Tradução adaptada de um texto da e sobre a Toni Morrison. Enquanto eu me tratava de uma meningite, a escritora fazia seu belo discurso pelo recebimento do prêmio nobel. Fico feliz de ter sobrevivido à doença, para perceber essa coincidência. Aqui Morrison sabiamente explica porque a palavra não encerra a experiência, perspectiva que alguém que trabalha com filosofia no século XXI precisa recuperar.
TONI MORRISON SOBRE O PODER DA LINGUAGEM: SEU DISCURSO ESPETACULAR DO NOBEL
DEPOIS DE SE TORNAR A PRIMEIRA MULHER AFRO-AMERICANA A RECEBER O PRÊMIO
“Nós morremos. Esse pode ser o significado da vida. Mas nós fazemos linguagem. Essa pode ser a medida de nossas vidas”
Nas últimas semanas de 1993, Toni
Morrison (18 de fevereiro de 1931) tornou-se a primeira mulher afro-americana a
receber o Prêmio Nobel, sendo premiada por ser uma escritora “que, em romances
caracterizados por sua força visionária e importância poética, dá vida a um
aspecto essencial da realidade americana.” Em 7 de dezembro, Morrison subiu ao
pódio na Academia Sueca em Estocolmo e aceitou a honraria com um discurso
espetacular sobre o poder da linguagem - seu poder de oprimir e libertar,
cicatrizar e santificar, de expoliar e redimir. O discurso de Morrison,
incluído no livro “Palestras Nobel: entre os laureados da literatura, de 1986 a 2006”
(biblioteca pública), talvez seja nosso mais poderoso manifesto pela
responsabilidade embutida na maneira como manejamos a ferramenta que é a marca
registrada de nossa espécie.
Morrison escreve:
Morrison escreve:
Era uma vez uma mulher idosa. Cega, mas sábia. "Ou era
um homem velho? Um guru, talvez. Ou uma contadora de histórias
acalmando crianças inquietas. Eu
ouvi essa história, ou uma exatamente como ela, no folclore de várias culturas."
Era
uma vez uma mulher idosa. Cega. Sábia.
Nessa
versão eu sei que a mulher é filha de escravos, negros, americanos e mora
sozinha em uma pequena casa fora da cidade. Sua
reputação de sábia é sem par e inquestionável. Entre seu
povo, ela é tanto a lei, quanto a sua transgressão. As
honrarias que recebe e a reverência com que é mantida vão além do seu bairro,
alcançando lugares distantes; até
a cidade onde a inteligência dos profetas rurais é fonte de muita diversão.
Um
dia a mulher é visitada por alguns jovens que parecem estar dispostos a
refutar sua clarividência e a mostrar a fraude que acreditavam que ela fosse. O
plano deles era simples: eles entrariam em sua casa e fariam uma pergunta que só
poderia ser respondida com base na diferença entre eles e ela, uma diferença
que consideram uma deficiência profunda: a cegueira. Eles
estão diante a mulher sábia e um deles diz: “Mulher velha, tenho na mão um
pássaro. Diga-me
se está vivo ou morto."
Ela não responde e a pergunta é repetida. "O pássaro que eu estou segurando está vivo ou morto?"
Ela não responde e a pergunta é repetida. "O pássaro que eu estou segurando está vivo ou morto?"
Ainda
assim ela não responde. Ela
é cega e não pode ver seus visitantes, muito menos o que está em suas mãos. Ela não sabe sua
cor, gênero ou pátria. Ela
só conhece o motivo deles.
O silêncio da velha é tão longo, que os jovens têm dificuldade em segurar o riso.
Finalmente ela fala e sua voz é suave, mas severa. "Eu não sei", diz ela. "Eu não sei se o pássaro que você está segurando está vivo ou morto, mas o que eu sei é que ele está em suas mãos. Está em suas mãos."
O silêncio da velha é tão longo, que os jovens têm dificuldade em segurar o riso.
Finalmente ela fala e sua voz é suave, mas severa. "Eu não sei", diz ela. "Eu não sei se o pássaro que você está segurando está vivo ou morto, mas o que eu sei é que ele está em suas mãos. Está em suas mãos."
Sua
resposta pode ser entendida como: se está morto, você o encontrou dessa forma
ou o matou. Se
estiver vivo, você ainda pode matá-lo. Ou seja, mantê-lo
vivo é uma decisão sua. Seja
qual for o caso, é sua responsabilidade.
A despeito do poder deles e do desamparo dela, os jovens
visitantes são repreendidos, informados de que são responsáveis não apenas
pelo ato de zombaria, mas também por aquela pequenina vida sacrificada para
alcançar seus objetivos. A
mulher cega desvia a atenção das afirmações de poder, para o instrumento através
do qual esse poder é exercido.
“ Especular
sobre o que (além de seu próprio corpo frágil) aquele pássaro-na-mão pode
significar sempre foi atraente para mim, mas especialmente agora, que eu tenho pensado
sobre o trabalho que fiz e que me trouxe a essa premiação. Por
isso escolho ler o pássaro como língua e a mulher como escritora experiente. Ela
está preocupada com a forma como a linguagem em que ela sonha, dada a ela no
nascimento, é tratada, colocada em serviço e até aprisionada para certos fins
nefastos. Sendo
escritora, ela pensaria na linguagem em parte como um sistema, em parte como
uma coisa viva sobre a qual se tem controle, mas principalmente como agência -
como um ato com consequências. Assim,
a pergunta que os rapazes fazem a ela: “Está vivo ou morto?” não é desprovido de
de sentido porque ela pensa que a linguagem é suscetível à morte, ao desaparecimento;
ainda
que ameaçada e aproveitada apenas por um esforço da vontade. Ela
acredita que, na verdade, se o pássaro nas mãos de seus visitantes está morto,
os guardiões são responsáveis pelo cadáver. Para
ela, uma língua morta não é apenas uma língua que não é mais falada ou escrita,
é também conteúdo linguístico inflexível que admira sua própria paralisia. Como uma linguagem
estatista, censurada e proibida. Impiedosa
em seus deveres de policiamento, não tem desejo ou propósito além de sustentar
o livre alcance de seu próprio narcisismo narcótico, sua própria exclusividade
e domínio. Por
mais moribunda que seja, contudo, surte efeito, pois frustra ativamente o
intelecto, paralisa a consciência, suprime o potencial humano.”
Com um olhar cauteloso sobre como o nosso uso indevido da linguagem pode fazer “renunciar a suas propriedades sutis, complexas e intermediárias até à ameaça e à subjugação”, escreve Morrison:
Com um olhar cauteloso sobre como o nosso uso indevido da linguagem pode fazer “renunciar a suas propriedades sutis, complexas e intermediárias até à ameaça e à subjugação”, escreve Morrison:
“A vitalidade da linguagem reside
na sua capacidade de iluminar a vida real, imaginada e possível dos seus
falantes, leitores, escritores. Embora
a sua postura esteja, por vezes, na experiência de deslocamento, não é um
substituto para ela. Inclina-se em direção
ao lugar onde o significado pode estar. Quando
um presidente dos Estados Unidos pensou no cemitério em que seu país se
tornara, disse: “O mundo notará pouco ou nem se lembrará do que dizemos aqui. Mas
nunca esquecerá o que fizemos”, suas palavras simples são essencialmente vitais
porque são uma recusa a encapsular a realidade de 600.000 homens mortos em uma
guerra racial cataclísmica. Recusando-se
a monumentalizar, desdenhando a “palavra final”, o “resumo” preciso,
reconhecendo seu “pobre poder de adicionar ou diminuir”, suas palavras
sinalizam deferência à incapturabilidade da vida que lamenta. É
a deferência que a move, o reconhecimento de que a linguagem nunca pode viver a
vida de uma vez por todas. Nem deveria. A linguagem nunca
pode "definir" a escravidão, o genocídio, a guerra. Nem deveria
ansiar arrogantemente que fosse capaz de fazê-lo. Sua
força, sua felicidade está em seu alcance para o inefável.
Seja grande ou esguio, escavando,
detonando ou recusando-se a santificar; se
é um riso alto ou se é um grito, a palavra escolhida, o silêncio
escolhido, a linguagem não molestada surge em direção ao conhecimento, não à sua
destruição.”
Em um sentimento que lembra a
memorável meditação de James Baldwin sobre a linguagem e a vida - “é a
experiência que molda uma linguagem; e
é a linguagem que controla uma experiência ”, escreveu ele - Morrison
acrescenta:
“O trabalho da palavra é sublime
... porque é gerador; faz o sentido que assegura nossa diferença, nossa
diferença humana - a maneira como somos como nenhuma outra vida.”
“Nós morremos. Esse pode ser o significado da vida. Mas nós fazemos linguagem. Essa pode ser a medida de nossas vidas.”
“Nós morremos. Esse pode ser o significado da vida. Mas nós fazemos linguagem. Essa pode ser a medida de nossas vidas.”
(...)
Disponível em:< https://www.brainpickings.org/2016/12/07/toni-morrison-nobel-prize-speech/
> Acesso em: 24. 04. 2018