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sexta-feira, 5 de abril de 2024

Marguerite Yourcenar- Memórias de Adriano*


*Texto publicado originalmente na newsletter "Clube de Profecias" do mês de março.


Recentemente li um livro que uma grande amiga recomendou há muitos anos atrás. Escrito em 1951, por Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano realizou o feito de entrar no rol dos melhores livros que li na vida. E escrevendo esse breve comentário aqui, penso que não sei se eu teria aproveitado bem a leitura, se tivesse lido mais de 10 anos atrás, quando Laís me indicou. Há um tipo de maturidade que precisei acessar especialmente para ler esse tipo de monumento histórico-imaginado, em que eu passava a ser o Imperador, com todas as imensas contradições que a figura histórica deixou de resquício- que as páginas do livro aproveitam com ardor.

Não me envergonho de dizer que me senti o próprio personagem principal em suas memórias, mesmo quando elas me mostravam uma situação que meu eu do presente iria facilmente por outro caminho.

Eu digo não me envergonho, porque a própria autora confessa ter feito esse tipo de exercício mental ao longo dos vários anos em que pensou aquela pessoa: visitou várias vezes a Villa de Adriano, as esculturas, os lugares que ele construiu ou reconstruiu. Não só visitava, mas meditava, tentando ver pelos olhos dele, como ele encarava cada um daqueles espaços e quem estaria com ele naquele momento.

Não sendo acadêmica, Yourcenar criou muitos métodos para construir as cenas, os cenários, as pessoas que realmente existiram e que estão ali falando, andando, amando, morrendo. Ela era muito exigente consigo mesma, como todas as boas escritoras.

Marguerite Yourcenar sua companheira Grace Frick, no jardim,1955

Apesar da amiga querida ter me indicado o livro, o que me fez ir finalmente atrás de suprir essa falta no presente, foi um comentário de uma pessoa que compartilhava nas redes sociais uma visita a uma estátua de Antinoo (ou Antinous). Fui atrás da história dessas estátuas e descobri a história do amor entre Antinoo e do Imperador, o que me deixou perplexa, porque de fato existem ainda hoje inúmeras estátuas que Adriano mandou ser esculpidas, após a perda do jovem companheiro- inclusive no Vaticano. Quer dizer: por que um imperador se importaria tanto com uma pessoa? Talvez eu esteja julgando seres humanos do passado precipitadamente? É óbvio que o erro é certo em algum nível.

Enquanto lia sobre, me chamou atenção umas questões bastante mundanas, como: que tipo de patriarcado era esse? Não havia cristianismo como a grande religião, havia uma mistura de cultura entre Grécia, completamente dominada por Roma e esta última que estava praticamente com sua extensão máxima desde o imperador anterior, cheia de outros povos incorporados. Não havia família como era concebida hoje, os papéis dos gêneros eram especialmente diversos nas camadas mais poderosas. Não havia culpa cristã, havia ainda o “instituto” da pederastia (sim era um instituto moral e é importante entender no caso da obra). Eu me permiti um exercício de entrega, confiando que a escritora sabia o que estava fazendo, ao ressuscitar um mundo tão diferente.

O resultado foi um primor. Pouquíssimas vezes eu saí da história por algum comentário que remetesse mais ao século XX, que ao século II, especialmente na questão ética e moral. Até a questão política me acrescentou novos espaços de reflexão, ao contextualizar a dinâmica entre o poder central e os poderes periféricos.

Acho que mesmo para aqueles e aquelas que não gostam de romance romântico- muitas vezes eu sou uma dessas pessoas- em livro, vai gostar porque várias facetas de Adriano aparecem: o jovem meio deixado de lado, o guerreiro, o juiz, o amante, o cônsul, o imperador, o construtor, o espiritualizado, o impiedoso, o espanhol e o grego. E a linguagem adotada é simplesmente: linda, belíssima.


busto de Antinoo


estátua de Antinoo, como Dionísio, encontrada no Vaticano

                          

Obs: O primeiro link está em português. O segundo foi posto mesmo em inglês, porque traz mais informações sobre a autora. Curiosamente a versão em português suprime até dados daquele quadro de informações básicas, como o nome da companheira da escritora. 🤔

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Marielle e o Canto das Três Raças

Acordei com o “Canto das Três Raças” na voz de Clara Nunes na minha cabeça.

Essa música, que por si só parece ecoar algo ancestral naquela que ouve, em mim ganhou o significado particular de lembrar o dia da morte de Marielle- um dia triste, no qual perdemos duas entidades poderosas (Stephen Hawking também havia partido). Conhecia a Marielle por acompanhar a divulgação de seu trabalho e de outras políticas voltadas para as periferias e as negritudes que ganhavam voz Brasil afora. 

Quando tudo aconteceu, eu estava na ilha de Florianópolis e, agora com mais de dois anos depois do ocorrido, venho aqui revisitar um pouco o modo como senti aquela perda. Vaja o paradoxo dos afetos: perdi alguém que parecia próxima e, assim, era preciso algo, um rito, para expressar aquela dor que, ao mesmo tempo, parecia tão alienígena, tomando conta de mim, do luto pela morte de alguém distante. 

Mas como se elabora um ritual para uma perda dessa importância? Que funde a distância física e a  proximidade de sonhos? Foi então que nos dirigimos para o lugar que acolheu nossas esperanças frustradas e nossas dores da política recente, desde o impeachment: o centro antigo da cidade. As pessoas foram se reunindo ao lado do mercado, com fotos dela e com velas. Uma manifestação artística acabara de acabar. Os tambores chegaram, o sol se punha: era hora. Seguimos em cortejo e alguém, no meio da multidão, puxou o "Canto das três raças", os tambores seguiram, a multidão acompanhou a letra. Sim, nós éramos muitas. 

Surpreendentemente (aquele meu eu ingênuo pensando...), a morte de uma mulher distante, negra, vinda da favela, abalara o coração da antiga ilha de Nossa Senhora do Desterro (e, antes, Meiembipe). E foi uma surpresa tão triste e tão linda... Uma irmandade fugaz que condensou em si todas as manifestações que participei no ano anterior (e antes), nas quais, nós brasileiras lutamos por nossos direitos, inclusive o de uma democracia aprofundada, uma democracia além. O "Canto das três raças" acontecia. Numa terra que trata seus indígenas como mendigos e seus mendigos como menos-gente. Aquelas vozes era uma só voz. Aquelas lágrimas, os abraços ao pé da escadaria e as lágrimas, era o que deveria restar depois de tantos reveses, povos que se sensibilizam e se unem pelas causas mais justas. Como Marielle.

Do lamento que é o "Canto das três raças", da terra queimada do fogo e da bala, a morte é transmutada: de Marielle já tínhamos seu exemplo de vida e seus projetos; ela deixou muita coisa apontada. Tirei fotos daquele dia de lamento coletivo. Não lembro se antes havia dito tanta coisa sobre aquele dia. As fotos  foram parar numa exposição acadêmica no final do mesmo ano, mas na cidade de Teresina. 

Marielle não está sendo esquecida. Está sendo multiplicada.


Pequeno altar com fotos impressa de Marielle sempre sorridente (parede verde escuro, velas e flores brancas)

No mesmo altar improvisado, uma mulher acende sua vela.



O traçado de um corpo humano no chão, rodeado de velas, indicando um assassinato. Mulheres ao redor acendem suas velas. Flores ao centro do desenho.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Um pouco de Esperança

Esperança Garcia, por Valentina Fraiz

A mulher acima, retratada delicadamente pela ilustradora Valentina Fraiz, é nada mais, nada menos que a aquela que redigiu uma das mais antigas petições feitas por mão escrava no Brasil. Calhou de ser uma mulher, calhou de ter nascido no Piauí. Esperança Garcia, que no dia 06 de setembro do ano de 1770, conseguiu, com um mínimo que capturava da cultura geral que lhe era negada, denunciar os maus tratos que vinha recebendo do feitor da fazenda na qual trabalhava. Tendo provavelmente aprendido a escrever quando ainda vivia nas fazendas administradas pelos jesuítas, os responsáveis pelo letramento na colônia na época, e, certamente, por "descuido" do sistema vigente, Esperança Garcia deixou seu nome da história, mais de 100 anos antes da abolição da escravatura. 

A primeira vez que li essa carta foi, anos atrás, numa das muitas vezes que vaguei pelo Centro de Artesanato da cidade de Teresina, observando as esculturas expostas ali. Uma delas é a de Esperança, sentada num banquinho, com a carta na mão. Lembro que naquele dia fiquei espantadíssima e orgulhosíssima com a informação. Por sorte, a internet hoje proporciona de um modo muito mais simples nosso acesso a esse tipo de documento histórico e então eu posso mais facilmente apresentar o conteúdo da carta a vocês (aí embaixo). A data da carta foi inclusive convertida no Dia da Consciência Negra do estado do Piauí. Daí, acreditando que cabe a nós não deixarmos que esse tipo de história se perca e nem que se transforme em mera formalidade num calendário, resolvi escrever essa postagem. Mas não tive essa ideia sozinha. Minha amiga Andreia, que também é professora, decidiu construir uma especialização em direitos humanos (como poucas, vale a pena procurar) numa das instituições que trabalha e ela, que é dada a inspirações como esta que vos escreve, encontrou em Esperança Garcia o grande símbolo do projeto: uma mulher, negra, escrava e que lutou pelos seus direitos quando estes nem sequer existiam formalmente na colônia, utilizando caneta e papel, coragem, uma consciência de si e do mundo, elementos que ainda hoje fundam nosso ponto de partida para pensarmos e realizarmos o que aprendemos a chamar de direitos humanos. Então, iluminada pelos seus próprios sonhos e pela história daquela mulher forte, encomendou a arte a Valentina Fraiz, que nos trouxe uma mistura de delicadeza e força, nos traços da nossa Esperança Garcia ali em cima.

Mas vamos à carta, que apresenta o português da época, com os desvios de ortografia que só reforçam a relevância do documento, além da excelente estratégia de apontar os maus tratos junto à negligência religiosa do feitor para com os escravos, num país que tinha o catolicismo como religião oficial:

"Eu sou hua escrava de V. Sa. administração de Capam. Antº Vieira de Couto, cazada. Desde que o Capam. lá foi adeministrar, q. me tirou da fazenda dos algodois, aonde vevia com meu marido, para ser cozinheira de sua caza, onde nella passo mto mal. A primeira hé q. ha grandes trovoadas de pancadas em hum filho nem sendo uhã criança q. lhe fez estrair sangue pella boca, em mim não poço esplicar q. sou hu colcham de pancadas, tanto q. cahy huã vez do sobrado abaccho peiada, por mezericordia de Ds. esCapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confeçar a tres annos. E huã criança minha e duas mais por batizar. Pello q. Peço a V.S. pello amor de Ds. e do seu Valimto. ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar a Procurador que mande p. a fazda. aonde elle me tirou pa eu viver com meu marido e batizar minha filha q. De V.Sa. sua escrava Esperança Garcia”

Você pode ler alguma coisa a mais sobre Esperança Garcia nos links a seguir, apesar de nada mais aprofundado que as próprias informações fornecidas pelo descobridor da carta, o historiador Luiz Mott: http://www.meionorte.com/blogs/josefortes/a-coragem-da-escrava-esperanca-garcia-10428

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