quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Comentário*: Só Garotos - Patti Smith

 




Eu sei que nosso tempo está vivendo seu próprio temor nuclear e mais um fim do mundo orquestrado pelos poderosos do mundo capitalista, mas dia desses eu fui contemplada com a leitura de um livro de escrita tão leve e gentil com as pessoas neles descritas, mesmo quando o tempo também não era gentil e leve com elas. Estou falando do famoso Only Kids/Só garotos, da Patti Smith.


Quem se sempre se sentiu estranho na vida ou se sentiu assim pelo menos em alguma fase dela, vai se identificar com a descrição que Patti faz de si e do seu grande companheiro Robert Mapplethorp. Mapplethorp, por sua vez, levou isso às últimas consequências, criando uma arte ousada, às vezes chocante, às vezes delicada e, na minha humilde opinião, maravilhosa. Patti criou o tecido de relações importantes e contribuiu criativamente com suas apresentações poéticas, desenhos e canções, em uma rede de artistas incríveis que perambulavam mais ou menos pelas mesmas ruas da Nova Iorque daquela época. O livro que ela escreveu, mais do que uma biografia de si é uma biografia da relação dos dois (processo, transmutações etc).


Ter aquela comunidade arrasada pela epidemia de AIDS da década de 1980 foi uma grande perda para a cultura dos EUA e do mundo e talvez até hoje estejamos pagando o preço por eles não terem cuidado dos seus filhos, como gostam de dizer. Algo parecido com a enorme perda cultural que a nossa ditadura fez com seu conservadorismo hipócrita, que foi parcialmente herdada pela jovem democracia. Mas essas são correlações que faço de forma passional (quem disse que a passionalidade não pode ser inteligente- além dos gregos?), ao sabor dessa leitura e da madrugada cheia de notícias. Mas quem quiser usar como tema de pesquisa, pode ficar à vontade, as entidades do mundo sabem como é preciso saber onde estão nos metendo de novo.




* Originalmente publicado na newsletter "Clube de Profecias".

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Exames Aleatórios de Imagem - Laís Romero

 

Exames Aleatórios de Imagem (2024), Laís Romero, Coleção Diabo na Aula, Ed. Mórula

Com mais um livro da Laís em mãos, fui sossegada de que encontraria algo bom naquelas páginas. Páginas aliás muito bem editadas, com um papel de qualidade, nome ousado na coleção (diabo na aula), páginas de cores alternadas em cinza e um amarelado. A capa, não sei se será um padrão da série, ou coincidência, lembra, de fato, as propagandas geométricas dos anos 2000, dos laboratórios de imagens da cidade. 

O título já nos avisa que encontraremos algumas imagens anatômicas e aí eu devo dizer que fui corajosa, posto que anatomia foi a primeira disciplina do curso de biologia, priscas eras atrás, que me recusei a cursar (a escusa de consciência como dilema ético não era levado em questão na prática, como pode ser levada hoje). Daí foi a porta de entrada para abandonar o curso. Eu havia tido alguma experiência com as feiras de ciência e de anatomia da escola e levei a serio minha reação. Mas que bom que um grande número de pessoas não vê problema nenhum nisso, seja para exercer as áreas de saúde, pesquisa e também a escrita literária, que no caso da autora, é tudo isso ao mesmo tempo.

folha interna com trecho do poema

Mas do jeito que escrevo, fica parecendo que tenho um livro gore em mãos. Ainda que a tragédia da vida e da morte estejam lá, a ironia, o humor e o simbólico, permitem que tenhamos acesso aos corpos, inteiros ou despedaçados, dos temas que Laís nos chama à atenção. O rio, a guerra, a criação, o feminicídio, a notícia, o sonho, a história, a maternidade, o amor e o tarô- e outros mais que surgem do desdobramento destes. O poema que dá nome ao livro, é um itinerário pela memória de alguém que não é ouvida.

O tema da guerra é um dos novos inspiradores da escrita da Laís, pelo menos desde que venho acompanhando seu trabalho, há mais de 10 anos. A violência sempre apareceu aqui e ali, como não é surpreendente quando a escritora é um ser humano mulher (dentre outros marcadores, estudei isso muito tempo, peço desculpas pela recorrência), sensível à certa categoria de sofrimento justamente por sê-la, ainda que caiba a cada uma porção dessas intercessões únicas,  mas... a dimensão da guerra, que é trazida até nós pela internet e pelo noticiário da tv e que contamina as mais variadas formas de arte, mesmo a feita em uma terra que insiste em permanecer longínqua, como a nossa, sobre uma terra que tornaram longínqua, como a Palestina. No nosso caso pelo menos há dúvida a respeito de uma possível escolha.

Se a Susan Sontag vem puxando o fio do novelo das possibilidades éticas de estarmos expostos a essas imagens terríveis de sofrimento distante, a arte surge como uma linguagem (lato sensu), com vocabulários próprios de aproximação ou distanciamento desse horror. E mesmo o Piauí, sempre tão distante da atenção do próprio país e até de si mesmo (estou fazendo aqui uma espécie de apelo), é capaz de abrigar escritoras sensíveis ao genocídio, ao ponto de escrever coisas de uma terrível beleza, como os poemas abaixo, num momento em que grande parte do jornalismo responsável pela divulgação daquelas mesmas imagens, é incapaz de emitir as palavras exigidas para descrevê-las: massacre, genocídio, assassinato de crianças. Se não o fazem por questões ideológicas, religiosas ou de patrocínio, também é algo muito sério. Mas no nosso caso, talvez a nossa complexa distância, herdada da colonização, permita, em uma consequência não desejada, uma liberdade de expressão que precisaria ser mais aproveitada*. Eis os poemas:

poesia de guerra

sem virar o rosto
à fúria do vazio
criado pelo explosivo
ali se calam os gritos 
tantos grudados à margem
do tecido burocrático
aquele lugar errante
onde os nomes
não fazem falta

a poeta palestina

o tempo todo a vida
está só começando
ainda no choro
de abertura pulmonar
alvéolos e brônquios 
árvores e troncos 
só começando
em cada instante

apartar e refazer
descosturar o verso
e remendar o rasgo

um último poema
antes do crime
de guerra

O assunto não é novo entre nós aqui, então seria im-pos-sí-vel que eu não me exaltasse (sim, aqui estou agitada). O pequeno livro de 90 páginas traz outros tesouros, como a jornada de um corpo que você vai acompanhando entre outros poemas que se intercalam com ele e, dentre os poemas dos arcanos do tarô, temos o belo "a temperança" em 4 versos e ainda os estranhos personagens que se arrastam pelo fundo do mar desde o início do livro, que vão ressurgindo. E para quem é do simbólico, há uma conversa a partir do tarô de Marselha que espelha vários dos temas que já apareceram e outros interesses da alma.

Termino esse pequeno texto comentando que já li três vezes o "Exames Aleatórios de Imagem" e ainda digo que, apesar de ser uma pessoa da releitura, não é sempre que um livro me entretém, como ele está fazendo. Como se eu estivesse conferindo o estado atual do imaginário de uma amiga e conversando com ele.

mais um trecho, poema "liquidado"


O que saiu sobre a obra e que pode te interessar!

Geleia Total (2025), "Exames Aleatórios de Imagem" citado entre os lançamentos da Laís. 

Entrevista recente na Revestrés.

Notícia do lançamento do livro no site da Revista Acrobata.

Site Pauta Cultural relaciona os últimos lançamentos da autora (2024/2025).

Fotos do bate-papo na Livraria Entrelivros, site literatura piauiense.

Nossa última postagem com ela foi sobre seu outro livro de poesias "Mátria".

*Eu deixei de fora a coerção social local sobre tantos assuntos políticos nas esferas públicas.

terça-feira, 6 de maio de 2025

flor de sangue, deus do infortúnio

 

a alegria do reencontro 

um cheiro de flor e de sangue

estende a mão 

sente-lhe os ossos no escuro

lê um oráculo viciado 

agradece 

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