Broadway Boogie-Woogie - Mondrian, tão avesso à sociedade e solitário, adorava ouvir e dançar. Especialmente jazz. |
Linhas verticais: o espírito;
linhas horizontais: a materialidade. Eis a base do Mondrian já amadurecido. De
algum modo, o artista holandês, achou ter descoberto o caminho da arte ser una
com a vida. A geometria mais simples era o ponto de interseção entre esses dois
mundos que ele entendia terem se separado (em algum momento imaginado, talvez).
Mondrian e Kandinsky (esse,
russo), além do Picasso, foram alguns dos artistas que eu encarava com
curiosidade, um certo encantamento, mas que só foram me tocando bem depois dos
primeiros contatos com as obras. Nada de museus. Livros da escola, quadros
reproduzidos nas paredes da universidade, mais para decoração do que outra
coisa, revistas e, claro, já mais
adiante, na internet. Não que eu tenha me detido obsessivamente como um tempo
fiz com Van Gogh, mas sempre exerceram alguma atração aquelas linhas que eram
chamadas de arte.
Bom, meu lado descontruído e
pós-moderno que me desculpe, mas eu fui ensinada a entender as escolas de arte
em linha histórica, uma negando a outra ou desmontando a anterior. Aliás,
história e filosofia e todas as demais filosofia que, de algum modo, dialogavam
com o tempo, ou com datas, também. Mas o ponto aqui não são os novos paradigmas
do entender histórico (não-linear, simultâneo etc). O ponto é que, meu olhar
foi adestrado para perceber assim.
Eu já estava exultante em ter
alguma aula de história da arte num tempo em que isso ainda não era comum e num
lugar onde as pessoas não costumam ligar tanto para isso- e a. Alguma coisa me
arrebatava, ainda que eu não gostasse da professora. Então, o que mais
importava é que eu estava tendo acesso aquele saber, àquela construção
maravilhosa da humanidade que era apresentada apenas a uns poucos eleitos. E
eleitos no masculino, mesmo.
Usei os nomes famosos como ponto
de partida para conhecer outros tantos, inclusive artistas locais (Nonato,
Gabriel Arcanjo, Dora Parente, Portelada etc) , especialmente pintores e sempre
que encontrava um novo, ia aprendendo a abrir camadas novas de apreciação. Uma
hora eu me detinha nas cores, outra nas formas, outra no tema geral, lembrava
da biografia ou do momento histórico da obra, se tivesse pesquisado antes. Outras
tantas vezes, em tudo isso junto.
Mas para mim essas linhas do
Mondrian... Confesso que jogava num baú da arte menor- leia-se, arte menor era
a que eu não entendia. Ou não me sentia tocada. Por algum motivo Miró, Kandinsky
e Picasso me tocavam, mas Mondrian... Mondrian demorou. Precisei passar muitas
e muitas e muitas vezes por aquelas ver-ti-ca-li-da-de e ho-ri-zon-ta-li-da-de
associada às cores primárias.
Não sei que dia se deu isso. Mas
hoje sinto a obra dele como a se fundir com o mundo, indissociável. Colocar um
dos quadros dele na parede deve ser torná-lo parede e janela e paisagem. Sem
bordas, com as linhas e as cores primárias alcançando os átomos. É o abstrato
que torna a parede espaço ampliado para além da mera utilidade paredística.
Melhor que isso talvez só vê-la, no meu futuro imaginado (?), adiante,
desmoronando junto com a outrora parede e apodrecendo como num toque de Manoel
de Barros, reafirmando a arte como vida. Inclusive, quanto a esse ponto, foi o
que Hitler temeu quando agrupou a obra de Mondrian, junto com a de Picasso e de
outras referências europeias da primeira metade do século XX, a “arte
degenerada”. Sem formas reconhecidas, ou com formas alteradas ou reduzidas a
uma abstração que, a um primeiro momento, parecia impenetrável, o ditador
assustou-se, certamente compreendendo o poder de renovação que elas continham.
Como o totalitarismo precisa de um mundo fixo para existir, a negação da arte enquanto
ruptura e renovação era um passo esperado. Por isso o rótulo pejorativo. Vez ou
outra ele retorna.
Mondrian foi capaz de ultrapassar
nossas referências cognitivas: teu olho, teu ouvido, teu nariz, tua língua, tua
pele e como a tua cabecinha une tudo isso pensamento. Paisagem formada sem
qualquer árvore, pessoa, fruta, cena qualquer que fosse familiar- nem o cubismo
foi tão longe. Talvez de todas as obras dele da fase madura, a que seja mais “reconhecível”
seja justamente a Broadway Boogie-Woogie
da postage. Isso porque, Nova Iorque, a cidade-profecia para o mundo que
surgiria, era a confirmação do que ele intuía há décadas como “verdade” da
arte. De lá, de fato, irradiou-se todo um estilo de vida citadino de luzes
geométricas, para o bem e para o mal.
Pouco tempo depois de concluída
essa obra, uma pneumonia levou o corpo de Mondrian. Da horizontalidade relativa,
para a verticalidade final.
Aqui o trailer do documentário que o canal "Curta!" exibiu ontem, No estúdio de Mondrian: https://www.youtube.com/watch?v=Ib6_8LmebXI