Mais ou menos no meio desse ano, recebi em casa uns cartões com receitas que eu havia pedido no site da minha amiga Carla, criadora do blog Outra Cozinha, que fala de plantas comestíveis não convencionais e de um viver mais simples e não violento. Junto com os cartões, a Carlinha colocou umas sementes de milho preto de pipoca. Eu nunca tinha ouvido falar de um milho preto de pipoca e fiquei muito contente. Já sabia que existiam muitos tipo de milhos, mas não havia me permitido imaginar que cada um fosse melhor para essa ou aquela comida. Isso me lembrou dessa bela foto de batatas peruanas em sua diversidade, que suspeito tenha sido até maior um dia.
Batata, assim como milho, são desses alimentos base, quase unanimidade entre as populações descendentes de ameríndios e mundo afora. Mas como o milho, a batata também foi standartizada, homogeneizada na figura de um único tipo, ou dois únicos tipos, a inglesa e a doce. Imagina aí a perda nutritiva e cultural. Quanta comida e quantas histórias essas cores dessas batatas carregam, como as dos meus grãos de milho preto?
Grãos do milhinho e a letra da Carla ^^ |
Daí que plantei alguns grãos num vaso grande do quintal da minha mãe. Dia 14 de agosto, deixei registrado na agenda/planner. Do tempo que passou até aqui, em meio a um br-ó-bró daqueles, que é um sol de rachar por meses a fio, bem difícil das plantas que não sejam cactos ou árvores de raízes bem profundas prosperarem, insisti no plantio do milho. Ele de fato cresceu, o que nos deixou muito maravilhadas aqui em casa, porque nunca tínhamos visto milho dando em vaso.
Quatro meses depois, contamos cerca de 10 espigas, algumas geminadas (milhos gêmeos). O que era bem louco, porque era uma única plantinha, com um monte de milhinho nascendo. Mesmo com o adubo sendo constantemente renovado, a bichinha não conseguiu encher o suficiente as sementes, nem alcançar a sua tonalidade característica. No entanto, eu considero a experiência desse plantio muito bem sucedida. Fiz sem esperar muita coisa e terminei tendo uma vivência de espera, de paciência, de frustração, de embevecimento ao longo desses meses. A Carla fala um pouco disso ao longo dos textos que ela compartilha. A finalidade não era comer um milho e apenas isso. Todo o processo acrescentou algumas linhas na minha sensibilidade e me ensinou algumas coisas que posso aplicar às demais sementes que restaram e que esperam serem plantadas (agora num período com mais chuva e sol ameno).
Lidar com outros seres, sejam animais de estimação, sejam as plantas da nossa casa, amplia nossa percepção de mundo, se estamos abertas a isso. Lendo e ouvindo sobre o pensamento indígena, especialmente o Yanomami, sinto que a familiaridade e a sabedoria que eu tinha quando crianças com esses seres e que foi afastada ou fragmentada pela vida adulta, é novamente "autorizada". A crise climática vai nos exigir uma nova ética, uma que inclua um retorno a esse tipo de vivência (que inclua um resultado de alimentação do corpo físico, também), que resgate saberes antigos das sementes ignoradas pelo latifúndio, que residiam nas memórias das nossas avós, que resgate a sabedoria de povos que estão há muito tempo preservando essas sementes e a arte de lidar com elas, a arte de conviver com outros seres como seres tão importantes como nós mesmos, de um outro modo, um menos utilitário. É uma transformação epistemológica em direção a uma outra ética. Em outras palavras, saber conhecer de um jeito que não nos destrua a todos e quem sabe, salve a maioria dos seres desse cataclisma provocado por nós (ou alguns de nós).
Essa foi a lição que tirei das espiguinhas de milho. Seguem as fotos.
Ps. Chamo insistentemente de espiguinhas, porque elas não são daquele tipo do milho amarelo/branco que não crescem muito.
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