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sábado, 1 de junho de 2019
quarta-feira, 17 de agosto de 2016
As reservas, as casas e os proprietários das casas (mais uma desculpa para falar de amor)
Um dos autores que mais me
marcaram na última década da minha vida foi Luis Alberto Warat. Warat foi
provavelmente o argentino mais brasileiro que viveu pelas nossas terras
quentes. Começou como especialista no positivismo e semiologia jurídica e
descambou para um tango-samba-cabaret chamado Surrealismo Jurídico. Fez outras
coisas mais, mas aí você vai ter que dar uma procurada. Sugiro o blog da CasaWarat.
Lembrei do Warat agora porque no
livro dele mais famoso e o que eu mais gosto, “A ciência jurídica e seus dois
maridos” ele fala um pouco da delicadeza e da força das relações humanas. O
título do capítulo que me interessa aqui é “Uma raridade chamada amor”. Antes
de tudo, eu discordo do Warat de que o amor seja assim tão raro. Penso que, na
verdade, ele seja difícil de definir, mas, de todo modo, achei válida a
tentativa dele.
O Warat fala de reservas
selvagens. Fala que, para o amor acontecer, é preciso que haja o encontro de
duas reservas selvagens. Aquela parte sua que você não costuma abrir para
ninguém e que às vezes mal conhece, ou tem vergonha, ou tem medo e onde, numa
aparente contradição, tem também seu maior manancial de belezas em estado
bruto, pronto para deixar o estado de potência e saltitar para o mundo. O
encontro das duas reservas ativa as cores antes insondáveis, antes adormecidas,
antes desacreditadas.
E é um estado tão delicado...
Tentei em vão, meu relógio
vermelho comprado no camelô do sul do país não foi capaz de marcar o tempo. Nem
acho que um rolex original e nem o Big Ben marcaria. O encontro das reservas
cria um outro tipo de necessidade cronológica. O infinito no finito. Apenas
corpos amantes marcam o infinito no finito.
Mas quando as reservas se
encontram... Ah! As formas, os sons, os cheiros, as línguas, o tato do corpo, esticados
pela matéria dos sonhos que têm suas raízes profundas ali. Muitos suspiros.
Segundo Warat, a maioria de nós
prefere a periferia da reserva. Porque deixar nosso mundo selvagem disponível ao
outro também dá espaço para a dor, sabe? Dor de alma. Por isso a periferia é
tão frequentada. Mas Warat diz que não tem outro jeito já que na periferia não
há amoor, amoor.
Eu não lembro de alguma vez ter
ficado na periferia. O que obviamente me abriu para muita dor. Mais um suspiro
profundo aqui.
O que Warat não diz, contudo, é
que lá no meio da reserva, tem uma casinha que requer muito cuidado. A casinha,
aliás, é o grande segredo. Você não sabe que móveis quebrados tem ali, que piso
está solto, que parte do telhado está mais frágil para uma noite de tempestade.
Pode ser, é claro, que você encontre uma casa quase nova, em bom estado. Até
que ponto você vai querer uma casa sem rastros de que gente viveu e foi feliz (ou
não)ali, fica a seu critério. A mim, sempre me interessaram objetos que já tem
alguma história no mundo.
Nesse caso, quando a porta da
casa finalmente se abrir para você, o que já é um grande feito, é preciso pisar
com cuidado, de preferência com pantufas de gatinho, falar com a suavidade de
um passarinho azul, ouvir o silêncio dos cômodos, acostumar-se ao tipo de luz,
a uma certa desorganização da cozinha e ao possível ciúme dos livros. A casa,
que se manteve de porta aberta durante muitos anos, pode ser que esteja um
pouco deteriorada pelo uso e pelo passar dos anos- mesmo com a reserva selvagem
ao redor como proteção, nem sempre é possível escapar de algum dano mais
previsível- por isso seu proprietário pode ter andado preferindo deixar a porta
fechada, só abrindo mediante senha, o que quase nunca se vê nas casas das
reservas.
Quando fiquei sabendo de um caso
assim, fui atrás de saber mais e achei muito justa a medida tomada pelo
proprietário. Lá estava ele a tentar consertar o que podia, mesmo com poucas
ferramentas à disposição. Talvez levassem alguns anos para que ficasse ao seu
gosto- definitivamente ele era muito auto exigente.
Ainda tentei ajudar no conserto,
mas não tinha muita experiência com martelos e pregos, terminei quebrando uma
luminária e o proprietário não ficou lá muito satisfeito. Na verdade, ele
estava chateado com o resultado do que vinha fazendo, até havia parado o trabalho naquele dia. Talvez
por isso quis que eu fosse embora, não parecia do tipo que aceitava ajuda com
facilidade. Me afastei um tanto quanto magoada pela minha ajuda não ter sido
aceita, mas ainda fiquei dentro da reserva, quieta. Pude olhar assim de fora e fiquei
pensando muita coisa. Eu conseguia ver o quanto já havia sido encaminhado. Logo
a casa estaria com seus alicerces bem sólidos novamente. Talvez, no fundo, até
mesmo o proprietário, um tanto quanto pessimista, notasse isso.
Também tenho minha casa, no
interior da minha reserva. É interessantíssimo notar como muitos dos cômodos da
casa só se tornam acessíveis de fato quando finalmente um visitante atravessa a
reserva, alcança a casa e entra nela. Alguns dos meus móveis estão meio
riscados e as cortinas rasgadas em alguns pontos- uns vasos de flores quebrados no chão, também.
Tem um ou outro quarto que nunca consegui abrir. Outros que comecei a decorar e
depois fui obrigada a abandonar. Apesar disso, eu tenho tentado deixar a porta
aberta, mesmo sob o risco de algo mais se quebrar lá dentro. O infinito no
finito vale a pena.
E eu esqueci de dizer que as casas sobrepõem-se
assimetricamente. É uma irregularidade festiva bonita de se ver.
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