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Eu sei que nosso tempo está vivendo seu próprio temor nuclear e mais um fim do mundo orquestrado pelos poderosos do mundo capitalista, mas dia desses eu fui contemplada com a leitura de um livro de escrita tão leve e gentil com as pessoas neles descritas, mesmo quando o tempo também não era gentil e leve com elas. Estou falando do famoso Only Kids/Só garotos, da Patti Smith.
Quem se sempre se sentiu estranho na vida ou se sentiu assim pelo menos em alguma fase dela, vai se identificar com a descrição que Patti faz de si e do seu grande companheiro Robert Mapplethorp. Mapplethorp, por sua vez, levou isso às últimas consequências, criando uma arte ousada, às vezes chocante, às vezes delicada e, na minha humilde opinião, maravilhosa. Patti criou o tecido de relações importantes e contribuiu criativamente com suas apresentações poéticas, desenhos e canções, em uma rede de artistas incríveis que perambulavam mais ou menos pelas mesmas ruas da Nova Iorque daquela época. O livro que ela escreveu, mais do que uma biografia de si é uma biografia da relação dos dois (processo, transmutações etc).
N. K. Jemisin de blusa amarela, em uma rua (Crédito da imagem: John D. & Catherine T. MacArthur Foundation)
Terminei hoje a trilogia Terra Partida da grandiosíssima, brilhante e importante N.K. Jemisen. Trata-se de ficção científica de alto nível e ao mesmo tempo é um tratado de tantos temas importantes e delicados para o hoje e para o amanhã. Mas aqui agora eu trago os Agradecimentos do terceiro e último livro "O céu de pedra" e o discurso que a autora fez quando finalmente foi receber o prêmio Hugo (ela ganhou 3, um para cada volume da trilogia, mas só apareceu no terceiro- o que eu compreendo). O Hugo é a principal premiação mundial nos gêneros Fantasia e Ficção Científica e vergonhosamente ela foi a primeira pessoa negra a ganhá-lo (com recordes). Eu chorei litros com o final da história e para completar, chorei mais com esses dois textos curtos que trouxe. Eis as palavras dela:
Agradecimentos
Ufa. Isso levou um tempo, não levou? O céu de pedra marca mais do que apenas o fim de mais uma trilogia para mim. Por vários motivos, o período durante o qual escrevi este livro acabou sendo o momento de mudanças tremendas na minha vida. Entre outras coisas, saí do meu emprego formal e me tornei escritora em tempo integral em julho de 2016. Bem, eu gostava do meu emprego formal, no qual eu podia ajudar as pessoas a fazerem escolhas saudáveis – ou, pelo menos, sobreviver por tempo suficiente para fazer isso – em um dos pontos de transição mais cruciais da vida adulta. Ainda ajudo as pessoas, eu acho, como escritora, ou pelo menos essa é a impressão que tenho daqueles de vocês que me mandaram cartas ou mensagens online me contando o quanto a minha produção literária os tocou. Mas, no meu emprego diurno, o trabalho era mais direto, assim como suas agonias e recompensas. Sinto muita falta dele. Ah, não me entendam mal: essa era uma transição de vida boa e necessária a fazer. Minha carreira como escritora explodiu da melhor forma e, afinal, eu amo ser escritora também. Mas é da minha natureza refletir em tempos de mudança e reconhecer tanto o que foi perdido como o que foi ganho. Essa mudança foi facilitada por uma campanha de Patreon (financiamento coletivo para artistas) que eu comecei em 2016. E, tocando em uma notícia triste... esse financiamento via Patreon também foi o que me permitiu me concentrar totalmente em minha mãe durante os últimos dias de sua vida, no final de 2016 e início de 2017. Eu não falo com frequência de coisas pessoais em público, mas talvez vocês consigam ver que a trilogia A terra partida é minha tentativa de lidar com a maternidade, entre outras coisas. Os últimos anos de minha mãe foram difíceis. Acho (tantos dos alicerces dos meus romances se tornam claros em retrospecto) que, de algum modo, eu suspeitava que a morte dela estava chegando; talvez eu estivesse tentando me preparar. Ainda assim, não estava pronta quando aconteceu... mas ninguém jamais está. Então sou grata a todos: à minha família, aos meus amigos, à minha agente, aos meus patrocinadores, ao pessoal da Orbit, inclusive a meu novo editor, a meus antigos colegas de trabalho, à equipe da casa de repouso, a todos, que me ajudaram a passar por isso. E foi por isso que trabalhei tanto para que O céu de pedra saísse no prazo, apesar das viagens e das hospitalizações e do estresse e de todas as mil indignidades burocráticas da vida após a morte de um dos pais. Eu definitivamente não estava no meu melhor momento enquanto trabalhava neste livro, mas posso dizer uma coisa: onde há dor no livro, é dor de verdade; onde há raiva, é raiva de verdade; onde há amor, é amor de verdade. Vocês vêm fazendo esta viagem comigo, e sempre terão a melhor parte do que eu tenho. É o que minha mãe ia querer.
DISCURSO DE N.K: JEMISIN CERIMÔNIA DE PREMIAÇÃO DO HUGO WORLD DE 2018
Eu comecei a cultivar toda uma superstição de que só ganho prêmios quando não apareço [na cerimônia]. [...] Este tem sido um ano difícil, não é? Alguns anos difíceis, um século difícil. Para alguns de nós, as coisas sempre foram difíceis e escrevi a trilogia A terra partida para falar dessa luta e do que é preciso para viver, quem dirá prosperar, em um mundo que parece determinado a quebrar você. Um mundo de pessoas que constantemente questionam sua competência, sua relevância, sua própria existência. Eu recebo muitas perguntas sobre de onde vêm os temas da trilogia A terra partida. Acho que é bem óbvio que tirei inspiração da história humana de opressão estrutural, assim como meus sentimentos sobre este momento na história americana. O que talvez seja menos óbvio é o quanto da história deriva dos meus sentimentos sobre ficção científica e fantasia. Por outro lado, ficção científica e fantasia são microcosmos do mundo mais amplo, de modo algum excluídos da mesquinharia e do preconceito do mundo. Mas outra coisa que eu tento abordar com a trilogia A terra partida é que a vida num mundo difícil não é nunca apenas uma luta. A vida é família, de sangue e encontrada; a vida são aqueles aliados que se provam dignos por ações e não apenas discursos; a vida significa celebrar cada vitória, não importa quão pequena. Então, enquanto estou aqui diante de vocês, sobestas luzes, eu quero que vocês se lembrem que 2018 é também um bom ano. Este é um ano em que recordes foram estabelecidos, um ano em que mesmo os privilegiados mais cegos entre nós foram forçados a reconhecer que o mundo está
quebrado e precisa de conserto, e isso é uma coisa boa, porque reconhecer o problema é o primeiro passo para consertá-lo. Eu olho para a ficção científica e fantasia como o ímpeto de ambições do zeitgeist. Nós, criadores, somos os engenheiros da possibilidade. E à medida que esse gênero finalmente, embora relutantemente, reconhece que os sonhos dos marginalizados importam e que todos nós temos um futuro, o mundo também fará isso. Em breve, espero. Muito em breve. E sim, haverá contraposiçõs. Eu sei que estou aqui neste palco aceitando este prêmio por basicamente o mesmo motivo que todos os vencedores de melhor romance anteriores: porque eu trabalhei para caramba. Eu verti minha dor no papel quando não podia pagar por terapia, eu estudei uma ampla gama de obras de literatura e me aprofundei nelas para aprender o que podia e refinar minha voz; escrevi um milhão de palavras de merda e provavelmente um milhão de palavras de meh. E, além disso, eu sorri e acenei enquanto editores de revistas bem-intencionados me aconselharam a moderar minhas alegorias e minha raiva. Não fiz isso. Eu cerrei os dentes enquanto um escritor profissional estabelecido me fez uma diatribe de 10 minutos, basicamente como uma representante de todas as pessoas negras, por mencionar a falta de representatividade nas ciências. Eu continuei escrevendo embora meu primeiro romance, The Killing Moon, tenha sido inicialmente rejeitado sob a suposição de que apenas pessoas negras iriam querer ler o trabalho de uma escritora negra. Eu ergui minha voz para rebater outros convidados em mesas que tentaram falar acima de mim sobre minha própria vida. Eu lutei contra mim mesma e a vozinha dentro de mim que constantemente, e ainda, sussurra que eu devia manter a cabeça abaixada e calar a boca e deixar os escritores de verdade falarem. Mas este é o ano em que eu posso sorrir para todos os contraditares; cada um deles, medíocres, inseguros, aspirantes, que abriram a boca para sugerir que eu não pertenço a este palco, que pessoas como eu não podem merecer tal honra, e que quando eles ganham é meritocracia, mas quando nós ganhamos é por política de minorias. Eu posso sorrir para essas pessoas e erguer um dedo enorme, brilhante, em forma de foguete na direção deles[1].Então, quantos de vocês viram Pantera Negra? Provavelmente, minha parte preferida é a canção tema de Kendrick Lamar, “All the Stars”. O refrão diz: “Esta pode será noite em que meus sonhos vão me dizer que as estrelas estão mais próximas”. Que 2018 seja o ano em que as estrelas ficaram mais próximas para todos nós. As estrelas são nossas. Obrigada. N.K. JEMISIN
[1] O troféu do prêmio Hugo tem o formato de um foguete
O Suplemento Pernambuco foi uma dessas boas descobertas dos anos recentes. Já falei dele antes nas recomendações aqui. Consegui assiná-lo por cerca de um ano e tenho um carinho imenso pelas edições de papel, com aquelas colagens feitas por talentosos artistas no período (2016-2017 ou 2017-2018). Ele tem ainda seu pdf gratuito.
Lembrei disso, porque uma postagem no Instagram do periódico ontem, me fez rir sozinha. Lá dizia: "toda feiticeira, no fundo, é pragmática", o que me remeteu ao tema da minha dissertação que fala de pragmatismo e traz um pouco de Emily Dickinson, poeta que escreveu dos meus versos favoritos de todos:
Longos anos de distância - não podem fazer(tradução minha)
No original, aqui.
O pragmatismo não é lá benquisto na filosofia, talvez pelo excesso de ceticismo nos fundacionalismos, sem oferecer uma resposta dura e talvez por isso mesmo, ele pareça menos interessado em respostas definitivas. Mas pelo menos ele me permitiu ter bons encontros com autoras e autores interessantes. A gente se diverte com o que pode nesse meio esquisitão.
No que toca ao que motivou essa postagem, eu acho que as feiticeiras precisavam ser mais pragmáticas, por questão de sobrevivência, ainda que pareçam sempre estar a evocar as essências do mundo. Que mundo, não é mesmo? E aí está um outro segredo da feiticeira: ela parte do mundo em que está, mas quando precisa, assume outro e outro. Até porque eles nascem e morrem, como nós.
Quanto a Louise Glück, eu tinha esquecido que ela foi a ganhadora do Nobel desse ano quando comecei essa postagem, mas não é descaso, foi só esquecimento de gente distraída para conhecimento recém adquirido. Espero que ela seja traduzida logo para o nosso português, daí, quem sabe, quando eu lê-la com mais contexto, esse tipo de gafe não me ocorra. Mas não tenho pressa. O feitiço sabe esperar.
Essa postagem eu dedico à minha amiga Kelly, minha bruxinha favorita. Eu sei que de vez em quando, ela lê esses meus textos.
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Malévola, bruxa redimida na cultura pop. Um dos meus estudos de aquarela. |
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Destacam-se carnaubeiras e uma silhueta que se banha num rio |
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Gota desenhada com aquarela preta |
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gota desenhada com lápis de cor preto e cinza |
Esse desenho com essa menina de cabelos rosas e grandes numa trança, foi pedido pela Bárbara e é inspirado nas ilustrações da Danielle Donaldson. |
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E essa sereia linda eu fiz porque queria algo mais colorido e etéreo- e também é inspirado na Danielle Donalson |
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Mauricío Gaia, puro estilo em sua blusa de galáxias da Tampa de Crush (Natássia) |