N. K. Jemisin de blusa amarela, em uma rua (Crédito da imagem: John D. & Catherine T. MacArthur Foundation)
Terminei hoje a trilogia Terra Partida da grandiosíssima, brilhante e importante N.K. Jemisen. Trata-se de ficção científica de alto nível e ao mesmo tempo é um tratado de tantos temas importantes e delicados para o hoje e para o amanhã. Mas aqui agora eu trago os Agradecimentos do terceiro e último livro "O céu de pedra" e o discurso que a autora fez quando finalmente foi receber o prêmio Hugo (ela ganhou 3, um para cada volume da trilogia, mas só apareceu no terceiro- o que eu compreendo). O Hugo é a principal premiação mundial nos gêneros Fantasia e Ficção Científica e vergonhosamente ela foi a primeira pessoa negra a ganhá-lo (com recordes). Eu chorei litros com o final da história e para completar, chorei mais com esses dois textos curtos que trouxe. Eis as palavras dela:
Agradecimentos
Ufa. Isso levou um tempo, não levou? O céu de pedra
marca mais do que apenas o fim de mais uma trilogia para mim. Por vários
motivos, o período durante o qual escrevi este livro acabou sendo o momento de mudanças
tremendas na minha vida. Entre outras coisas, saí do meu emprego formal e me
tornei escritora em tempo integral em julho de 2016. Bem, eu gostava do meu
emprego formal, no qual eu podia ajudar as pessoas a fazerem escolhas saudáveis
– ou, pelo menos, sobreviver por tempo suficiente para fazer isso – em um dos
pontos de transição mais cruciais da vida adulta. Ainda ajudo as pessoas, eu
acho, como escritora, ou pelo menos essa é a impressão que tenho daqueles de
vocês que me mandaram cartas ou mensagens online me contando o quanto a minha
produção literária os tocou. Mas, no meu emprego diurno, o trabalho era mais direto,
assim como suas agonias e recompensas. Sinto muita falta dele. Ah, não me
entendam mal: essa era uma transição de vida boa e necessária a fazer. Minha
carreira como escritora explodiu da melhor forma e, afinal, eu amo ser
escritora também. Mas é da minha natureza refletir em tempos de mudança e
reconhecer tanto o que foi perdido como o que foi ganho. Essa mudança foi
facilitada por uma campanha de Patreon (financiamento coletivo para artistas)
que eu comecei em 2016. E, tocando em uma notícia triste... esse financiamento via
Patreon também foi o que me permitiu me concentrar totalmente em minha mãe
durante os últimos dias de sua vida, no final de 2016 e início de 2017. Eu não
falo com frequência de coisas pessoais em público, mas talvez vocês consigam
ver que a trilogia A terra partida é minha tentativa de lidar com a maternidade,
entre outras coisas. Os últimos anos de minha mãe foram difíceis. Acho (tantos
dos alicerces dos meus romances se tornam claros em retrospecto) que, de algum modo,
eu suspeitava que a morte dela estava chegando; talvez eu estivesse tentando me
preparar. Ainda assim, não estava pronta quando aconteceu... mas ninguém jamais
está. Então sou grata a todos: à minha família, aos meus amigos, à minha
agente, aos meus patrocinadores, ao pessoal da Orbit, inclusive a meu novo
editor, a meus antigos colegas de trabalho, à equipe da casa de repouso, a
todos, que me ajudaram a passar por isso. E foi por isso que trabalhei tanto
para que O céu de pedra saísse no prazo, apesar das viagens e das
hospitalizações e do estresse e de todas as mil indignidades burocráticas da
vida após a morte de um dos pais. Eu definitivamente não estava no meu melhor
momento enquanto trabalhava neste livro, mas posso dizer uma coisa: onde há dor
no livro, é dor de verdade; onde há raiva, é raiva de verdade; onde há amor, é
amor de verdade. Vocês vêm fazendo esta viagem comigo, e sempre terão a melhor
parte do que eu tenho. É o que minha mãe ia querer.
DISCURSO DE N.K: JEMISIN CERIMÔNIA DE PREMIAÇÃO DO HUGO
WORLD DE 2018
Eu comecei a cultivar toda uma superstição de que
só ganho prêmios quando não apareço [na cerimônia]. [...] Este tem sido um ano
difícil, não é? Alguns anos difíceis, um século difícil. Para alguns de nós, as
coisas sempre foram difíceis e escrevi a trilogia A terra partida para falar
dessa luta e do que é preciso para viver, quem dirá prosperar, em um mundo que
parece determinado a quebrar você. Um mundo de pessoas que constantemente
questionam sua competência, sua relevância, sua própria existência. Eu recebo
muitas perguntas sobre de onde vêm os temas da trilogia A terra partida. Acho
que é bem óbvio que tirei inspiração da história humana de opressão estrutural,
assim como meus sentimentos sobre este momento na história americana. O que
talvez seja menos óbvio é o quanto da história deriva dos meus sentimentos
sobre ficção científica e fantasia. Por outro lado, ficção científica e
fantasia são microcosmos do mundo mais amplo, de modo algum excluídos da
mesquinharia e do preconceito do mundo. Mas outra coisa que eu tento abordar
com a trilogia A terra partida é que a vida num mundo difícil não é nunca
apenas uma luta. A vida é família, de sangue e encontrada; a vida são aqueles
aliados que se provam dignos por ações e não apenas discursos; a vida significa
celebrar cada vitória, não importa quão pequena. Então, enquanto estou aqui
diante de vocês, sobestas luzes, eu quero que vocês se lembrem que 2018 é também
um bom ano. Este é um ano em que recordes foram estabelecidos, um ano em que
mesmo os privilegiados mais cegos entre nós foram forçados a reconhecer que o
mundo está
quebrado e precisa de conserto, e isso é uma coisa
boa, porque reconhecer o problema é o primeiro passo para consertá-lo. Eu olho
para a ficção científica e fantasia como o ímpeto de ambições do zeitgeist.
Nós, criadores, somos os engenheiros da possibilidade. E à medida que esse
gênero finalmente, embora relutantemente, reconhece que os sonhos dos
marginalizados importam e que todos nós temos um futuro, o mundo também fará
isso. Em breve, espero. Muito em breve. E sim, haverá contraposiçõs. Eu sei que
estou aqui neste palco aceitando este prêmio por basicamente o mesmo motivo que
todos os vencedores de melhor romance anteriores: porque eu trabalhei para caramba.
Eu verti minha dor no papel quando não podia pagar por terapia, eu estudei uma
ampla gama de obras de literatura e me aprofundei nelas para aprender o que podia
e refinar minha voz; escrevi um milhão de palavras de merda e provavelmente um
milhão de palavras de meh. E, além disso, eu sorri e acenei enquanto editores
de revistas bem-intencionados me aconselharam a moderar minhas alegorias e
minha raiva. Não fiz isso. Eu cerrei os dentes enquanto um escritor
profissional estabelecido me fez uma diatribe de 10 minutos, basicamente como
uma representante de todas as pessoas negras, por mencionar a falta de
representatividade nas ciências. Eu continuei escrevendo embora meu primeiro
romance, The Killing Moon, tenha sido inicialmente rejeitado sob a suposição de
que apenas pessoas negras iriam querer ler o trabalho de uma escritora negra.
Eu ergui minha voz para rebater outros convidados em mesas que tentaram falar
acima de mim sobre minha própria vida. Eu lutei contra mim mesma e a vozinha
dentro de mim que constantemente, e ainda, sussurra que eu devia manter a
cabeça abaixada e calar a boca e deixar os escritores de verdade falarem. Mas
este é o ano em que eu posso sorrir para todos os contraditares; cada um deles,
medíocres, inseguros, aspirantes, que abriram a boca para sugerir que eu não
pertenço a este palco, que pessoas como eu não podem merecer tal honra, e que
quando eles ganham é meritocracia, mas quando nós ganhamos é por política de
minorias. Eu posso sorrir para essas pessoas e erguer um dedo enorme,
brilhante, em forma de foguete na direção deles[1].Então, quantos de vocês
viram Pantera Negra? Provavelmente, minha parte preferida é a canção tema de Kendrick
Lamar, “All the Stars”. O refrão diz: “Esta pode será noite em que meus sonhos
vão me dizer que as estrelas estão mais próximas”. Que 2018 seja o ano em que
as estrelas ficaram mais próximas para todos nós. As estrelas são nossas. Obrigada.
N.K. JEMISIN
[1] O troféu do prêmio Hugo tem o formato de um
foguete