sábado, 6 de agosto de 2016

Mondrian

Broadway Boogie-Woogie - Mondrian, tão avesso à sociedade e solitário, adorava ouvir e dançar. Especialmente jazz. 


Linhas verticais: o espírito; linhas horizontais: a materialidade. Eis a base do Mondrian já amadurecido. De algum modo, o artista holandês, achou ter descoberto o caminho da arte ser una com a vida. A geometria mais simples era o ponto de interseção entre esses dois mundos que ele entendia terem se separado (em algum momento imaginado, talvez). 

Mondrian e Kandinsky (esse, russo), além do Picasso, foram alguns dos artistas que eu encarava com curiosidade, um certo encantamento, mas que só foram me tocando bem depois dos primeiros contatos com as obras. Nada de museus. Livros da escola, quadros reproduzidos nas paredes da universidade, mais para decoração do que outra coisa, revistas  e, claro, já mais adiante, na internet. Não que eu tenha me detido obsessivamente como um tempo fiz com Van Gogh, mas sempre exerceram alguma atração aquelas linhas que eram chamadas de arte.

Bom, meu lado descontruído e pós-moderno que me desculpe, mas eu fui ensinada a entender as escolas de arte em linha histórica, uma negando a outra ou desmontando a anterior. Aliás, história e filosofia e todas as demais filosofia que, de algum modo, dialogavam com o tempo, ou com datas, também. Mas o ponto aqui não são os novos paradigmas do entender histórico (não-linear, simultâneo etc). O ponto é que, meu olhar foi adestrado para perceber assim.

Eu já estava exultante em ter alguma aula de história da arte num tempo em que isso ainda não era comum e num lugar onde as pessoas não costumam ligar tanto para isso- e a. Alguma coisa me arrebatava, ainda que eu não gostasse da professora. Então, o que mais importava é que eu estava tendo acesso aquele saber, àquela construção maravilhosa da humanidade que era apresentada apenas a uns poucos eleitos. E eleitos no masculino, mesmo.

Usei os nomes famosos como ponto de partida para conhecer outros tantos, inclusive artistas locais (Nonato, Gabriel Arcanjo, Dora Parente, Portelada etc) , especialmente pintores e sempre que encontrava um novo, ia aprendendo a abrir camadas novas de apreciação. Uma hora eu me detinha nas cores, outra nas formas, outra no tema geral, lembrava da biografia ou do momento histórico da obra, se tivesse pesquisado antes. Outras tantas vezes, em tudo isso junto. 

Mas para mim essas linhas do Mondrian... Confesso que jogava num baú da arte menor- leia-se, arte menor era a que eu não entendia. Ou não me sentia tocada. Por algum motivo Miró, Kandinsky e Picasso me tocavam, mas Mondrian... Mondrian demorou. Precisei passar muitas e muitas e muitas vezes por aquelas ver-ti-ca-li-da-de e ho-ri-zon-ta-li-da-de associada às cores primárias.

Não sei que dia se deu isso. Mas hoje sinto a obra dele como a se fundir com o mundo, indissociável. Colocar um dos quadros dele na parede deve ser torná-lo parede e janela e paisagem. Sem bordas, com as linhas e as cores primárias alcançando os átomos. É o abstrato que torna a parede espaço ampliado para além da mera utilidade paredística. Melhor que isso talvez só vê-la, no meu futuro imaginado (?), adiante, desmoronando junto com a outrora parede e apodrecendo como num toque de Manoel de Barros, reafirmando a arte como vida. Inclusive, quanto a esse ponto, foi o que Hitler temeu quando agrupou a obra de Mondrian, junto com a de Picasso e de outras referências europeias da primeira metade do século XX, a “arte degenerada”. Sem formas reconhecidas, ou com formas alteradas ou reduzidas a uma abstração que, a um primeiro momento, parecia impenetrável, o ditador assustou-se, certamente compreendendo o poder de renovação que elas continham. Como o totalitarismo precisa de um mundo fixo para existir, a negação da arte enquanto ruptura e renovação era um passo esperado. Por isso o rótulo pejorativo. Vez ou outra ele retorna. 

Mondrian foi capaz de ultrapassar nossas referências cognitivas: teu olho, teu ouvido, teu nariz, tua língua, tua pele e como a tua cabecinha une tudo isso pensamento. Paisagem formada sem qualquer árvore, pessoa, fruta, cena qualquer que fosse familiar- nem o cubismo foi tão longe. Talvez de todas as obras dele da fase madura, a que seja mais “reconhecível” seja justamente a  Broadway Boogie-Woogie da postage. Isso porque, Nova Iorque, a cidade-profecia para o mundo que surgiria, era a confirmação do que ele intuía há décadas como “verdade” da arte. De lá, de fato, irradiou-se todo um estilo de vida citadino de luzes geométricas, para o bem e para o mal. 

Pouco tempo depois de concluída essa obra, uma pneumonia levou o corpo de Mondrian. Da horizontalidade relativa, para a verticalidade final.


Aqui o trailer do documentário que o canal "Curta!" exibiu ontem, No estúdio de Mondrian: https://www.youtube.com/watch?v=Ib6_8LmebXI

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