Ela agora está morta e eu não sei se estava mesmo apaixonado por ela
naquele tempo. Talvez estivesse. Era uma paixão que não derrubava as
outras, que se acrescentava às outras. Não tomava o lugar de nenhuma
outra.
Talvez estivesse mesmo apaixonado por ela e acho que ela
correspondia com uma paixão igual à minha. Pelo menos houve um dia que
ficou valendo como uma revelação.
Um dia que nunca se transformou
numa data, que se perdeu num mês qualquer, num ano cada vez mais remoto e
impreciso. Um dia nítido e, no entanto, insituável num tempo que se
perdeu completamente.
Penso nela de repente durante a ginástica com
que procuro combater essa paralisia que me agita o dedo da mão esquerda.
Não interrompo os exercícios, o pensamento passa. O pensamento é mesmo
uma cousa à toa.
Outras vezes suspendo a leitura do jornal para esfregar os olhos cansados e a lembrança dela fica comigo um momento.
Era um dia inútil, um domingo de tarde em que tínhamos pensado em ir ao
cinema. Mas a tarde de cartão-postal se enchia de doçura. Paramos na
beira da lagoa. Ficamos olhando os pedalinhos, que não tínhamos coragem
de enfrentar.
Sonhamos o vôo das gaivotas, o silêncio das águas
paradas. Aceitamos a paz das paisagens preparadas. Num momento aceitamos
o sol, o vento, o fogo, os poderes da vida. Vimos na tarde os peixes
saltadores e a morte da luz nas suas escamas. Mas logo desapareciam de
novo nas águas da lagoa.
Tive uma grande vitória com ela. Vitória
moral, bem entendido. O sexo entre nós seria tão natural que não
procuramos antecipá-lo. Mas acho que ela romantizava um pouco, era um
pouco ingênua sobre isto. Ficou muito espantada uma noite quando viu,
saindo do escuro da praia, um casal que tinha acabado de completar as
suas carências. Muito espantada porque o casal se separava sem uma
palavra, sem uma carícia, indiferente na sua satisfação.
Há umas duas semanas alguém me telefonou para dizer que ela morreu. Pediu-me que avisasse aos outros amigos daquele tempo.
Não avisei a ninguém, me desagradava comunicar isto aos outros. Faço
isto como se assim a protegesse contra a distância e a morte.
Acho que
agora ela está mais perto de mim do que antes. Não preciso de
fotografias, não preciso tentar despertar o passado. Não ouço os discos,
não leio os livros que ela me deu. Como se isto ajudasse a não gastar a
sua lembrança, a conservá-la intacta.
Dos poços da memória me volta
às vezes a voz de Ella Fitzgerald cantando Cole Porter: so in love with
you, my love, am I. Acho que estava mesmo apaixonado por ela. Nem eu
nem ela sabíamos ao certo o que devíamos fazer. Preparamos sem pressa o
silêncio entre nós. Perdoamos a nós mesmo pelo que não dissemos, nos
enterramos pelo que não nasceu. A vida segue o seu curso separado.
Tudo separado. O nascer, o morrer, as dores do fogo da vida.
Foi só isto cara. E talvez tudo seja só isto: um brilho rápido e depois de novo o silêncio das águas paradas.
(H. Dobal. Prosa Reunida)
(H. Dobal. Prosa Reunida)
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