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quarta-feira, 25 de abril de 2018

Toni Morrison me ajuda a pensar a palavra



Tradução adaptada de um texto da e sobre a Toni Morrison. Enquanto eu me tratava de uma meningite, a escritora fazia seu belo discurso pelo recebimento do prêmio nobel. Fico feliz de ter sobrevivido à doença, para perceber essa coincidência. Aqui Morrison sabiamente explica porque a palavra não encerra a experiência, perspectiva que alguém que trabalha com filosofia no século XXI precisa recuperar.


TONI MORRISON SOBRE O PODER DA LINGUAGEM: SEU DISCURSO ESPETACULAR DO NOBEL DEPOIS DE SE TORNAR A PRIMEIRA MULHER AFRO-AMERICANA A RECEBER O PRÊMIO

“Nós morremos. Esse pode ser o significado da vida. Mas nós fazemos linguagem. Essa pode ser a medida de nossas vidas”

Nas últimas semanas de 1993, Toni Morrison (18 de fevereiro de 1931) tornou-se a primeira mulher afro-americana a receber o Prêmio Nobel, sendo premiada por ser uma escritora “que, em romances caracterizados por sua força visionária e importância poética, dá vida a um aspecto essencial da realidade americana.” Em 7 de dezembro, Morrison subiu ao pódio na Academia Sueca em Estocolmo e aceitou a honraria com um discurso espetacular sobre o poder da linguagem - seu poder de oprimir e libertar, cicatrizar e santificar, de expoliar e redimir. O discurso de Morrison, incluído no livro “Palestras Nobel: entre os laureados da literatura, de 1986 a 2006” (biblioteca pública), talvez seja nosso mais poderoso manifesto pela responsabilidade embutida na maneira como manejamos a ferramenta que é a marca registrada de nossa espécie.

Morrison escreve:

Era uma vez uma mulher idosa. Cega, mas sábia. "Ou era um homem velho? Um guru, talvez. Ou uma contadora de histórias acalmando crianças inquietas. Eu ouvi essa história, ou uma exatamente como ela, no folclore de várias culturas."

 Era uma vez uma mulher idosa. Cega. Sábia.

    Nessa versão eu sei que a mulher é filha de escravos, negros, americanos e mora sozinha em uma pequena casa fora da cidade. Sua reputação de sábia é sem par e inquestionável. Entre seu povo, ela é tanto a lei, quanto a sua transgressão. As honrarias que recebe e a reverência com que é mantida vão além do seu bairro, alcançando lugares distantes; até a cidade onde a inteligência dos profetas rurais é fonte de muita diversão.
    Um dia a mulher é visitada por alguns jovens que parecem estar dispostos a refutar sua clarividência e a mostrar a fraude que acreditavam que ela fosse. O plano deles era simples: eles entrariam em sua casa e fariam uma pergunta que só poderia ser respondida com base na diferença entre eles e ela, uma diferença que consideram uma deficiência profunda: a cegueira. Eles estão diante a mulher sábia e um deles diz: “Mulher velha, tenho na mão um pássaro. Diga-me se está vivo ou morto." 
    Ela não responde e a pergunta é repetida. "O pássaro que eu estou segurando está vivo ou morto?"
    Ainda assim ela não responde. Ela é cega e não pode ver seus visitantes, muito menos o que está em suas mãos. Ela não sabe sua cor, gênero ou pátria. Ela só conhece o motivo deles.

    
O silêncio da velha é tão longo, que os jovens têm dificuldade em segurar o riso.

    
Finalmente ela fala e sua voz é suave, mas severa. "Eu não sei", diz ela. "Eu não sei se o pássaro que você está segurando está vivo ou morto, mas o que eu sei é que ele está em suas mãos. Está em suas mãos."
    Sua resposta pode ser entendida como: se está morto, você o encontrou dessa forma ou o matou. Se estiver vivo, você ainda pode matá-lo. Ou seja,  mantê-lo vivo é uma decisão sua. Seja qual for o caso, é sua responsabilidade.
  A despeito do poder deles e do desamparo dela, os jovens visitantes são repreendidos, informados de que são responsáveis ​​não apenas pelo ato de zombaria, mas também por aquela pequenina vida sacrificada para alcançar seus objetivos. A mulher cega desvia a atenção das afirmações de poder, para o instrumento através do qual esse poder é exercido.

“ Especular sobre o que (além de seu próprio corpo frágil) aquele pássaro-na-mão pode significar sempre foi atraente para mim, mas especialmente agora, que eu tenho pensado sobre o trabalho que fiz e que me trouxe a essa premiação. Por isso escolho ler o pássaro como língua e a mulher como escritora experiente. Ela está preocupada com a forma como a linguagem em que ela sonha, dada a ela no nascimento, é tratada, colocada em serviço e até aprisionada para certos fins nefastos. Sendo escritora, ela pensaria na linguagem em parte como um sistema, em parte como uma coisa viva sobre a qual se tem controle, mas principalmente como agência - como um ato com consequências. Assim, a pergunta que os rapazes fazem a ela: “Está vivo ou morto?” não é desprovido de de sentido porque ela pensa que a linguagem é suscetível à morte, ao desaparecimento; ainda que ameaçada e aproveitada apenas por um esforço da vontade. Ela acredita que, na verdade, se o pássaro nas mãos de seus visitantes está morto, os guardiões são responsáveis ​​pelo cadáver. Para ela, uma língua morta não é apenas uma língua que não é mais falada ou escrita, é também conteúdo linguístico inflexível que admira sua própria paralisia. Como uma linguagem estatista, censurada e proibida. Impiedosa em seus deveres de policiamento, não tem desejo ou propósito além de sustentar o livre alcance de seu próprio narcisismo narcótico, sua própria exclusividade e domínio. Por mais moribunda que seja, contudo, surte efeito, pois frustra ativamente o intelecto, paralisa a consciência, suprime o potencial humano.”

Com um olhar cauteloso sobre como o nosso uso indevido da linguagem pode fazer  “renunciar a suas propriedades sutis, complexas e intermediárias até à ameaça e à subjugação”, escreve Morrison:

“A vitalidade da linguagem reside na sua capacidade de iluminar a vida real, imaginada e possível dos seus falantes, leitores, escritores. Embora a sua postura esteja, por vezes, na experiência de deslocamento, não é um substituto para ela. Inclina-se em direção ao lugar onde o significado pode estar. Quando um presidente dos Estados Unidos pensou no cemitério em que seu país se tornara, disse: “O mundo notará pouco ou nem se lembrará do que dizemos aqui. Mas nunca esquecerá o que fizemos”, suas palavras simples são essencialmente vitais porque são uma recusa a encapsular a realidade de 600.000 homens mortos em uma guerra racial cataclísmica. Recusando-se a monumentalizar, desdenhando a “palavra final”, o “resumo” preciso, reconhecendo seu “pobre poder de adicionar ou diminuir”, suas palavras sinalizam deferência à incapturabilidade da vida que lamenta. É a deferência que a move, o reconhecimento de que a linguagem nunca pode viver a vida de uma vez por todas. Nem deveria. A linguagem nunca pode "definir" a escravidão, o genocídio, a guerra. Nem deveria ansiar arrogantemente que fosse capaz de fazê-lo. Sua força, sua felicidade está em seu alcance para o inefável.
Seja grande ou esguio, escavando, detonando ou recusando-se a santificar; se é um riso alto ou se é um grito, a palavra escolhida, o silêncio escolhido, a linguagem não molestada surge em direção ao conhecimento, não à sua destruição.”

Em um sentimento que lembra a memorável meditação de James Baldwin sobre a linguagem e a vida - “é a experiência que molda uma linguagem; e é a linguagem que controla uma experiência ”, escreveu ele - Morrison acrescenta:

“O trabalho da palavra é sublime ... porque é gerador; faz o sentido que assegura nossa diferença, nossa diferença humana - a maneira como somos como nenhuma outra vida.”

 “Nós morremos. Esse pode ser o significado da vida. Mas nós fazemos linguagem. Essa pode ser a medida de nossas vidas.

(...)

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