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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Gotas

As opiniões e os gostos das pessoas que já amamos se tornam, por vezes, como gotas densas de algo que se deposita no fundo da alma. Eventualmente alguma coisa agita esse local de descanso e elas retornam à superfície, borbulhando e aderem a um objeto, a um lugar, ou a um sentimento e se misturam a ele. Desaparecem, por se transformarem em outra coisa. Retornam ao fundo da alma, agora mais densos, se a transmutação não ocorreu. Nesse último estágio, talvez sejam expelidas com violência, na próxima oportunidade. Talvez se tornem catalizadores de feitos incríveis da alma que residem. Talvez tirem a vida dela aos poucos. Quem sabe? 

Gota desenhada com aquarela preta
gota desenhada com lápis de cor preto e cinza

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Tarô e bibliografia particular


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS QUE INSPIRAM A MINHA LEITURA DE TARÔ

Joseph Campbell: os 4 volumes da mitologia e o poder do Mito. O poder do mito (a longa entrevista).
Bachelard: todos da fase noturna do filósofo.
Warat: para quem tem uma formação mais burocrática, como eu, inicialmente pode precisar de uma leitura como as obras do Warat como “A ciência jurídica e seus dois maridos”, para se soltar, lembrar que o mundo pode ser mais desejante e voltar a sonhar, mesmo em lugares inóspitos.
Simbolismo e poesia em geral: se você pensar bem, suas aulas de simbolismo já davam uma dica que interpretar por analogia e associação, bem como deixar a imaginação vagar pode dar bons resultados. Particularmente o Cruz e Souza, poeta maranhense e o Da Costa e Silva, piauiense com seu Zodíaco, podem dar uma mão. Eu acrescentaria o Mario Faustino, que não é simbolista, mas inspira num sentido interessante para o tarô. Poesia em geral, quando você segue a regra da entrega absoluta ao autor, pelo menos na primeira leitura, é um meio muito eficiente de estimular a sensibilidade aos símbolos do jogo.
Jung: É o fundamento racional principal junto com o Campbell, no meu caso. Não gosto de usar esse tipo de justificativa, porque não é meu desejo transformar o tarô em uma pesquisa acadêmica. É uma prática intuitiva, de imaginação e de alteridade. Mas o Jung pesquisou tanta coisa que é ignorada pela academia desde a época dele, que quem trabalha com imaginário e sonhos pode muito bem aproveitar para usos práticos. O livro a respeito inconsciente coletivo e os arquétipos dele me ajudou bastante, porque traz vários desses modelos gerais da humanidade que surgem em fábulas, religiões, mitologia, sonhos e manifestações do inconsciente em termos vários, que se manifestam em técnicas como o tarô, também. Os livros deles a respeito de alquimia, que na minha opinião são os mais difíceis, são interessantes pelas imagens que sugerem e pela pesquisa histórica.
Clarissa Pinkolas Éstes: O livro Mulheres que Correm com os Lobos e suas histórias bem narradas e aprofundadas nos comentários da autora psicanalista e catadora de histórias ancestrais, ajuda-nos a projetar mais longe tanto os personagens que surgem nas cartas, como a própria narrativa da vida do consulente. Além de ser uma excelente ferramenta de auto descobrimento, especialmente para as mulheres, as grandes guardiãs da arte do tarô ao longo dos séculos.
Marion Zimmer Braddley: não vou negar a influência da Marion, apesar de algumas ressalvas atuais. Seu As Brumas de Avalon e as demais obras que narram a vida das sacerdotisas que aparecem em muitas versões do tarô ajudam-nos a imaginar a velha, a donzela, o velho, o sábio, a rainha, o rei e toda a sorte de imagens relacionadas a uma corte real envolvida com magia, que é, por exemplo um tema tradicional do tarô como o de Marselha. Passei anos encantada com a obra dela e sua versão da lenda do Rei Arthur.
Cecília Meirelles: eu entendo que a linguagem que a Cecilia Meirelles (neossimbolista) adota em muitos dos seus poemas, ajudam na leitura do simbólico contido no baralho. Ela me inspira na poesia, além do deleite- eu não leio poesia visando nada além de ler a poesia, mas que bom que veio esse bônus e posso compartilhar.
Por acaso, o meu estilo de poesia evoca o simbólico, a natureza e as emoções, todos artigos muito caros para quem lida com o tarô. Se você quiser dar uma olhada, é só correr os olhos no blog. Eu aposto que quase toda taróloga ou todo tarólogo é, no fundo uma poeta, um poeta.
Por falar em bônus e em natureza: livros que evoquem nosso contato com os elementos naturais são interessantes. Talvez o Bachelard ajude nisso, mas também o Walt Whitman, a Emily Dickinson e o Thoreau contribuam em construir uma boa atmosfera interior para quem não teve esse contato direto com a natureza, ou quem, como eu mencionei antes, está com uma formação mais enrijecida, meio “cartesiana”. Se você já tem um contato profundo com essa natureza não humana, aproveite, pois ela é uma biblioteca espontânea do imaginário e do sensível que importa para o tarô, a sensibilidade para perceber e ampliar essa percepção da vida em seus ciclos são fundamentais para essa arte.
A internet está cheia de sites com modelos de baralhos e de jogos, você pode recorrer a vários deles, como eu faço e aprender, treinando com o que mais se identificar.

Carta da Cavaleira, naipe de copas, tarô cigano.


terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Diário da Dora

Dora tem que lidar com suas próprias angústias de filhote: nem sempre querem brincar com ela; a gata não deixa que se aproxime; a cachorra mais velha é impaciente; nem todas as meias foram eliminadas; não pode retirar toda a areia do vaso de planta. 

Pelo menos deixam que fique num cantinho mais frio do quarto, para um suspiro profundo e sua sonequinha. 





terça-feira, 26 de novembro de 2019

Nasce o Instituto Esperança Garcia

Deixo um convite bonito e importante aqui no blog:

Nessa sexta-feira, nascerá oficialmente o Instituto Esperança Garcia. O Instituto é abrigo-andante de projetos-sonhos de educação em Direitos Humanos feminista, antirracista, contra-colonialista e anticapitalista. O encontro-anunciação será das 19h às 22h, no auditório da OAB/PI. Será gratuito e contará com o lançamento da quarta turma da Pós-graduação em Direitos Humanos Esperança Garcia com a Faculdade Adelmar Rosado; o lançamento do livro “A negação da liberdade: direito e escravização ilegal no Brasil oitocentista (1835-1874)” de Gabriela Sá; e da Campanha Esperançar com a Defensoria Pública do Piauí. 

Sua presença é muito importante.

 Até lá <3


domingo, 9 de junho de 2019

Brené Brown: Vulnerabilidade e Coragem

Escutando o meu podcast favorito Talvez seja isso, que abordou pausadamente a mágica contida nas páginas do livro Mulheres que correm com os lobos, uma das sugestões extras das locutoras/criadoras Bárbara Nickel e Mariana Bandarra que se repetiu e chamou minha atenção foi a menção a Brené Brown (pelo modo afetivo que a Bárbara falava dela). Descobri o Ted da Brené Brown e vi que era um carinho e um puxão de orelha nas nossas almas aquilo ali.

Brown fala sobre vulnerabilidade, seu objeto de pesquisa há mais de 20 anos na academia. E ao contrário do que poderíamos pensar, ela não é uma mulher fofinha que defende a vulnerabilidade como uma coisa fofinha. Há uma mente bastante pragmática e eu diria até excessivamente disciplinada que se esforça em passar uma mensagem (sem usar a linguagem acadêmica, expondo-se) a quem se propõe a ouvir: não há criatividade, não há relações que valham, não há solidariedade sem exposição, sem vulnerabilidade. Não à toa Brown se tornou dessas autoras que persistem na lista dos 10 livros mais vendidos do The New York Times, além da sua palestra do Ted Talks ser das mais acessadas do mundo.(10 milhões de acessos até aqui).

Por isso, ter encontrado seu rosto nas novidades do Netflix esse ano foi uma surpresa muito encantadora e essa é minha sugestão dessa postagem: "O chamado à coragem". Eu ri e chorei e pus a mão na consciência e, acredito que se nos propormos a crescer como seres humanos, na vida pessoal, na vida profissional, como sociedade, tem muita coisa ali que merece um ouvido atento. Bora se dar uma chance? 



Uma das Ted Talks da Brené Brown


Ps. Essa é uma das postagens com mais tags que já fiz e é tudo de propósito ;)

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Paulo Freire i





A primeira vez que entrei em contato com Paulo Freire, foi quando me aproximei da assessoria jurídica popular. Havia lido um livrinho dele, chamado "Pedagogia da Autonomia", que havia comprado no Salão do Livro do Piauí, ainda em seus primeiros anos, no início dos anos 2000. 

Começar a ler a obra, acompanhar as discussões sobre e, principalmente, ver o esforço da prática do que ele propunha, certamente foi uma das minhas mais preciosas experiências. Tanto pelas amizades que se construíram nesse processo (por meio das redes e presencialmente), quanto pelo contato com os movimentos sociais, a partir de uma tentativa de tornar a discussão em torno do direito mais horizontal- algo que eu intuía sofrivelmente ser possível, mas que o curso, dentro do formato tradicional, nunca me apresentou. Um outro motivo de eu considerar essa experiência, essas leituras e conversas e discussões, foi o exercício didático de ouvir a outra e o outro, a compreensão do porquê, antes de tudo, é preciso haver um processo prévio e depois contínuo de auto-crítica para aquela ou aquele que se dispõem a ser professorxs.

E muito me surpreendeu a ignorância das pessoas que lidam com a educação a respeito da proposta freireana. Fiquei pensando que a contra-propaganda da ditadura de 1964 vem sendo tão eficiente em nosso tempo, quanto foi na época- o que a falta de um mergulho crítico nas nossas instituições não faz, não é?
Falo sem nenhum medo de parecer arrogante. Dizer que Paulo Freire desconsidera as diferenças entre os saberes, por ele defender o diálogo, a horizontalização das relações de todas as pessoas envolvidas no ambiente educacional é só um dos muitos absurdos preocupantes sobre a práxis proposta pelo educador. E me deixa triste ouvir isso de pessoas que deveriam conhece-lo.

Da minha parte, penso que Paulo Freire é genial. Mas penso que um outro engano pode ser cometido por um outro grupo, dos entusiastas de Paulo Freire. Por acreditar que o diálogo, a dialogicidade é o melhor caminho para a educação, muitos ignoram o que mencionei antes: o pronfundo processo contínuo de auto-crítica e eu diria, de conhecimento de si, diante daquele saber que vai ser apresentado às turmas e diante dos muitos saberes que viram desses estudantes. Note que estou falando de uma sala de aula formal.

Aplicar a horizontalidade sem auto crítica dentro de uma instituição oficial, comumente marcada pela hierarquia, é uma prática tão danosa quanto o que se quer desconstruir. Isso porque, é claro que a professora, o professor, possui o domínio de um tipo de saber que é justamente o valorizado por aquela área do conhecimento. Um domínio que vai criar uma superioridade, uma hierarquia em termos perigosos quando se embaça as fronteiras da relação professor/a-estudante dentro de um discurso que afirma que somos todos iguais, estamos praticando a horizontalidade, quando na verdade o conteúdo é predeterminado, estudantes não possuem nenhum poder de decisão, o saber válido é aquele da comunidade de especialistas que a professora e o professor já faz parte e que xs estudantes são estimulados a entrar, ao abandono de outros tipos de saberes relevantes (sem compreender, ao certo, porque deveriam realizar esse abandono). 

Por isso uma parte de mim sempre ficava receosa de praticar algumas das sugestões freireanas em sala de aula. Com o tempo, passei, sempre de antemão, avisar as turmas de que ele era uma das minhas maiores inspirações teóricas, mas que dentro do contexto institucional vigente, eu ainda achava muito difícil praticá-la, sem cair na ilusão de horizontalidade e terminar enganando a mim e a eles e a elas. Então eu só o fazia por meio de algumas brechas antevistas ou descobertas nas trocas com as turmas no decorrer das aulas. 

Eu ainda nutro o sonho de um dia conseguir encontrar (ou reencontrar) um grupo para estuda-lo/praticá-lo, porque, bom, tá implícito no meu texto e explícito no Paulo Freire, que tudo isso pressupõe mais de uma pessoa, um complexo de relações humanas.



domingo, 23 de outubro de 2016

O rio estava cheio de histórias (parte 1)

Ontem voltei de viagem. Atravessei a caatinga do Piauí a Sergipe. Ao todo 4 estados. Tenho para mim que foi uma experiência de beleza e de escimesmamento. E de orgulho e de revolta. Um pouco de cada, na ida e na volta. Muito de alma e coração.

De beleza, a própria caatinga que descansa em um sono de morte na seca. As árvores de galhos retorcidos, os mandacarus imponentes, o pouco verde no meio do cinza e do amarelado da paisagem, os ipês amarelos que tomam o palco todo para si, o gado magro e persistente, o bode, a cabra, o jumento, o cavalo, os riachos secos, os rios temporários- quase perenes em seus desaparecimento-, a lama da água que corria, a poça do que era açude, a palma plantada que sustenta os animais que sobrevivem. O urubu, o carcará. A paca. Os espinheiros. A chuva que assusta a monotonia da paisagem, trazendo o verde aqui e ali. As crianças. As crianças.

Os velhos, as crianças, as mulheres vendendo mel, castanha, milho, siriguela, caju, coco, cebola, muita cebola. O orgulho de vender o pouco do que resta do que produziu. A ansiedade em vender o pouco que resta para não abandonar a terra. A comida caseira na beira da estrada prometendo o lar. O afeto do lar, o aconchego do lar na beira da estrada. 

A lua, as estrelas, o céu. A abóbada celeste mirada e remirada e olhada e reolhada. Espiada. Observada insistentemente pelos agricultores, aqueles ali que estavam à beira da estrada. Os agricultores, as agricultoras alcançam o céu para além do céu dos românticos, dos astronômos, dos astrólogos, das leigas com telescópio em casa, quando contemplam o vasto azul, claro e escuro, lá.

E o rio. O Rio Santo. Curveia qual serpente que traz a vida e a morte a vida e a morte. A vida. Rio verde dividido em seus braços e ilhas, rio azul quando uno. De foz e de represa. Anda de mãos dadas com o destino do sertão, que é Sertão do país. O Rio de energia, das cascatas que produzem luz, do caminho escavado nas rochas, do canion. Rio forte. Rio vagaroso. Rio dos pescadores, das fazendas aquáticas. Rio dos apaixonados. Rio dos profetas. O rio-mar.

Cerrado virando caatinga na estrada

Primeira vez que vejo o Rio São Francisco (cidade de Belém do São Francisco- PE).



O Rio São Francisco em pleno pôr-do-sol.

Super lua em Belém do São Francisco- PE.



Esse lumiar enorme aí do canto direito do casarão é Vênus. O outro lumiar próximo é Júpiter. Foi uma noite especial em Belém do São Francisco- PE.

Igreja em Belém de São Francisco (por acaso uma das cidades onde a novela Velho Chico foi gravada)

Cacto: flor e fruto.

Usina Hidroelétrica de Paulo Afonso, canyon do Rio São Francisco -com ipé amarelo e cachoeira lateral.

Canyon do Rio São Francisco em frente à represa de Paulo Afonso

O arco-íris tocando o chão da caatinga brasileira. <3



quinta-feira, 29 de setembro de 2016

O pássaro azul



há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo, fique aí, não deixarei que ninguém o veja.
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas eu despejo uísque sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro.
há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo,
fique aí,
quer acabar comigo?
(…) há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
eu digo: sei que você está aí,
então não fique triste.
depois, o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
como nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar,
mas eu não choro,
e você?

(Bukowski.)

A beautiful gift to me. 
<3

quarta-feira, 8 de junho de 2016

sábado, 16 de abril de 2016

A fábula do santo e do passarinho azul


Um dia, andando pela floresta buscando inspiração, o jovem Giovanni di Pietro di Bernardone, que futuramente seria conhecido como São Francisco de Assis, encontrou um passarinho que chilreava baixinho, baixinho, em cima de uma pedra. Suas penas azuis pareciam folhinhas murchas, como se elas tivessem acabado de ficar sob a chuva. O estranho é que, olhando através das copas das árvores, Giovanni não viu qualquer sinal de nuvens no céu:
- Olá, senhor passarinho! O que houve que lhe deixou murcho de penas e de canto?- disse com bondade o rapaz.
- (Piiiu... Piiuu...) Amanheci com um profundo sentimento de solidão epistêmica, caro andarilho. Tentei explicar o que sentia ao primeiro rosto que me pareceu amigo aqui na floresta, e qual decepção não sofri quando ao dar a impressão que me ouvia, na verdade o dito amigo preparava um bote e, ai ai de mim, quase escorrego para o estômago daquele glutão!
- E quem era o amigo, meu caro?- perguntou o futuro santo, interessado.
-  (Piiu. Piiu!) Era o senhor Gato do Mato. Veja só: sei que parece imprudente minha atitude, agora que o senhor sabe de quais espécies se tratam. Mas compreenda que, junto ao sentimento de solidão epistêmica, paradoxalmente, me veio um ímpeto de que sim era possível ultrapassar o abismo dessa solidão no qual me encontrava, independentemente de com qual espécie eu me dispunha a dialogar.
- Sim, sim. É verdade, senhor passarinho, pois não estamos os dois aqui conversando?
- (Piu. Piu.) Isso é bem verdade. E até agora o senhor não tentou me devorar.
Após uma pausa constrangedora, o jovem disse num suspiro:
- Eu tenho um pensamento sobre a solidão epistêmica e gostaria de compartilhar com você. Esse é um sentimento de difícil expressão no mundo. A maior parte dos seres viventes (e talvez dos não viventes) nem mesmo se dá conta de que todos estão à mercê disso. No mundo humano da minha espécie, alguns grupos estão particularmente vulneráveis a esse fenômeno: as mulheres, as crianças, os indígenas, os idosos e aqueles que são chamados de loucos. O que eles falam tem o que chamamos de um status inferior, ou seja, não é levado a sério, sendo depreciado, ou mesmo ignorado, como acredito que tenha sido o seu caso.
- (Piu. Piu.) Na verdade, caro amigo, a coisa entre vocês parece mais grave do que eu imaginava, pois entre nós, os passarinhos azuis, sempre estivemos dispostos a ouvir e a perceber como relevante e bonita cada nota do canto do outro. Era uma das minhas maiores alegrias, aliás.
- Mas agora eu que não entendo, caro amigo. Por que então o sentimento de solidão epistêmica?
-(Piu...) Não percebe, meu senhor? Não existem mais passarinhos azuis... Todos um dia foram acometidos por esse sentimento de intensa solidão epistêmica compreendendo que conversar só entre nós, com o tempo, empalidecia nosso canto. Então, finalmente entendemos que havia todo um vasto mundo de amigos possíveis com os quais compartilhar nossa experiência de passarinho e receber de volta a sabedoria dos outros bichos. Até dos bichos da sua espécie. No entanto, todos tiveram o fim que eu teria hoje, caso o senhor Gato do Mato não tivesse ouvido seus passos na floresta. Pois os Gatos do Mato são assim: só se intimidam diante do fisicamente mais forte, fugindo. 
Depois de uma breve pausa para recuperar seu folegozinho de passarinho, chilreou num canto firme, um que Giovanni ainda não havia ouvido desde o início da conversa:
- (Piuuuuu. Piiiuuu.) Nós passarinhos azuis, contudo, sempre fomos até o fim quando se tratava das nossas disposições. Desse tipo de disposição que tomou a mim e a você nesta manhã.

Ainda naquele mesmo dia Giovanni saiu da floresta lamentando o fato dos passarinhos azuis já não mais existirem no nosso mundo. De fato tudo pareceu mais pálido, desde então.


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