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quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Kaladin e as emoções 💙

 

Kaladin com seu casaco azul e a esprena azul Syl (por willy bissonnette)

AVISO: Usei termos gerais para não dar tantos spoilers, não especificando muitos nomes, apenas os que achei necessário. Se você pretende ler a série, fica o alerta.

 *Originalmente publicada na minha newsletter "Clube de Profecias"


Estive mergulhada em Roshar (o nome do planeta) desde o ano passado, quando comecei lendo O Caminho dos Reis (Trama), quando ganhou sua primeira tradução no Brasil. O ano começou e criei coragem de ler os outros três calhamaços já lançados na série, ainda não concluída por Brandon Sanderson, já que serão 10 romances. Como se trata de um mundo de fantasia muito rico com, pelos meus cálculos, mais de 6000 páginas até agora, nem me atrevo a tentar explicar. Eu só quero destacar uma pessoa dela, para fazer algumas reflexões: Kaladin Stormblessed/Filho da Tempestade.


Kaladin é o principal protagonista da história, o heroi mais festejado, mas é um rapaz sem sorte. Como alguém que sente demais tudo, sua cabecinha foca especialmente nos erros e nas perdas. Sua trajetória passa de cirurgião à soldado e depois a pessoa escravizada (isso é dito bem no começo do primeiro livro), perde pessoas que ama e ainda por cima e provavelmente por tudo isso, Kaladin tem depressão.


Na história, a depressão leva o nome de melancolia, que é uma das muitas denominações que a doença (ou algo parecido) teve desde Hipócrates. Kaladin vive em um mundo de guerreiros, onde as doenças mentais são escondidas e até vergonhosas.  


Contudo, não é atoa que ele é chamado de Stormblessed, Filho da Tempestade. Em certa altura dos livros, mesmo arrasado por não conseguir mais salvar as pessoas como costumava fazer, observa ao redor e percebe que seu problema era uma causa coletiva. Muitos dos seus colegas tem problemas com alcolismo e outros transtornos relacionados à guerra, alguns foram até mesmo enclausurados com os fervorosos (que é uma espécie de cientista e religioso desse mundo).


Um dos pontos positivos desses livros, é que Sanderson não permite que seus protagonistas passem imunes ao sofrimento emocional, em um sentido não de glamourização da doença e sim como um acréscimo de um aspecto da vida que pode ser facilmente esquecido em meio aos cenários fantásticos, superpoderes, espadas, armaduras e lutinhas. Eu gostei muito e me emocionei sempre que isso aparecia na história.


Então, Kaladin já com a autoridade de herói de licença e cirurgião, defende a ideia de que é preciso que se fale sobre esse problema e que seus companheiros e demais pessoas que se encontram sem tratamento adequado, sejam incentivados a saírem da clausura. Basicamente uma reforma manicomial no meio da guerra.


Sim, ele está criando o método psicanalítico de Roshar. O método se desenvolve em várias frentes: ir aos estábulos interagir com os cavalos, sentar-se ao sol, cuidar dos jardins incipientes de uma terra de rocha sem solo etc. No caso do nosso Kal, ele vai melhorando por poder, de um jeito diferente do que fazia enquanto soldado, salvar as pessoas, porque é para isso que nosso herói existe e é o juramento que ele faz:


Vida antes da morte,
Força antes da fraqueza,
Jornada antes do destino.
Protegerei aqueles que não conseguem proteger-se.*
 

Existem outras situações que incentivam a empatia, o sacrifício, a honra, a tolerância, a amizade. Esse modelo de juramento é adaptado por outros personagens, dependendo de cada problema que enfrentam, no meio das grandes disputas das guerras das Tempestades. Não só por isso a minha identificação do herói de pele marrom e cabelos ondulados, mas a própria aventura dele, lidando com sua doença, mas ao mesmo tempo ganhando seus poderes enquanto salva o mundo é muito emocionante, para quem curte essa literatura, que recomendo demais! 😉


Você pode adquirir o primeiro livro em português aqui 
 

*cada juramento vem depois de um grande desafio interior sendo superado, quase como uma revelação de si para si. 

Kaladin como carregador de pontes com sua lança. - onlycosmere (tumblr)


segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Há uma raiva de fundo


Há uma raiva de fundo
Como o clarão de um incêndio ao horizonte
A substituir a aquosa angustia
Lembra um sol velho
Que já se ergueu e se deitou tantas vezes
E que faz uma última aparição.



quarta-feira, 26 de abril de 2017

Resenha: Frankenstein ou o moderno Prometeu.

Mary Shelley

SHELLEY, Mary. Frankenstein ou o moderno Prometeu. Martin Claret: Rio de Janeiro, 2012.

O livro Frankenstein, de Mary Shelley, foi concebido no ano de 1817, em uma visita que a autora e seu marido fizeram a Lord Byron. Fruto de uma aposta entre os convivas daquelas férias, onde cada um dos participantes deveria escrever um conto de terror, Shelley, que de início não se mostrara muito empolgada, terminou por permitir-se inspirar pelo momento. Sendo filha de Mary Wollstonecraft, não era desconhecido da autora a expectativa que gerava quanto a uma possível obra vinda de si, que inclusive o próprio marido alimentava. Até então, ela havia se contentado em ser uma entusiasta de estudos em geral para seu próprio esclarecimento, não nutrindo ambições de fama na escrita literária, atarefada que era com as viagens de sua família e os afazeres do lar. Tudo mudou com aquela visita a Lord Byron.
O livro é dividido em Introdução, acrescentada pela autora em 1837, o Prefácio, único trecho escrito pelo marido de Mary Shelley e o próprio conteúdo da obra, dividido entre 5 cartas e 24 capítulos. Como não era incomum em sua época, Mary Shelley tem parte de seus escritos apresentados como um romance epistolar, com quatro das cartas logo de início, antes da história da criação do Monstro ser contada e uma última, narrando o desfecho dele e de seu criador. Os vinte e quatro capítulos são o “miolo” da obra.
A história criada por Shelley, acontece principalmente na Suíça, terra onde nasce Victor Frankenstein, a personagem que dá nome à obra. Victor, que desde criança apresentou uma insaciável sede de conhecimento, primeiro dedicou-se, ainda adolescente, aos estudos da alquimia, fascinado pelo tipo de buscas que os sábios dessa arte perdida realizavam. Seus primeiros estudos aconteceram em ambiente doméstico e nos arredores do lar. Sua mãe e seu pai incentivavam seu espírito determinado e ele também era acolhido por Elizabeth, criada como sua prima e prometida como “sua” desde o momento que seus pais adotaram e salvaram a linda e angelical criança loura, das mazelas da pobreza. Victor, mais velho, ainda tinha dois irmãos William e Ernst, além do grande amigo, Henry Clerval.
Como um alerta tenebroso, a mãe de Victor Frankenstein falece no dia que o rapaz deveria ir a Ingolstadt, na Suíça, entrar na universidade. Ignorando qualquer traço premonitório nesse fato, Victor Frankenstein apenas adia, em algumas semanas, sua entrada ao mundo acadêmico, que selará seu destino e de sua família.
Chegando a Ingolstadt, apressa-se a se apresentar a seus professores. Shelley nos proporciona dois professores de personalidades opostas. O professor Krempe, mais ríspido e com maneiras pouco esmeradas, que se espanta e ri dos conhecimentos alquímicos de Frankenstein, já não só ultrapassados, como duramente desacreditados pelos avanços das ciências do seu tempo. E o professor Waldman, que também se surpreende com o domínio da alquimia pelo seu novo pupilo, mas em vez de ridicularizá-lo, tenta encaixar a alquimia, como uma fase ultrapassada, mas necessária para que as ciências chegassem onde estavam. Desse modo, Frankenstein, autodidata em alquimia, agora precisaria correr atrás do que ignorou em sua busca pelo conhecimento, isolado de um possível diálogo científico construtivo- isolamento esse desenvolvido desde criança, em outros níveis e que também contribui para o desfecho da obra.
Estando devidamente adaptado a um estudo incessante quando se via tomado pelo que acreditava serem grandes temas e ideias, Frankenstein não só alcançou seus colegas, fazendo prodigioso progresso, como os ultrapassou, sendo considerado já um igual por seus professores. E, sim, ele havia encontrado, a partir de seus estudos com eletricidade e galvanização, uma grandiosa ideia a qual perseguir: a imortalidade.
De certo modo, vemos Frankenstein apenas alterando seu o método, já que em seus estudos alquímicos, a pedra filosofal não havia passado indiferente a ele. A ciência se convertia em sua nova pedra filosofal e o resultado disso iria além das consequências que o jovem mestre esperava. Unindo eletricidade ao conhecimento da anatomia humana, Frankenstein não hesitou em profanar corpos humanos, já sem vida, para construir sua obra: um ser vivo imortal. O ser perfeito. 
Porém, sua criação não saíra exatamente como ele esperava. Em vez de belo, era um  gigante de mais de 2 metros, fisicamente repulsivo, o que horroriza a tal ponto Frankenstein, que foge, sem sequer constatar de fato, do que ou quem era aquele que acabara de criar.
E nesse momento, o caminho dos dois, criador e criatura, separa-se, por pelo menos dois anos. 
Frankenstein, tendo a estrutura física e emocional fragilizadas pelo processo de criação do que passou a chamar de Monstro precisou ser amparado por Clerval, seu amigo, a quem o pai comerciante havia permitido também estudar em Ingolstadt. 
De fato, Clerval é a personagem de maior proximidade de Frankenstein. É a ele que o cientista trata como igual, ao contrário do modo como estabeleceu desde o início, sua relação com Elizabeth ou mesmo com o Monstro. A primeira sendo tratada como uma espécie de posse sua, um belo objeto querido e o segundo, como algo a ser totalmente rejeitado, mas que se mostrou ser mais moralmente complexo do que o juízo que seu criador fazia- a partir de uma relação problemática entre beleza e bondade, a qual percorre toda a obra.
O Monstro, abandonado e rejeitado por sua aparência não só pelo criador, mas por cada pessoa que se depara com ele em seu caminho, consegue abrigo em uma espécie de celeiro contíguo a um pequeno casebre, onde morava uma família francesa. Ouvindo e observando a família diariamente e de posse de alguns livros, como o Paraíso Perdido, de Milton e os escritos de Plutarco, o Monstro consegue começar a compreender o mundo humano no qual fora lançado e largado sem qualquer ajuda ou explicação.
No início, nutre esperanças de que poderia ser aceito e amado, apesar da sua aparência repugnante (já havia aderido a essa conclusão), se as pessoas o escutassem e compreendessem que ele tinha boas intenções. Era sensível, apreciava a mudança das estações e de luz, além de ser vegetariano. A família que observava às escondidas, parecia emanar bons sentimentos, o suficiente para acolhê-lo e foi a ela que decidiu recorrer. Um dia em que o sr. De Lancey, membro cego da família, estava só, tentou explicar sua situação e pediu ajuda. Sem ser visto, ele corretamente acreditou poder começar a ser ouvido. Conseguindo comover o sr, De Lancey, que se mostrou disposto a ajudá-lo, não teve tempo de prosseguir com sua tentativa de ser aceito. A certa altura, os demais moradores da casa retornam e, diante da enorme e horrenda figura, enxotam de maneira cruel o Monstro que parecia ameaçar o patriarca.
Profundamente magoado, foge e então é tomado pela fúria, incendiando a casa, assim que descobre que seus moradores mudaram-se sem que ele soubesse para onde. 
Continua sua caminhada em solidão, alimentando-se das frutas e raízes que encontra. Prossegue em suas reflexões sobre a bondade humana e sobre um lugar que ele pudesse ter na sociedade deles (nossa). Em meio a suas andanças (ou fuga, já que estava sendo perseguido pelos moradores do vilarejo que abandonou depois do episódio com o sr. De Lancey), ainda encontra uma moça se afogando em um rio. Tenta salvá-la, mas quando está com ela nos braços, um homem aparece, toma a moça e o ataca com um tiro, pensando que o Monstro havia matado-a. 
Depois disso, mais revoltado ainda com os humanos, conclui que jamais teria um lugar seu e que em vez de bondade, só havia conhecido o desprezo, a crueldade e a repulsa daqueles que esperava acolhimento e compreensão. Todos esses fatos contribuíram para que, agora, focasse definitivamente naquele que concluiu ser o responsável pelo seu destino: seu criador.
Este estava se restabelecendo, depois de muito tempo adoentado pela dedicação ao trabalho que abandonara. Quando decide retornar ao lar, seu caminho volta a encontrar-se com o da sua criação.
Isso ocorre quando o Monstro mata o irmão mais novo de Victor Frankenstein. Havia tido a ideia de conseguir uma criança para educar, já que supostamente ela ainda não havia adquirido os preconceitos da espécie, de modo que pudesse aceitá-lo, tornando-se sua companhia. Sendo repelido por William e descobrindo o parentesco dele, mata-o. Ainda por cima, incrimina Justine, que ajudava a criar William, ao concluir que ela seria uma mulher que jamais o amaria. Justine é condenada à morte, culpada pelo assassinato da criança.
A partir daí Frankenstein entende que está sendo perseguido pelo Monstro e que este planeja sua completa destruição. Quando se reencontram, finalmente, num dos lugares da infância de Victor, a criatura fala sobre sua solidão, culpa o criador pelo abandono e o coage a criar-lhe, agora, uma companheira, que comeria raízes e frutos como ele e que iria morar no selvagem Novo Mundo, deixando a civilização em paz. Aqui é interessante notar que, se Frankenstein surge como o “Moderno Prometeu”, o Monstro seria o novo Adão e a futura companheira a nova Eva, no Jardim do Éden possível ao imaginário de Shelley à época, a América do Sul.
De início, Victor concorda, sente-se, já não sem tempo, responsável pelo que criou e de certo modo, parece acreditar na promessa do Monstro. Viaja para a Inglaterra com Clerval, sob o pretexto de estudos e pesquisa e de lá vai para alguma ilha perdida na Escócia, agora sozinho, para criar a noiva da criatura, ele mesmo noivo de Elizabeth, que o esperava para o casamento, assim que retornasse.
Quando estava ao fim de sua mais nova criação, Victor foi tomado novamente por um novo sentimento de repulsa, ao seu que agora considerava ignóbil. Some-se a isso, uma aparição repentina da sua primeira criatura na ilhota em que se encontrava, demonstrando alegria ao ver que seu sonho de ter uma companhia estava em processo de conclusão. O resultado dessa visita não esperada foi um cientista furioso, destruindo aquela que nunca chegou a ter vida, como o Monstro esperava. Tendo presenciado o desfecho que Victor deu a promessa que havia feito e a sua noiva, a criatura de Frankenstein levou adiante sua vingança.Matou Clerval, o grande companheiro de Victor, tendo ainda recaído sobre este a suspeita da morte. 

Retornando à sua casa, já livre das suspeitas, onde Elizabeth esperava para o casamento, Victor ainda arrasado pela morte do amigo e com a certeza que a tragédia se estenderia a ele pessoalmente, em sua noite de núpcias, como o Monstro lhe havia ameaçado, decide prosseguir com a cerimônia. Enente que não há como fugir, por isso acredita estar enviando um recado direto. Garante antes à sua noiva, que compartilharia com ela o segredo do porquê todas essas tragédias pareciam rondar a família.
A culpa, o medo, a autossuficiência alimentada desde a infância, a busca sem limites por um destino grandioso, que acreditava ser alcançado solitariamente, fez com que Victor tivesse guardado para si, toda a origem desses eventos macabros que passaram a lhe seguir os passos, colocando a vida de tantas pessoas em risco.
Infelizmente, ainda não seria sua esposa a pessoa para a qual revelaria a trajetória e resultado de suas pesquisas irrefletidas. O Monstro, que parecia aproveitar-se de uma tendência ao solipsismo do seu criador, que pensava que seria a vítima da vez da criatura, simplesmente preferiu ir atrás de Elizabeth, que estava sozinha, no leito de núpcias. Deu ao seu criador o gosto de perder a companheira, como ele havia feito antes ao destruir sua segunda criação.

Inconformado com a morte da sobrinha de criação, Alphose Frankenstein, pai de Victor, morre poucos dias depois. Apesar de Shelley não ter mencionado, acredita-se que Ernest, o outro irmão de Victor, também fora morto pelo monstro.

O cientista tenta relatar seu caso ao juiz da cidade, finalmente explicando seus experimentos e criação, não sendo, obviamente, acreditado em termos oficiais, o que não lhe permitia requerer uma equipe de buscas pelo paradeiro do monstro.

Os últimos dias de vida de Victor Frankenstein passam-se em perseguição de sua criatura, com o objetivo de destruí-la. O monstro, tendo compreendido a intenção de Victor, parece ter encontrado um modo de sustentar alguma relação com seu criador, buscando incentivar a perseguição: permitia ser avistado quando se distanciava muito, deixando comida pelo caminho (carne, que o próprio monstro não comia). Até que, já no polo norte, Victor, com as forças já no fim, encontra o navio daquele que seria o relator da sua história ao mundo, Walton, comandante de um navio de exploratório, com a alma tão tomada pelo sonho de grandeza e com a expectativa de uma amizade profunda, como um dia o próprio Victor havia sido.
São as cartas de Waldon escritas para sua irmã, Margaret, a partir do relato de um Victor já à beira da morte, que começam nossa história; assim como é uma delas que a conclui, já depois do falecimento do cientista. A última carta conta o encontro da criatura, com o corpo de seu criador, já no caixão.
O relato de Waldon descreve uma criatura em intenso conflito de emoções, alguém que não teve tempo, experiência e ensinamentos suficientes para lidar com a complexidade dos sentimentos humanos que herdara. Ao mesmo tempo que lança imprecações a Victor, acusando-o de egoísmo e reivindicando sua morte, o Monstro fala de sua angústia, ao matar as pessoas sob a influência da ira. No mesmo corpo residia o ódio, o remorso, a inveja, o arrependimento, sendo que o que entendemos como boas emoções para ele significava claramente a dor, já que não havia lugar para ele, enquanto monstro, expressar-se de modo benevolente no mundo humano. Então preferiu alimentar o oposto do amor e da solidariedade, já que esse avesso geravam emoções que a um monstro era permitido ter.
A criatura desaparece, prometendo criar uma pira, onde seu corpo seria consumido e a obra de Victor Frankenstein jamais pudesse voltar a ser tentada.

Ps. Resenha feita para uma disciplina linda do doutorado <3


quinta-feira, 29 de setembro de 2016

O pássaro azul



há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo, fique aí, não deixarei que ninguém o veja.
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas eu despejo uísque sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro.
há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo,
fique aí,
quer acabar comigo?
(…) há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
eu digo: sei que você está aí,
então não fique triste.
depois, o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
como nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar,
mas eu não choro,
e você?

(Bukowski.)

A beautiful gift to me. 
<3

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

O medo, a estrada e o muro

O medo não é só o alerta quanto a uma situação de perigo. O medo é um indicador da nossa potência. Um sinal de que ela tá acumulando muita energia que não está sendo aproveitada. E como o medo é direcionado, ele aponta o caminho de liberar a potência e transmutar. Quando ele vem, é porque aquele momento, ou pensamento, ou emoção tocou em algo que nos faria dar um salto no desconhecido da potência.

E é por meio desses saltos que a vida se apresenta de maneira única. Ultrapassando barreiras de tempo e espaço numa afirmação de si.

Nosso comportamento natural é permitir que os medos se transformem em muros que nos mantêm seguros, em limites de estradas já bem mapeadas. Muros seguros que nos impede de ver além do muro que também somos nós. Limites que treinam nosso olhar para o adiante supostamente já conhecido (por isso, seguro, ainda que nos maltrate), quando existem trilhas e veredas em profusão a serem percorridas e mesmo construídas a partir dos nossos passos.

O medo também é a intensa percepção do além muro e de que os limites da estrada conhecida não são obstáculos intransponíveis. A estrada, que um dia foi uma trilha que deu certo para a primeira de nós, (seja lá o que tenha sido esse "dar certo") e que, por segurança, por adestramento, por comodidade, por preguiça ou por fé sincera, a maioria de nós continuou a seguir.

E tanta infelicidade, tanta insatisfação, tanto medo surgem por resultado desse apenas continuar, já que aquela estrada não era sua e nem aquele muro era tão seu como você imaginava. Quem encontra sua trilha e tem coragem e possibilidade de segui-la, pode até vê-la transformada em estrada, mas ainda assim será sua estrada; também pode-se construir algum muro (eles podem ser úteis, por um tempo), um muro baixo, com vista para o outro lado. Mas daí ambos seriam potência transmutada em vida, compondo o cenário maior da paisagem, com muitos territórios a serem provocados em explosões de suas potências coloridas.

Já depois de terminar o texto, eu lembrei de um poema do Mario Quintana que eu relia muito, em uma determinada época da minha vida. Por algum motivo que eu desconheço, parei de relê-lo e segui por outros versos. Fala de um caminho velhinho, um caminho esquecido. O caminho dele me parece uma das minhas trilhas. Porque as trilhas podem ser caminhos já tentados e abandonados, caminhos já descobertos em outros tempos e esquecidos ou caminhos que nós mesmos começamos a trilhar e, que, pelos mais diversos motivos, largamos. Quintana me fez lembrar que essas trilhas adormecem, algumas podem até ficar em "estado de morte" se não tem mais seu caminhante. Mas sempre pode acontecer de uma trilha já abandonada por alguém que decidiu que era mais sereno seguir a "estrada de todos", sirva de incentivo para outros caminhantes percorrerem aquele caminho e criarem novas retas e voltas. Quem sabe a gente não esbarra com uma dessas depois que arriscarmos pôr o pé fora daquela estrada.

Tem uns 7 anos que essa foto aí foi tirada por uma amiga minha, numa das praias de São Luis. É meu eu de 7 anos atrás numa trilha, depois de tomar uma importante decisão.

Caminho (Mario Quintana)

Era um caminho que de tão velho, minha filha,
já nem mais sabia aonde ia...
Era um caminho
velhinho,
perdido...
Não havia traços
de passos no dia
em que por acaso o descobri:
pedras e urzes iam cobrindo tudo.
O caminho agonizava, morria
sozinho...
Eu vi...
Porque são os passos que fazem os caminhos!

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