em sua pele novamente, embora já tenha estado, e a entendo demais. Na verdade, eu poria tudo de Morrison nessa lista, inclusive meu desejo Deus Ajude Esta Criança, seu livro mais recente traduzido no Brasil pela Companhia das Letras.



III-O Ódio que Você Semeia, Angie Thomas: Eu levei esse livro para votar, só para vocês terem um ideia, e foi o destaque dos meus livros preferidos de 2017.  Poucas vezes eu li algo tão bom com a temática de raça quanto ele, que inclusive zomba na cara de alguns curadores que dizem que romances YA estão fora de um espectro artístico. Nunca leram Angie Thomas, Jacqueline Woodson ou Nnedi Orokafor. Coitados. As palavras de Angie na estreia do filme baseado em O Ódio que Você Semeia “eu fui assistida pelo seguro social, vim de uma periferia violenta e cheguei a achar que não terminaria a escola; hoje, na estreia do filme baseado no livro em que escrevi, eu digo: tudo é possível”. Angie é uma voz negra intelectual com uma relevância enorme, pois como mulher jovem, é a prova viva de que a juventude negra precisa de ações afirmativas e, uma vez tendo acesso a elas, é capaz de alçar voos inimagináveis para elas mesmas. É uma reconstrução não só de uma autoestima individual, mas de toda uma comunidade.



IV-O Caminho de Casa, Yaa Gyazi: a diáspora africana com todas as dores, alegrias e anseios. Eu gostaria de dar este livro para cada um que fala “negros escravizavam negros”, porque as páginas dissolvem esse preconceito ignorante com um lirismo belíssimo, explicando toda a complexidade de relações do colonialismo escravagista. Você aprende a não falar besteira com uma história bem amarrada e com imagens deslumbrantes. Além disso, personagens como Marcus situam a compreensão de uma questão ainda muito pouco abordada: a saúde mental de pessoas negras, em especial dos homens negros; a incursão nas drogas desse personagem, inclusive, é uma descrição que gera muitas nuances de análise, exigindo um texto próprio.
Antes de falar da poesia, gostaria de falar sobre um incômodo: a mulheres poetas, em especial mulheres negras poetas, é negado o dom à exatidão e à observação. Mulheres são seres empíricos, levados por paixões, e não racionais e cognoscíveis: é um preconceito velado ou muitas vezes até manifesto mesmo em muitos ensaios críticos. Uma mulher negra que escreve, se instrui e aprende o letramento em formas de prosa e poesia com técnica, ritmo e lirismo impecáveis, então, uma afronta. Algumas mulheres que entram chutando as portas do formalismo branco da poesia hermética estão aqui:



I-Lívia Maria Natália de Souza: O Poema As Mãos de Minha Mãe me leva às lágrimas toda vez que leio. Durante o Colóquio de Gênero realizado na Universidade Estadual do Piauí, no mês de setembro deste ano, a própria poeta recitou esses versos, que falam sobre sua mãe com mal de Alzheimer. Minha avó foi levada por esta doença, também, e a dor profunda de sentir o fio da vida de alguém que amamos escoando aos poucos pesa ao mesmo tempo que encontra alívio nas palavras dessa poeta, que tive a honra de abraçar e conversar. Meu livro preferido de Lívia é Correntezas e Outros Estudos Marinhos, mas indico todos. 



V-Eliane Marques: Para escrever poesia é preciso ler poesia. Para versificar bem, é preciso ver a prática de versificação. Eliane Marques me ensinou lições preciosas que acredito que não extrairia de tratados de poética. Há uma precisão nos versos que fez com que eu recitasse fragmentos espontaneamente apenas algumas leituras depois. Uma amostra:
e se irene não-à-lei
e se irene não-sinhô
e se não-tão-preta
e nem-tão-boa
e se ainda aos piores mortos
o amém das moças



VI-Não Vou mais Lavar os Pratos, Cristiane Sobral: Uma mulher negra que resolve se instruir. A afronta que uma pessoa sempre relegada aos bastidores e aos cuidados rudimentares lendo, escrevendo, pensando, criando e sendo protagonista altiva não só da própria história, mas inventando novos mundos líricos. Esta é Cristiane.



III-Bone, Yrsa Daley-Ward: tenho minhas ressalvas em ler poemas em línguas estrangeiras traduzidos; por isso, geralmente me atenho a versos escritos em inglês ou espanhol, idiomas que domino e sei traduzir. Digo isto para marcar minha ignorância acerca de poetas cujos versos só conheço por traduções em português ou inglês que de certo modo me parecem estranhas, com algo fora do lugar, seja a estrutura da versificação ou as imagens obtidas. Ah, e outra coisa: Daley-Ward é modelo e atriz também; artista da cabeça aos pés. Abaixo, um dos poemas dela, que eu mesma traduzi.
Nada é dito na mesa de jantar
Porque todo mundo tem raiva
O único barulho é o tilintar dos talheres de prata na porcelana chinesa
E o som das brincadeiras dos filhos de outras pessoas lá fora
Mas isto te dará poesia
Na cozinha não há faca
Afiada que possa cortar a tensão
E as mãos de sua avó tremem
A carne e o inhame entalam na garganta
E você nem ousa mais sussurrar “passe o sal”
Mas isto te dará poesia
Seu pai está bufando
Ele poderá extrair toda seu viço esta noite
Por razões que nem ele mesmo sabe
Ainda
Você sairá machucada
Você sairá machucada
Mas isto lhe dará poesia
A ferida irá se espalhar
Dispersar até ser
um diamante negro
Ninguém sentará ao seu lado na aula
Talvez sua vida dê certo
Embora de primeira
Não pareça:
Isto lhe dará poesia



Maya Angelou: Olha ela de novo! O gênio que foi Angelou é uma coisa rara. Eu me atrevi a traduzir alguns poemas dela, e aqui está o meu preferido, Mulher Fenomenal. Não pus um livro em especial porque sempre consumi Maya de maneira dispersa, e já mencionei o I Know why the caged Bird Sings. E o “Mamãe e Eu e Mamãe”, que ainda não li porque sou muito sensível a histórias que tratam das relações entre pais e filhos: mesmo depois de três anos ainda tento me recuperar da última leitura deste tipo que fiz, Patrimônio, de Philip Roth. Aqui está minha tradução de Mulher Fenomenal (poema que Angie Thomas, em o Ódio que você semeia, diz descrever totalmente sua avó):

Mulher fenomenal
Lindas mulheres perguntam
Que segredos escondo
Não sou adorável ou feita
Para envergar um traje de modelo
Se eu começasse a contar sobre mim
Diriam que minto
Se disser que está no movimento dos meus braços,
No sacudir do meu quadril
No molejo dos meus passos
Na curva dos meus lábios:
Sou fenomenalmente
Uma mulher fenomenal
É quem sou
Quando entro em um recinto
Fresca e cheia de graça
Faço homens e seus companheiros
Levantarem ou caírem de joelhos
Eles me cercam
Sou uma colmeia vazando mel
Digo:
É no fogo dos meus olhos, no brilho dos meus dentes
Minha cintura malemolente
A alegria dos meus pés
Sou uma mulher fenomenalmente
Fenomenal
É quem sou
Homens perguntam a si mesmos
O que veem em mim
Eles até tentam
Mas não conseguem tocar
Meu mistério interno
Quando eu tento lhes mostrar
Eles inda não veem
Eu digo
É na curvatura das minhas costas, no sol do meu sorriso
No elevar dos meus seios
Meu estilo impecável
Uma mulher fenomenalmente
Agora você entende
Que é minha mente errante: não grito, salto
Ou preciso falar alto
Quando você me vê passar, deveria se orgulhar
Eu afirmo:
É no som dos meus saltos altos
Meus cabelos penteados
A palma da minha mão
A necessidade do meu cuidado
Fenomenalmente
É quem sou
fenomenal





Lista de desejos e leituras futuras/em andamento:

I-Filhos de Sangue e Osso, (Série Legado de Orïsha #1), Tomi Adeyemi: Tenho verdadeira paixão por autores que estudam religiões e mitologias a fundo para criar suas próprias versões em histórias originais. Exemplos conhecidos dessa capacidade de “aprender tudo como um especialista e recriar como artista” são Neil Gaiman e Maggie Stiefvater. Tomi foi além deles. Toda a pesquisa minuciosa se descortina numa história cheia de alegorias e imagens que parecem sonhadas. Estou no início da leitura e espero conseguir terminar logo, porque este livro merece estar numa lista de melhores pelo fascínio que me induziu, estou obcecada! Este livro, inclusive, vem com um guia de pronúncia Iorubá, GENTE!!!!!!!!!

II-Fique Comigo, Ayòbámi Adébáyò: Margaret Atwood, autora de O Conto da Aia e Vulgo Grace, é uma autora ativa nas redes sociais, e partilha suas leituras para os seguidores. Foi assim que tomei conhecimento deste livro de Adébáyò, uma jovem escritora que teceu um romance a partir da experiência com violência, exílio, costumes e particularidades de relacionamentos amorosos. Não falo mais porque ainda não comecei a leitura de fato, porém mal posso esperar.

III-Bruxa Akata, Nnedi Okorafor: Chimamanda plantou sonhos na Nigéria ao riscar seu país com  palavras. Nnedi, ficcionista exímia, fala da realidade na Nigéria a partir do olhar de uma garota albina. Mal posso esperar para começar a leitura do novo romance da autora de Quem Teme A Morte, a única ficção distópica que conseguiu prender minha atenção. Agora, com um tema ainda mais cativante, vou pular uns livros da minha fila de leitura (desculpa Becky Albertalli).



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