Ontem foi aniversário da grande Simone de Beauvoir e tivemos um ótimo fio criado no twitter, pela nossa amiga Heci Regina Candiani, especialista e apaixonada pela autora. Segue o rico material, com imagens e links, logo depois de cada flor de sakura:
🌸"Em 9 de janeiro, comemora-se o nascimento de Simone de Beauvoir (1908-1986). Como vocês sabem, estudo o pensamento e a trajetória intelectual dela e tenho alguns textos com resultados dessas pesquisas.
Segue o fio de links e fotos. Esta, de Jacques Pavlovsky, é de 1976. (1/n)"
🌸"Como contexto é tudo, começo com este no site da Rede Brasileira de Mulheres Filósofas direcionado a estudantes do ensino médio. Formação, ideias e obras principais, a relação de Beauvoir com a filosofia e a literatura."
🌸Mais sobre a formação de Simone de Beauvoir e a relação com filosofia e literatura neste texto para@HorizontesaoSul, sobre os diários que ela escreveu quando estudante de filosofia.
Na foto, Beauvoir em conferência na FNF, no Rio, em 1960. Foto: arquivo JB (5/n)
🌸Neste outro texto, falei brevemente sobre a recepção de O segundo sexo aqui no Brasil: Quelques notes sur la réception du Deuxième Sexe au Brésil
https://lirecrire.hypotheses.org/611
Foto: Beauvoir autografando livros no Brasil, 1960, capa do vol.2 de A força das coisas em francês (6/n)
🌸 Por fim, este artigo da Cadernos Pagu, que explora de forma mais específica o contexto intelectual em que se produziram muitas das críticas sobre O segundo sexo.
https://doi.org/10.1590/18094449201900560001
Beauvoir e Sylvie Le Bon em manifestação do MLF, 1973, foto de Janine Nièpce (8/8)
🐰 E é isso. Espero que tenham gostado. Da minha parte, agradeço a Heci pela gentileza de ter cedido o texto e as indicações, de modo que agora tenho um arquivo importante sobre Beauvoir aqui no blog. Feliz 2022!
Estou pensando aqui que essas postagens que estão falando sobre o que pode conter um diário é o meu metadiário. Um (quase) diário do meu diário. Um todo sobre fragmentos de diário. Enfim.
No diário você desabafa coisas rápidas. Ou coisas demoradas, dependendo do seu estado de espírito. O meu com certeza é muito mais composto de muitas notas velozes e até sem sentido, numa leitura posterior, mas que no momento da escrita é tão necessário, que é como se meu existir dependesse disso. Depois, passa. Às vezes. Outras tantas, eu mal consigo retornar ao que escrevi, porque me dói lembrar, porque me constrange, porque já estou arrependida da escrita, do ato, do dito. Porque passei a odiar as personagens do meu monólogo. Algumas vezes, salvo uma frase mais inspirada e retorno ao ensinamento daquele dia.
Risco, borro, testo arabescos, letterings. Mas isso vai em outra postagem da série.
Uma das coisas que sempre me encantaram com a internet, foi ter acesso a um tipo de conhecimento que eu dificilmente teria, se ela não existe ou até teria, mas com com muito mais sacrifício. Faço parte da geração de transição do mundo analógico para o digital, que já na infância viu o computador (ainda na escola), na adolescência frequentou as lan houses, mesmo que só fosse ter o seu só depois de entrar na universidade. Na universidade, terminamos restritas ao saber que oferece um corpo docente muitas vezes precarizado pela própria instituição, ou pelo habitus [Bordieu] bem distante de uma vivência acadêmica de pesquisa e de crítica de fato, como no curso de direito da minha época. Depois, na filosofia, ainda que tivéssemos um ou outro professor bastante dedicado ao seu trabalho, a escassez de espaço e de recursos (humanos, inclusive, não tive aula com uma professora mulher no mestrado), talvez tivessem deixado árido demais o ambiente. Fora as boas almas que compartilham conosco dessas vivências no imediato e amenizam o cenário- pelo menos o suficiente para não desistir, coisa que acontece bastante-, a janela da internet e das redes sociais que começavam a se afirmar, me aproximaram não só do lazer e de contatos outros, mas também me permitiram saber e aprender com a produção de outros tantos centros desse país e de fora dele.
Não está no lattes, mas eu devo minha formação a muito mais instituições que as que oficialmente me matriculei. Todas as vezes que eu sentia a epistemologia dominante me sufocar, eu recorria a outros livros, outras revistas, outras palestras e a conversar com outros professores. Hoje os feminismos e outros tantos movimentos sociais vem se tornando presentes nas ferramentas de mídia mais avançadas, disponibilizando uma maravilhosa vitrine de possibilidades para quem não se encaixa, para quem sente uma necessidade de uma outras crítica, um viés que não os ignore- e para convidar quem parece estar encaixado, também. É importante que se compreenda que isso é novo, se veio um tanto com o governo do PT e sua abertura (que poderia ter sido bem melhor), sobreviveu a ele e na verdade floresceu depois da queda.
E que bom que as novas gerações tem essas opções. Eu sou mais da geração imediatamente anterior[geração se tornou essa coisa tão variável], ainda estou tendo que lidar com os velhos sábios, que hoje a gente compreende que nem eram tão sábios assim para tantas questões relevantes como racismo, misoginia, escravidão, homofobias, desconsideração por vidas não humanas e um monte de coisa. É aqui que eu me localizo e eu considero um lugar estratégico, talvez menor, mas importante, porque as perguntas que aqueles senhores fizeram e tentaram responder ainda movem as grandes instituições e poderes que ignoram o meu mundo (e muitos outros mundos). As perguntas deles tem que mudar dentro deles, dentro dos sistemas que eles criaram, também. As contradições estão lá e vão cumprir sua missão, sendo de se transmutar, numa outra síntese, ou de se destruir e fazer-se desaparecer no que não cabe mais.
A filosofia é duríssima. Muitos dizem que ela deveria desaparecer- eu poderia dizer isso de outras tantas coisas, mas sou apegada demais à noção de caos e sistemas-, outras estão tentando mostrar que já existiam outras filosofias, quando só um tipo era escutado. Eu tendo a esse grupo, desejar desaparecer o que há de ruim em uma área, não faz desaparecer suas consequências milenares no mundo e muito menos na prática do dia a dia. Então, recomendo um site, que ainda está começando, com muitas coisas a aprender, mas que já é bastante, pois não tínhamos nada, é o site Rede de Mulheres Filósofas. Ainda não estou lá, mas quem sabe uma hora apareço? Meu livro, fruto de um mestrado e de uma vaquinha realizada on-line e, certamente só possível por isso, sai ainda este ano- em 2011 tava eu lá tentando falar de feminismo no deserto do programa.
Então, em lembrança às minhas escolhas, eu posto aqui uma palestra de filosofia feita por um antropólogo. Para quem não é da área eu aviso, de antemão, que isso é um tipo de heresia; mas eu reafirmo mais explicitamente: o professor Eduardo Viveiros de Castro é um filósofo, também. A sua palestra me deu os insights e a energia para escrever essa postagem para o blog, do mesmo modo que cerca de 4 anos atrás, me ajudava a sobreviver nas horas mais chatas e pouco estimulantes da pós. Essa palestra, que é uma belíssima metafísica, usando do seu perspectivismo ameríndio, aprendido também dos indígenas, me parece um palco argumentativo suficiente para introduzir a defesa das verdades culturais profundas de tantos grupos homogeneizados pelo raio homegeneizador* da modernidade capitalista. Aí eles aparecem como interlocutores tão fortes quantos, numa arena que costuma rir do poder do maracá**. Talvez seja uma das vantagens da antropologia, isso que na filosofia nós acusamos horrorizados de relativismo (eu não!). De todo modo, veio a mim que ainda que as primeiras e últimas questões sempre retornem, as perguntas precisam urgentemente alterarem seu formato.
Individualmente, não pretendo subestimar a força conservadora do habitus acadêmicos e institucionais em termos gerais por meio de um moralismo (apesar de achar que tem lá sua força), aponto as rachaduras e aproveito as frestas, quem está numa condição parecida com a minha: doente, vivendo aqui e ali, com raiva, inserida num jogo que entra em desvantagem, com dificuldade de apelar para uma formação que faça uma mínima crítica por questão de vida e morte, eu reitero: temos as frestas. Imagine, se eu acredito que até existam matemáticas e matemáticos dispostos à crítica, a que leitura fodona da área apelariam? Há se pensar nisso. Deixo aí minhas divagações para o ar, que eu não ando com o espírito para responder- espírito que é sopro que não deixa de ser ar. Acho que isso também faz parte.
Por fim, lembro que essa palestra foi feita em 2017, no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, mas promovida no Youtube em nome do Museu Nacional, onde Eduardo era professor. O Museu, incendiado em 2018, num desses anos difíceis, na sequências de anos dificeis dessa nossa vivência coletiva brasileira recente, onde se perdeu o registro de várias línguas indígenas raras, ou que não tem mais falantes vivos, por exemplo, ou o registro de migrantes nordestinos da década de 1960, além de estudos e pesquisas em outras tantas áreas. Ficam aí alguns pedaços da ruína dele, memórias de coisas mortas, mas acreditando que elas retornam, como novas vidas ou como assombração mesmo- pra puxar o pé e levar embora quem deixa essas coisas acontecerem. #pas
* Eu tenho quase certeza que esse termo da ficção científica meu inconsciente trouxe de algum episódio do primeiro semestre de 2020 do podcast Benzina- que eu recomendo sempre.
** O maracá é um instrumento importante para muitas etnias indígenas tanto pela sua musicalidade, como para seu uso nos mais diversos rituais. É uma palavra que no presente pandêmico e de governo fascista vigente, vem sendo utilizado para reunir algumas diretrizes internas de organização e cuidado de muitas comunidades. Conferir: https://racismoambiental.net.br/2020/08/30/maraca-emergencia-indigena-veja-os-quatro-primeiros-episodios/
Compartilho esse texto/ensaio, para deixar registrado esse brainstorm/toró de ideias bonito que pude criar com uma pessoa amada no ano de 2016. Pois coisas boas também aconteceram naquele ano:
Se estou em uma parada de
ônibus e não tenho mais rosto, o que resta de mim? Terminei meu processo de
fusão com a estrutura que me aprisionava (o trajeto para o trabalho? O sistema
de transporte?)? Se não tenho rosto e me encontro só andando pela rua, o que eu
sou? Sou diferente do vento que sopra? Da luz da lua que me ilumina ou do sol
que queima? Sou diferente do cachorro que passou agora há pouco? Sou uma sombra?
Sou um espectro que não tem mais passado e nem futuro, só esse presente,
anonimato construído por uma identidade que se perdeu (se é que algum dia foi)?
Eu realmente fui/sou?
Para quem o padre faz ecoar sua
homilia? Não temos mais rosto, agora somos um em Deus (?)? Ovelhas do Senhor em
Disfarce de Dolly, a ovelha clonada? Somos muitos ou sou apenas um, sozinho em
meio a todos esses bancos vazios diante do crucifixo, onde jaz um corpo que há
muito também perdeu seu rosto, mas penso que por motivos outros? Ou talvez seja
exatamente os mesmos motivos que me fizeram entrar aqui, ainda que sem rosto. O
que eu vim fazer aqui? Não vim buscar a salvação da minha alma, vim antes de
tudo saber o que me distingue. Aquilo que me faz especial. Eu sou especial,
ainda que eu olhe ao meu redor e veja outros despidos de face como eu. No fundo
não não somos iguais. Quiseram me fazer igual apagando meu rosto e também o
rosto dos outros, ou das outras, quem pode saber?
Um mar de corpos sem rostos por trás
de escrivaninhas digitando roboticamente. Pega o copo de café. Bebe o copo de
café (simultaneamente). Põe o copo de café de volta na mesa. O tique taque do
relógio de parede. 1 minuto para as 18h. 18h. Todos saem em sincronia com o
ponteiro dos segundos. Um corpo sem rosto. Terno, gravata. Papéis diante dele.
Burburinho eterno na sala. Um copo de plástico com café já frio. Frio porque o
frio dessa sala ultrapassa o que o ar condicionado. Máscara. Eu sou um ser
fracionado, minha máscara de ausência precisa estar sempre aqui comigo,
qualquer vacilo que signifiquem sentimentos ou pensamentos divergentes é
recebido com silêncio (ou risos). A empresa é o nosso rosto, vestimos a camisa
(o que importa é a marca da empresa na camisa, meu rosto seria um marca menor
se eu o usasse, então melhor não dar vexame).
Mais um blockbuster. Dezenas de
corpos sentados em silêncio, ou rindo espalhafatosamente. Mais corpos sem
rosto. Um casal sem rosto se beija(?). Um rapaz mais a frente come(?) pipoca.
Todos saem ao toque do acorde final da trilha.
Um filme cult. Mais uma vez um corpo
sozinho na sala do cinema. Me sinto confortável no início, tenho a sala só para
mim. O filme se adianta. Me movimento na cadeira, olho para os lados, mesmo
sabendo que não há ninguém. A trama da tela, muito densa, como eu esperava, me
provoca esse desconforto na cadeira. O que eu esperava encontrar aqui? Sei que
o vazio só se anestesia por um momento. E é isso que de fato acontece: sou
tomada pela trama. Fim do filme. Saio do cinema e me olho no espelho que adorna
a saída. Ainda aquele não-rosto (?) mirando seu revés. Me parece que a
estrutura se agarra à minha pele, por mais filmes cults que eu assista. E então
a estrutura sem subterfúgios agora me empurra de volta para sua lei da solidão
coletiva no hall do cinema.
Acho que a idéia do homem inautêntico
existencialista, aquele que absorveu acriticamente os papéis que a vida foi lhe
impondo e que não consegue (ou não quer) escapar ao cotidiano ordinário, é uma
espécie de exaltação da solidão. É a solidão que não pode ser mencionada porque
se mencionada, esmaga esse sujeito, que prefere ignorar a dimensão dessa
solidão para conseguir (sobre)viver.
A homogeneização da moda, as
multidões como as torcidas de futebol (desculpe), os passageiros de um ônibus,
os motoristas presos em um engarrafamento, estudantes em uma escola,
prisioneiros em um presídio, eleitores em dia de votação, brincantes do
carnaval, público de um show, pessoas em palestra acadêmica.
A solidão é um leito de Procusto para
a condição humana? Somos seres com desejo de união com o outro, mas forçados à
solidão? E toda nossa construção social é na verdade nada mais uma tentativa de
alcançar o outro e finalmente poder tocá-lo? Ouvir e se fazer ouvir?
Segundo o mundo atômico nós nunca nos
tocamos e isso é mais uma condenação à solidão.
Mas a solidão também é condição para
a existência da beleza, da arte, da filosofia. A maldição vem com alguns bônus,
então. E uma música aqui me veio à mente, também.
Esses dias
a noção de humanidade foi renovada. Não é todo dia que isso acontece. No dia a
dia somos pouco coesos, tanto pela pluralidade como pela divergência. Uma
historiadora que costumamos utilizar na especialização em direitos humanos
Esperança Garcia (PI), chamada Lynn Hunt, defende a ideia de que a auto evidência
(a obviedade, digamos) desses direitos foi algo construído com o tempo, às
custas de um trabalho intenso do exercício de empatia e solidariedade,
estimulado na esfera pública: mercados, cafés, ou qualquer local que as pessoas
se reunissem para contar histórias e se condoer com as personagens delas, sendo
reais ou não, sendo da sua classe social ou de outra, de seu gênero ou de outro,
de sua raça e etnia ou outra- aí eu incluo até a fofoca de boa fé. O Rorty, que
é um cara que eu estudei na filosofia, vai dizer que a humanidade não existe. A
leitura que eu faço é que, nesse sentido, a humanidade não existe a não ser que
você diga que grupo de humanos é esse- brasileiros ou chineses? Sempre achei um
pouco pobre essa saída do Rorty. Não sendo a humanidade uma abstração
permanente e distante, ela é, contudo, uma REALIDADE manifesta em nossa
contiguidade como espécie. E eu invoco a pandemia do coronavírus como fundamento
para essa afirmação. Se havia alguma dúvida de que havia uma humanidade entre todas
e todos nós, o vírus veio tirá-la da frente. A característica da sua
aleatoriedade, ainda que tomemos muitas precauções, exige que seja repensado a
absurda continuidade da aplicação do neoliberalismo nas economias dos países:
eu preciso salvaguardar a todos, já que não sei quem poderá ser atingido (um
desconhecido, ou meu pai?). Basicamente um véu da ignorância de John Rawls,
liberal que faz muita falta aos liberais do Brasil. Pensar cada ser humano como
parte dessa humanidade nos ajuda a levar adiante iniciativas que mitigam os
efeitos danosos dessa aleatoriedade da doença (que, contudo, afeta mais gravemente
pessoas já debilitadas), como a renda básica universal, que está em vias de aprovação
no congresso nacional, uma da poucas medidas de amplo alcance que estão sendo
aplicadas. Infelizmente, o líder da nação e as pessoas que o seguem, não se
reconhecem nessa noção de humanidade compartilhada. Acreditam pertencer a uma
casta superior aos meros mortais, por isso não se protegem e ainda atrapalham
quem tenta se proteger da pandemia. Acreditam-se inatingíveis. Eu suspeito que
o COVID-19 não foi avisado a respeito dessa pretensa blindagem e vai continuar
lendo “humanidade” escrito na testa deles. Muitos serão forçados a lembrar da
nossa contiguidade como espécie. E não vai ser bonito.
Harmonia Rosales- Mulher vitruviana [uma outra humanidade é possível]
Hoje eu estive pensando sobre ser uma boa pessoa.
E isso você retirou de algum livro de filosofia?
Não, tirei de um livro de terror.
Faz sentido. Vai me contar o título?
Sim, Frankenstein.
E o que você concluiu?
Há um trecho lá que diz expressamente que só é possível avaliar se se é uma boa pessoa alguém que encarou a vida fora das expectativas alheias.
Não lembro desse trecho...
É porque está nas entrelinhas, você está com o mau costume dos livros acadêmicos.
Desculpe...Devo estar mesmo. Mas então não decorre que aquela que encara a vida seja boa, mas apenas que pode começar a ser inquirida a respeito da bondade ou não de seus atos.
É isso. Você fala tão bonito... Contudo, não pensei boa coisa a respeito dos que sequer ultrapassam aquele limite.
Se não podem ser avaliados, seriam amorais?
Não, ainda estou falando de Shelley. Seriam o monstro antes de ter buscado educar-se e arrisco dizer que seriam, também, a noiva de Victor, não lembro o nome dela...
Nem eu... E quanto a mim? Você acha que sou uma boa pessoa?
Não parei para pensar no seu caso, mas em geral todos achamos que somos boas pessoas, não?
Foto alterada de duas páginas do livro mencionado- A anatomia de um torso e o título da obra, com o nome da autora.
Andei adoentada nos últimos meses e só consegui começar a organizar a burocracia para o lançamento do livro essa semana. A previsão é fevereiro de 2020. Mais perto, divulgo onde estará disponível e datas de lançamentos físicos. A editora escolhida foi a Appris, especialmente pelo foco acadêmico dela.
Durante um ano eu deixei exposta a minha vakinha para a publicação do meu primeiro livro de filosofia, fruto das pesquisas que fiz no mestrado. Hoje é o último dia de arrecadação e fico muito feliz em informar que, desde a semana passada, não só alcancei como ultrapassei o valor estimado para conseguir publicar com uma editora.
Essa postagem é para lembrar que sim, você ainda pode doar hoje, porque existe a porcentagem que vai para o site e também os valores para organizar os lançamentos ao longo desse ano e do próximo. Mas é principalmente para dizer meu muito obrigada a quem acreditou nesse sonho que me parecia uma realidade distante, até uns dias atrás, eu que ainda sou de uma geração criada sob a impressão de que os livros de papel tem uma autoridade quase inalcançável por pessoas comuns. O que nem de longe me parece algo positivo.
Ainda entendo que a publicação de livros em formato de papel, mesmo com o aumento do número de editoras e selos independentes na última década, é algo não muito acessível para a maior parte das pessoas (é só desdobrar os nossos problemas de educação para esse assunto) e aí entram os ebooks como um dos caminhos para tornar mais próximo esse mundo dos livros e impactar menos o meio ambiente- mas distante da realidade da maior parte das pessoas. Logo, ainda não é tempo de abandonarmos os livros de papel, muito menos quando escolheu se inserir numa realidade de publicações científicas (sem ter um background financeiro) e é mulher que ocupa lugares periféricos em muitos níveis.
Justamente por não ignorar a relevância de mulheres negras e mestiças da periferia do nordeste serem hoje produtoras de conhecimento, inclusive do autorizado- e até esse em grande parte ignorado, mas aí é tema para outro texto- persisti nessa realização (com muitos altos e baixos), dando esse passo tão ousado e, melhor, de um jeito coletivo. Confesso que estava cansada de ir apenas para os lançamentos das produções acadêmicas dos colegas homens da minha geração e da minha região- ou só das mulheres de classe mais alta. E, sim, isso é um desabafo- inclusive muitos de vocês entenderam a importância disso e fizeram sua parte aqui (como fazem em outros lugares), pelo que sou grata e orgulhosa desse tipo de relação que não nos impõe um medo de que reconheçamos nossos lugares de privilégio ou de ausência desses. Parece pouco, mas esse pouco é o que faz a diferença no mundo e na nossa finita vida aqui nesse planeta.
Vamos adiante, amigas e amigos!
Nos próximos dias, tem um email exclusivo aos que me deram essa força material.
Faltam 7 dias para minha vakinha acabar e ainda estou em 67,08% dela. É
para a publicação do meu livro de filosofia, baseado na minha
dissertação. No dia internacional da mulher na ciência, ajude uma em sua
primeira publicação. A divulgação de nossas pesquisas nos mais diversos meios possíveis é importantes para a educação e a retribuição à sociedade do que foi investido em nosso trabalho. O link para a sua contribuição está logo abaixo da foto da autora, confiante de que conseguirá sua publicação, com a ajuda de vocês.
Queria ter minha vida analógica mais perto em minhas próprias lembranças, para conseguir valorizar melhor o que surge no meu caminhar por esse jovem mundo de velocidade e excessos. Mas o único passado que vale é o dia de ontem, seguro e o mais distante possível de um tempo em que a ausência da montanha de estímulos é bem mais que o mero ontem. E cada dia que um ontem se forma é bem maior que o anterior, o que pela lógica só aumenta as distâncias daquele passado analógico. Tenho saudades de um tipo de presença do corpo humano e da voz não codificada por nada além que meus ouvidos- só muito raramente um telefone fixo. Tenho saudades de ler por puro prazer as longas páginas dos romances; tenho saudades dos livros obrigatórios com páginas de celulose. Tenho saudades de uma leitura de papel e de uma escrita que não fosse mediada por máquina ou teclado virtual. Mas o virtual é o real agora. Ainda assim meu corpo continua a pedir a presença de um corpo não compartimentado em funções mas um corpo-todo-ali-presente.
E se levássemos a sério os jovens, ao ponto de os criarmos, em uma educação sem séries, sem restrição de leituras, nem de desafios esportivos, partilhando com elas e eles livremente os saberes do mundo?
Não, a postagem não é sobre o movimento da desescolarização, mas bem que poderia ser. Ontem fui ao cinema ter um encontro com um filme que me tocou bastante, uma comédia dramática, recomendação de um amigo: "Capitão fantástico".
"Walden" (Thoreau) e "A república" (Platão), parece que era algo nesse sentido que estava na cabeça de Ben e sua esposa, Leslie, quando decidem criar seus filhos em meio ao ambiente selvagem das florestas do norte dos EUA. O poético filme de Matt Ross (2016), apresenta-nos lindamente essa possibilidade. Ben e Leslie esforçam-se em educar sua prole, como fortes e sábios, por meio de uma disciplina que requer exercícios físicos diários no meio da mata e nas alturas das montanhas, incluindo luta, meditação, respiração pranayana e caça, além de estudos avançados sobre literatura, filosofia, línguas, política, direito, física, anatomia e o que mais o intelecto estimulado dos jovens pedisse- e que a biblioteca particular dos pais tivesse, que parecia ser constantemente realimentada por pedidos pelos correios.
Guiando os filhos por meio do que acreditavam ser um modo de vida que desafiava a sociedade capitalista da qual provinham, a família discutia todas as leituras que realizavam, como Marx e demais socialistas, além de Chomsky, em sua faceta libertária (no sentido positivo do termo), Dostoievski, Nabokov, alcançando mesmo a declaração de direitos dos EUA. O pequeno clã também se entretinha com música e praticava rituais sincréticos de alegria (como o aniversário de Chomsky, que era algo como o natal), ritual de iniciação e ritual de luto, quando necessários.
O grande desafio da família no mundo "real" começa ao decidirem comparecer ao velório e enterro de sua mãe, mesmo sob a proibição do avô, que nunca havia concordado com o estilo de vida excêntrico de sua filha. Leslie, que desenvolveu transtorno bipolar após uma depressão pós-parto, havia partido para a cidade, tentando tratar-se. Não conseguindo uma melhora suficiente, termina por cometer suicídio.
Apesar da morte trágica da mãe, o filme não se torna um filme mórbido. A verdade é dita às crianças, que foram criadas acostumadas ao diálogo sincero e aberto, o que não impede o sofrimento. Por outro lado, parece abrir espaço para um tipo luto expansivo, que é manifestado de modos diferentes por cada membro e depois por todos juntos. A despedida final acontece bem depois do enterro, num ritual sugerido pela própria defunta, que tinha muito bom humor- apesar da depressão.
O desenrolar da trama até esse desfecho, incluem pequenos eventos como o desafio de conseguir comida na cidade, aprender a paquerar, o que fazer diante aprovação do mais velho em todas as universidades mais prestigiadas do país, ou com a rebeldia do filho do meio, além do contato com os demais membros da família. Esse contato, inclusive, oferece-nos um fabuloso quadro comparativo entre os dois modus vivendi, o nosso e o deles, eu diria, que promove momentos divertidíssimos para quem assiste. A família de Ben nos lembra o quanto que alguns dos nossos hábitos já não passam de meras convenções e outros não chegam a contribuir em nada com o nosso bem-estar físico ou mental, pelo contrário.
Mesmo diferentes, as crianças em nenhum momento se sentem constrangidas e na verdade surgem altivas diante da família "civilizada" do avô e da tia.
O luto, as brigas e os acidentes que ocorrem até pouco depois do enterro da mãe terminam por funcionar como uma espécie de arena de aperfeiçoamento para os pequenos filósofos-reis, um novo desafio a cada uma e a cada um dos membros, que compreendem melhor a força da escolha dos pais, começando a ter noção de suas próprias. Passarão a enfrentar o mundo humano como seres diferentes (por sua excessiva autonomia e crítica), num caminho que parece ser guiado pela vontade de liberdade e autenticidade, que deveriam, na minha humilde opinião, serem dois dos mais importantes pilares de uma boa educação.
Capitão Fantástico- trailer
Ps. O filme é com meu querido Viggo Mortensen (Ben), o Aragorn de "O Senhor dos Anéis".
estava aqui lendo um pouco e me dei conta de que preciso passar por um processo de retorno a um ponto de ignorância. admitir que não sei de nada.
as certezas sobre o conhecimento passado estavam me amarrando em um estreito círculo vicioso de arrogância e, logo, de não diálogo. ora, eu pesquiso na área de filosofia. não há coisa mais anti-filosófica que você acreditar que sabe. o que se "sabe" está filosoficamente morto. ou morta.
inclusive acredito que essa constatação possa ser estendida para outros limites da vida. ao amor, por exemplo. quanto das nossas experiências passadas, quanto do que lemos, conhecemos e vivemos de algum modo cola na nossa experiência amorosa atual e aos poucos a paralisa em respostas repetitivas? em reações, mais que respostas repetitivas?
é preciso lembrar constantemente que também não se sabe nada a respeito do amor. o não-saber do amor é seu espaço de existência necessário. o não-saber que nos atemoriza por um lado e nos seduz por outro.
fiquei pensando: quantas vezes eu não vi o outro, mas só as minhas lembranças do que "sabia" de uma experiência anterior? quantas vezes eu não me permiti estar presente diante apenas do que aquele outro me mostrava?
entendam: não ignoro que precisamos das nossas experiências acumuladas ou dos nossos saberes já adquiridos. a questão que tento colocar aqui é que, muitas vezes, podemos nos esconder atrás desses caminhos já vividos, conscientemente ou não. por estarmos em alguma zona de conforto, por algum tipo de medo, por alguma moral fajuta herdada, por medo do que se vai perder ao tentar ganhar. ou tudo isso junto.
no final das contas, eu volto à minha hipótese: o retorno ao não-saber. é ele que move nossos mundos e traz o novo. novos saberes, novos amores, novos de nós mesmos, nós mesmos muitas e muitas vezes em uma mesma existência.
A
luz, símbolo do saber, as cadeiras vazias, tudo embaçado como num
sonho. O saber ou o amor que se concluiu? O fim ou o que ainda está por
vir? Adeus ou convite ao conhecer/amor? As duas cadeiras: o diálogo findo ou aberto? A foto é da obra do André Gonçalves e a utilização dela é devidamente autorizada ;)