sábado, 6 de fevereiro de 2016

H. Dobal: innamorata e o documentário do Douglas Machado

Ela agora está morta e eu não sei se estava mesmo apaixonado por ela naquele tempo. Talvez estivesse. Era uma paixão que não derrubava as outras, que se acrescentava às outras. Não tomava o lugar de nenhuma outra.
Talvez estivesse mesmo apaixonado por ela e acho que ela correspondia com uma paixão igual à minha. Pelo menos houve um dia que ficou valendo como uma revelação.
Um dia que nunca se transformou numa data, que se perdeu num mês qualquer, num ano cada vez mais remoto e impreciso. Um dia nítido e, no entanto, insituável num tempo que se perdeu completamente.
Penso nela de repente durante a ginástica com que procuro combater essa paralisia que me agita o dedo da mão esquerda. Não interrompo os exercícios, o pensamento passa. O pensamento é mesmo uma cousa à toa.
Outras vezes suspendo a leitura do jornal para esfregar os olhos cansados e a lembrança dela fica comigo um momento.
Era um dia inútil, um domingo de tarde em que tínhamos pensado em ir ao cinema. Mas a tarde de cartão-postal se enchia de doçura. Paramos na beira da lagoa. Ficamos olhando os pedalinhos, que não tínhamos coragem de enfrentar.
Sonhamos o vôo das gaivotas, o silêncio das águas paradas. Aceitamos a paz das paisagens preparadas. Num momento aceitamos o sol, o vento, o fogo, os poderes da vida. Vimos na tarde os peixes saltadores e a morte da luz nas suas escamas. Mas logo desapareciam de novo nas águas da lagoa.
Tive uma grande vitória com ela. Vitória moral, bem entendido. O sexo entre nós seria tão natural que não procuramos antecipá-lo. Mas acho que ela romantizava um pouco, era um pouco ingênua sobre isto. Ficou muito espantada uma noite quando viu, saindo do escuro da praia, um casal que tinha acabado de completar as suas carências. Muito espantada porque o casal se separava sem uma palavra, sem uma carícia, indiferente na sua satisfação.
Há umas duas semanas alguém me telefonou para dizer que ela morreu. Pediu-me que avisasse aos outros amigos daquele tempo.
Não avisei a ninguém, me desagradava comunicar isto aos outros. Faço isto como se assim a protegesse contra a distância e a morte.
Acho que agora ela está mais perto de mim do que antes. Não preciso de fotografias, não preciso tentar despertar o passado. Não ouço os discos, não leio os livros que ela me deu. Como se isto ajudasse a não gastar a sua lembrança, a conservá-la intacta.
Dos poços da memória me volta às vezes a voz de Ella Fitzgerald cantando Cole Porter: so in love with you, my love, am I. Acho que estava mesmo apaixonado por ela. Nem eu nem ela sabíamos ao certo o que devíamos fazer. Preparamos sem pressa o silêncio entre nós. Perdoamos a nós mesmo pelo que não dissemos, nos enterramos pelo que não nasceu. A vida segue o seu curso separado.
Tudo separado. O nascer, o morrer, as dores do fogo da vida.
Foi só isto cara. E talvez tudo seja só isto: um brilho rápido e depois de novo o silêncio das águas paradas.

(H. Dobal. Prosa Reunida)

Procure aqui: https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=386651178021305&id=266010593418698 

Acima, o bom documentário "Um homem particular", do Douglas Machado, sobre o senhor Hindemburgo Dobal Teixeira. Recomendo fortemente.

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