Semana passada eu tive o privilégio
de, andando por São Paulo, poder visitar algumas exposições. Histórias
Afro-Atlânticas e Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana (1960-1985), a
primeira no MASP e no Museu Tomie Ohtake e a segunda na Pinacoteca. Das muitas
comoções, surpresas, risos e abalos que sofri me detendo nas obras expostas,
uma feliz e forte coincidência: em meio a uma variedade incrível de obras e
artistas, em dois projetos independentes, o poema-dança de Victória Santa Cruz, de 1978,
apareceu com destaque em ambas as exposições. Eu já trouxe uma vez aqui essa potência que nos foi legada em forma de vídeo.
Permita-se, contemplar-participar, novamente, do texto, do balançar dos corpos e da
firmeza das expressões dos artistas ali, que trazem a dor da rejeição pelo
outro e do acolhimento de si por si, e de si no grupo antes rejeitado.
Volume 1 do catálogo das Histórias Afro-Atlânticas na página que menciona Victoria Santa Cruz (1922-2014). Três fotos da apresentação.
Lou Andreas- Salomé, Carolina de Jesus e Alice Walker. Nomes imensos e ainda por serem devidamente conhecidos e reconhecidos.
A primeira, Lou Andreas- Salomé (1861-1937), psicanalista, romancista, filósofa e poeta. Interlocutora de muitos e inspiração para outros tantos, como Nietzsche, Rilke e Freud. Teve um filme sobre sua vida lançado ano em 2016 e que nos ajuda a compreender um pouco dessa brilhante mulher, que viveu o mundo de modo tão intenso. Assisti-lo não deixa de ser um exercício para que comecemos a tirá-la da sombra dos homens ao seu redor, colocando-a ao lado deles- no mínimo. Em português, há uma pequena biografia lançada pela LP&M pocket.
A segunda, Carolina de Jesus, é autora do primeiro livro que li numa das vezes que consegui participar do Leia Mulheres de Teresina. Quarto de despejo é sua obra mais conhecida, um marco na literatura brasileira, que apresenta, com crueza e realidade, o dia a dia numa favela brasileira na década de 1950, em forma de diário, com uma linguagem bastante característica. Testemunha que vive na pele de mulher negra e pobre, o esquecimento social e a luta para uma existência que lhe permita perceber em si uma dignidade inimaginada pelo meio literário da época. É daquelas leituras obrigatórias para nossa formação. Aqui embaixo segue um curta de 14 minutinhos sobre a autora:
A última, Alice Walker, escreveu o livro mundialmente aclamado "A cor púrpura" (1982), filmado por Steven Spielberg e estrelado por Whoopi Goldberg, Danny Glover e Oprah Winfrey. O livro, que é um romance epistolar, trata da separação de duas irmãs que se perdem ao longo de suas vidas, pelas violências que as acompanham desde o ambiente familiar. É uma obra chocante, especialmente em sua primeira metade e que trata da violência contra as mulheres, de misoginia, racismo e colonialismo. O livro ainda nos brinda com um ousado e inesperado casal de mulheres, que se unem para lidar com todas essas dores e aprender a criar alegrias no meio de tudo aquilo. Outro livro imprescindível. O canal "Curta!" já apresentou o episódio da série "Impressões do Mundo" com a autora. Se você puder, vale a pena conferir.
Hoje (ontem) eu finalmente assisti o documentário "A 13º emenda", que está disponível na NETFLIX. O doc trata basicamente de como a escravidão ao longo da história americana/estadunidense foi se metamorfoseando em uma continuidade de massacres da população negra do país, mesmo depois da libertação constitucional dos negros. A própria décima terceira emenda já surge como um problema em sua pretensão de generalidade e universalidade- a qual garantiria a liberdade de todos os cidadãos e cidadãs, com exceção dos criminosos. Não é difícil adivinhar qual população tornou-se vulnerável a essa exceção, depois de lançada no mundo "livre" sem dinheiro, sem terra, sem uma política responsável que lhes garantisse a sobrevivência em dignidade. Passando pelo imaginário reforçado do negro criminoso estuprador do cinema do início do século XX, simultaneamente à exaltação da idéia de superioridade racial, alcançando a luta pelos direitos civis, o doc chega ao século XXI, com a intensa discussão sobre a assustadora população carcerária dos Estados Unidos- a maior do mundo- e tenta traçar um encadeamento que deixa claro como o sistema prisional, aplicado sem considerar a questão racial e as questões sociais implicadas, só aprofundou o abismo entre aqueles que são considerados mais humanos e os que ainda não chegaram lá. O título que escolhi para a postagem "Vidas Negras Importam", é o lema de uma das campanhas que ganharam as ruas e as redes sociais, contra o extermínio dos negros, como vocês já devem ter acompanhado pelas redes sociais (caso Fergunson, por exemplo). Assistir esse documentário reforça a nossa constatação de que nosso problema aqui no Brasil é bem mais sério do que a maioria suspeita.
Ela agora está morta e eu não sei se estava mesmo apaixonado por ela
naquele tempo. Talvez estivesse. Era uma paixão que não derrubava as
outras, que se acrescentava às outras. Não tomava o lugar de nenhuma
outra.
Talvez estivesse mesmo apaixonado por ela e acho que ela
correspondia com uma paixão igual à minha. Pelo menos houve um dia que
ficou valendo como uma revelação.
Um dia que nunca se transformou
numa data, que se perdeu num mês qualquer, num ano cada vez mais remoto e
impreciso. Um dia nítido e, no entanto, insituável num tempo que se
perdeu completamente.
Penso nela de repente durante a ginástica com
que procuro combater essa paralisia que me agita o dedo da mão esquerda.
Não interrompo os exercícios, o pensamento passa. O pensamento é mesmo
uma cousa à toa.
Outras vezes suspendo a leitura do jornal para esfregar os olhos cansados e a lembrança dela fica comigo um momento.
Era um dia inútil, um domingo de tarde em que tínhamos pensado em ir ao
cinema. Mas a tarde de cartão-postal se enchia de doçura. Paramos na
beira da lagoa. Ficamos olhando os pedalinhos, que não tínhamos coragem
de enfrentar.
Sonhamos o vôo das gaivotas, o silêncio das águas
paradas. Aceitamos a paz das paisagens preparadas. Num momento aceitamos
o sol, o vento, o fogo, os poderes da vida. Vimos na tarde os peixes
saltadores e a morte da luz nas suas escamas. Mas logo desapareciam de
novo nas águas da lagoa.
Tive uma grande vitória com ela. Vitória
moral, bem entendido. O sexo entre nós seria tão natural que não
procuramos antecipá-lo. Mas acho que ela romantizava um pouco, era um
pouco ingênua sobre isto. Ficou muito espantada uma noite quando viu,
saindo do escuro da praia, um casal que tinha acabado de completar as
suas carências. Muito espantada porque o casal se separava sem uma
palavra, sem uma carícia, indiferente na sua satisfação.
Há umas duas semanas alguém me telefonou para dizer que ela morreu. Pediu-me que avisasse aos outros amigos daquele tempo.
Não avisei a ninguém, me desagradava comunicar isto aos outros. Faço
isto como se assim a protegesse contra a distância e a morte.
Acho que
agora ela está mais perto de mim do que antes. Não preciso de
fotografias, não preciso tentar despertar o passado. Não ouço os discos,
não leio os livros que ela me deu. Como se isto ajudasse a não gastar a
sua lembrança, a conservá-la intacta.
Dos poços da memória me volta
às vezes a voz de Ella Fitzgerald cantando Cole Porter: so in love with
you, my love, am I. Acho que estava mesmo apaixonado por ela. Nem eu
nem ela sabíamos ao certo o que devíamos fazer. Preparamos sem pressa o
silêncio entre nós. Perdoamos a nós mesmo pelo que não dissemos, nos
enterramos pelo que não nasceu. A vida segue o seu curso separado.
Tudo separado. O nascer, o morrer, as dores do fogo da vida.
Foi só isto cara. E talvez tudo seja só isto: um brilho rápido e depois de novo o silêncio das águas paradas.