...eu escrevi esse textinho, compartilhando minhas angústia de tentar encontrar caminhos ainda dentro do direito. A conversa com as amigas sobre Warat certamente têm a ver com essa lembrança. De certo modo, esse movimento pendular de me perder nas exigências da academia e depois de me encontrar na alegria subversiva do erótico, do cômico, parece que se tornou um processo necessário. Talvez. Caso alguém que sofra com a falta de saídas de libertação de si por meio do direito, pode encontrar uma igual aí embaixo e quem, sabe, ultrapassá-la, encontrando seu próprio caminho.
Em meio a uma insônia, a triste constatação da dificuldade de (se) carnavalizar...
Estou
aqui, em plena madrugada, com uma insônia já conhecida minha. Ao meu
lado repousa Rubem Alves e seu “Variações sobre o Prazer”, marcado na
última página do capítulo que acabei de ler. Minha insônia tem nome e
sobrenome. A causa desta insônia e de outros mal-estares dos últimos
dias me tem feito refletir seriamente, sofridamente, sobre minha postura
em relação... ao direito. Interessante que a situação aparentemente não
teria nada a ver com o direito. Tem a ver com o desejo. Mais
especificamente com desejo reprimido.
Digo:
não teria nada a ver com o direito, se eu não fosse uma leitora de
Warat. Uma leitora que concorda com grande parte das idéias deste poeta
do direito que nos deixou recentemente. Warat falava sobre a libertação
dos desejos na vida. O desejo pela vida e na vida. E como o direito
também é manifestação desta vida, ele também falava da libertação dos
desejos no direito.
Enquanto
eu estava imersa naquele mundo cinzento do jurídico, o direito sempre
me pareceu sufocante e hostil. Contudo, depois de um tempo, com os
encontros e desencontros certos da vida ( com pessoas, sempre, ainda por
meio de seus escritos), eu passei a vislumbrar a saída. Passei a
defender este caminho, a apontá-lo, a festejá-lo. Sim, era possível o
ensino jurídico e a libertação dos desejos. Era possível a prática
jurídica e a libertação dos desejos. Tudo isso era possível,
porque...ora, porque somos humanos! É disso que somos feito: razão,
consciência, mas também vontade e desejos. E o mais surpreendente desta
lógica tem sido, até agora, o fato dela não ser aparente para nós, a não
ser que se passe por estes encontros e desencontros, porque a
“estrutura monolítica” do direito está tão bem montada, que chegamos a
quase acreditar que não há vontade ou desejos no direito.
Era
nisso que vim acreditando e praticando nos últimos dois anos, ou um
pouco mais, na minha vida. Esta grande (re)descoberta do direito e de
suas possibilidades. A carnavalização, a erotização focadas por Warat,
meios e fins para o novo e a libertação, desde cedo, foram percebidas
como suficientemente poderosos. Poderosos o suficiente para não
conseguirmos nem de forma aproximada prever metade de suas
consequências. As transformações, as revoluções, as mutações que provoca
em cada um que se permite dentro destas propostas.
Quantos
de nós estamos realmente preparados para aceitar as consequências de se
viver este tipo de libertação? Agora me veio à mente dois exemplos
deste dilema: Raskolnikov e Neo. Em “Crime e Castigo”, a personagem
principal, Raskolnikov, grande admirador das “façanhas” napoleônicas,
elabora uma teoria sobre o ordinário e o extraordinário, onde os seres
humanos estariam divididos nestas duas categorias. Para ele, Napoleão,
ousado e não submetido a quaisquer regras legais ou morais, a não ser as
da sua própria vontade e desejos, era o grande nome do grupo dos
extraordinários; os que não tinham força de vontade e desejo o
suficiente, que viviam submetidos às regras religiosas, sociais, legais,
morais e de toda ordem, estes eram os ordinários. Tentando testar sua
teoria, o jovem decide matar uma velha usurária a quem devia. Ao
conseguir realizar tal intento, livrando-se das suspeitas e continuando a
viver sua vida de acordo com sua própria vontade, sem se abalar pelo
ato que cometera, estaria provado que ele fazia parte do grupo dos
extraordinários. Porém, as coisas
não saem como ele esperava. Quando o dia do assassinato chega, uma
série de fatos não previstos ( a vida!) ocorrem e ele, além de tirar a
vida da usurária, também “precisa” matar a irmã dela, que chega sem que
tenha sido esperado. Não me alongando muito mais neste spoiler do livro (
e peço desculpas), o restante das páginas mostra todo o sofrimento,
angústia e medo que Raskolnikov passa, em decorrência do ato cometido. A
vida se apresentou com toda a sua força e não previsibilidade e toda a
racionalidade fria e bem assentada do jovem não foram suficientes para
lhe livrar de todo o desespero provocado por seu crime e as
consequências dele. Raskolnikov não conhecia sua própria humanidade. Seu
tipo de humanidade.
O
outro exemplo que me vem à mente é Neo, personagem principal do filme
Matrix. Neo, até então um hacker, esbarra na “verdade” de seu mundo:
nada existe do jeito que ele conhece, tudo é fruto da criação de
máquinas que escravizam os seres humanos em um mundo de fantasia. Depois
de tomar conhecimento disto, a ele é oferecido uma opção: esquecer tudo
e continuar sua vida no mundo de fantasia criado pelas máquinas ou,
encarar o novo, a recém-descoberta de um mundo totalmente diferente e,
na história, o seu mundo real e lutar para mudar este mundo. Neo escolhe
a pílula do conhecimento ( lembra uma velha história sobre um certo
jardim) e aceita todas as consequências desta escolha, as boas e as
ruins.
Estes
dois exemplos me vieram à mente, porque talvez hoje eu me sinta um
pouco como Raskolnikov e Neo no momento de suas escolhas. Com as devidas
ressalvas quanto ao tipo de escolha de cada um, me sinto exatamente
como eles: diante de um caminho que parecia retilíneo e de repente, se
bifurca. Qual deles seguir? Eu encontrei o caminho da libertação dos
desejos, da carnavalização, da erotização dentro do direito e, portanto,
dentro da vida, mas esta mesma vida, hoje, bate à minha porta, tão
maravilhosa e assustadora, tão bela e terrível, como só ela pode ser e
me vi escolhendo o caminho sóbrio da pura racionalidade, negando o que
venho apregoando a plenos pulmões, que pode ser resumido nisto que
acabei de repetir: a libertação dos desejos, a carnavalização e a
erotização.
Não
sei se Raskolnikov e Neo, antes de fazerem suas escolhas, tinham
dimensão das consequências que teriam que lidar. Da alegria que viveriam
e das tristezas que padeceriam. Mas eles seguiram adiante quando se
confrontaram com a face bela e terrível da vida e viveram suas
consequências, as boas e as ruins. Não deram um passo atrás.
O
que quero dizer com isto é que quando a vida bate à porta, ela não pede
licença e nem quer saber se estamos preparados ou não ( e agora isto
está parecendo com um livro de auto-ajuda). Ela simplesmente vem. E
escolher defender idéias semelhantes ao que Warat propunha é ter que
vivenciá-las e esta vivência vai mexer com o mundo de quem optou por
elas e de quem convive com estas pessoas. As estruturas são abaladas.
Todas elas, as internas, daquele que escolhe e as que têm manifestação
no mundo. Estamos preparados para esta força? Eu pensei que estava. E
realmente me surpreendi, tristemente, com a minha própria escolha e em
perceber o quanto ainda preciso me libertar das minhas próprias amarras
que me impedem de viver este tipo de crítica tão contundente.
Eu
errei quando eu disse que a vida bate à porta. Ela não faz isso. Ou ela
a arromba ou ela salta a janela sem que estejamos esperando. E viver a
libertação, a carnavalização e a erotização dentro do direito e na vida (
que insisto, também tem no direito sua manifestação) é ter a coragem de
suportar todas as consequências desta escolha. Não se voltando para o
refúgio seguro da pura razão, da sobriedade, do mais do mesmo, do
lugar-comum. Isto não pode servir a quem deseja viver esta crítica.
E estes escritos são um desabafo de uma pessoa com insônia, não têm um objetivo maior. Mas obrigada pela gentil atenção