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terça-feira, 4 de agosto de 2020

Entrevista: Alcione Correa

Hoje meu entrevistado é o extremamente gentil professor Alcione, que dá aula no curso de Letras, da UFPI, dentre outras coisas. Encontramo-nos por meio do Twitter uns anos atrás e agora o convido a esta conversa a respeito do pensamento e literatura negra, que são suas especialidades, e sobre os cotidianos de um corpo negro que sente, observa e fala a respeito disto e de outras coisas mais. Você pode ler mais entrevistas clicando na tag entrevistas ou aqui:


1. Alcione, obrigada por aceitar participar do blog do passarinho, esse diário que, às vezes, é construído por muitas mãos. Vamos lá! Quando você veio morar no Piauí, o que você esperava encontrar aqui? O que de fato achou?

Em primeiro lugar, bom dia e muitíssimo obrigado pelo convite, pela acolhida e pelas futuras leituras, a estabelecer novas interlocuções que contribuam a nos fazer avançar um pouco, em meio a contextos macro- tão desanimadores. Chegamos a um ponto no qual estar-no-mundo, apesar de tudo, se tornou, também, um ato político. Obrigado a ti e a todas(os) assinantes por cultivar, juntas(os),  este espaço de cuidado.

Mês passado, no dia primeiro, se completaram doze anos desta parcela de vida em Teresina; como se, vivendo em um país distinto do Brasil, eu viesse para seguir existindo em outro país igualmente distinto do Brasil; com exceção de um dinheiro parecido, todo resto absolutamente novo, exigindo aprendizados todos os dias. Ainda não aprendi a estar-no-mundo desde nosso lugar-Teresina, a socializar de maneira satisfatória, mas sigo insistindo. À época do mestrado na UFRGS, se tratava de uma escolha, de minha parte, viver em Teresina desde esta condição de docente concursado da UFPI; esforços de muitas pessoas a me demover de uma ideia que, em seu entender, não fazia o menor sentido; muito racismo travestido de preocupação (de um tipo similar ao que tu experiencias e compartilhas conosco desde tua experiência vivida em Florianópolis, outro lugar nem um pouco amigável a sujeitas(os) racializadas(os)); após, o concurso; iniciei a viagem a Teresina ao meio-dia e trinta, 22 de junho de 2008, oito graus, sete dias de uma viagem sem pressa com o intuito de, precisamente, marcar esta trajetória de vida em duas metades, antes e durante Teresina.

Hoje, apresentadas oportunidades similares naquele mesmo momento de vida, escolheria Teresina, novamente, escolheria a compra de discos e de uma vitrola no Troca, escolheria retecer a relação com a universidade e com algo maior que ela através de sua Rádio, escolheria o café da Serena, escolheria levar manga fiapo para casa, escolheria a mesma bicicleta lilás e a mesma ciclista feminista onde sempre a consertam, escolheria iniciar aqui uma relação ad infinitum com a terapia. 

De maneira a seguir na resposta, me soa ímpar permanEcer, tantos anos depois, no  mesmo estado de estranhamento de “Sampa” admitindo que, quando cheguei por aqui, eu nada entendi. Nos primeiros anos, havia uma pergunta racializada, em uma formulação particularmente teresinense: “Tu não é daqui, né não?”. Uma estrutura peculiar de negar a diferença, suprimindo-a três vezes, sem importar o tempo em que se está aqui; com o tempo, praticando uma resposta do tipo “Sim, trabalhando aqui, pagando IPTU aqui, jogando a pelada com o grupo de colegas daqui, portanto, sim, creio que sou daqui; se não é para ser, para que vir?”, a pergunta foi sumindo à medida que o devir-negro vinha chegando. Hoje, sem a certeza de por quanto tempo mais perceberei o mundo desde o lugar-Teresina, tenho vivido a hipótese de que, se o lugar racializado atribuído ao corpo-negro me imputa um sentimento de inadequação, de estrangeiria em qualquer lugar, isso poderia implicar (em uma perspectiva do “copo meio cheio”) a possibilidade de, 

visto que uma existência negra oferece problemas e riscos em qualquer lugar, em distintos momentos de nossa trajetória nesta existência, 

existi-la em distintos lugares.

Hoje, os modos de estabelecer relações de café, de discos e livros, de amor, de trabalho, são modos em Teresina. Amanhã, ainda não posso responder como será nossa atuação, somente nos repassam o script quase na hora das cenas; nunca sabemos quando nossa personagem deixará a trama, quando cancelarão a nova temporada ou quando seremos designadas(os) a outro espetáculo.

 

2. Os seus projetos acadêmicos, dão uma boa pista de como você vivencia com seriedade a valorização da cultura produzida na América Negra. Você já parou para pensar na importância desses projetos em um estado negro que muitas vezes ignora essa condição, que ainda é fortemente atrelada também à pobreza?

Assim como anteriormente, muito obrigado por tua pergunta, na dimensão política que ela nos apresenta. Sobre a ideia de pesquisar literaturas afroamericanas a partir de um marco de pensamento  negro americano, frequentemente em uma perspectiva comparativa (basicamente, o trabalho a que nos dedicamos no Projeto de Pesquisa Teseu, o labirinto e seu nome), ainda que, em sua base, se trate de uma ideia assentada no compromisso político de um lugar negro – um lugar de produção, discussão e difusão de conhecimentos negros; investigado desde um lugar negro de enunciação científica – vale a pena assinalar que tal lugar não se mostra evidente, dado, mas necessita de construção, de cultivo, de mobilização constantes. Não se trataria de um ser suficiente pelo fenótipo mas, antes, de um devir marcado pela violência dos processos de racialização, do que nos desumaniza todos os dias por meio desta racialização.

A despeito do crescimento, quantitativo e qualitativo, de pesquisa acadêmica em pensamento negro, a partir do advento das ações afirmativas e de suas consequências, a interdição de corpas(os) negras(os) nos espaços de produção, discussão e difusão de conhecimento, em um modelo propriamente acadêmico, se mostra uma constante. Frequentemente, os signos negro e conhecimento seguem incompatíveis em nossos modos de conceber o espaço acadêmico coabitando, não obstante, com as lutas e avanços, na forma de políticas públicas de combate ao racismo a ser disputadas, precisamente, “em um estado negro que muitas vezes ignora essa condição”: a condição de humanidade de sujeitas(os) negras(os) enquanto vidas que importam. Talvez em tal cenário, a mera presença neste espaço interditado demarque, por si, a reivindicação de um lugar político; a estratégia de conhecimento coletivo, mediante aquilombamento no Núcleo Ifaradá (o NEAB da UFPI), como parte fundamental a nossos devires e à ciência proposta a partir deles, constrói este lugar político em nosso cotidiano de trabalho.

A valorização da cultura produzida na América Negra, no âmbito do Projeto Teseu, se efetua mediante dimensões suplementares à análise comparativa entre literaturas afroamericanas tomando os sentidos do prefixo afro- como se fossem suficientes a uma suposta definição essencial de um ser negro: as Américas Negras ou, em uma ideia mais adequada aprendida desde Lélia González, as Améfricas, se manifestam em suas particularidades e naquilo que podemos aprender com elas (onde somos nós que, na atividade de pesquisa, comparamos aquilo que aprendemos e aquilo que nos descentra no contato com distintas literaturas); as Améfricas se manifestam em nossa frequentação e aprendizagem de pensamento negro em-diáspora, neste esforço de interpretar, compartilhar e referenciar a este patrimônio, o mais efetivamente possível, em nosso fazer científico; as Améfricas se desenham nas redes intelectuais que construímos com os recursos disponíveis, gente preta produzindo, discutindo e difundindo conhecimento sobre, para e, frequentemente, contra um estado negro que, muitas vezes, ignora essa condição.

 

3. Você transita com facilidade por muitas mídias, além de outros projetos de extensão, tem o Clube do Vinil, o podcast Anansi e não são tanto professores de ensino superior que abraçaram outros territórios para se comunicar com a comunidade acadêmica e não acadêmica, além disso, vive-se um grande levante nas lutas pelos direitos das minorias, usando redes sociais como ferramenta possível e até as ruas, mesmo no meio da pandemia (e também por isso): é possível dizer que você está no lugar certo, na hora certa? Percebe um tipo de interesse maior nos últimos tempos? Ou não?

Uma vez mais, te agradeço pela pergunta e por tua gentileza na menção, no comentário a iniciativas de comunicação que têm integrado o trabalho docente desenvolvido, neste momento, na UFPI. Ambas iniciativas (o programa de rádio e, mais recentemente, o podcast) atendem a um problema comum, no cerne da tarefa docente e, em certa medida, do elemento pessoal em nossas narrativas, nossos modos de nos situar no mundo: além de atividades de extensão acadêmica, se mostram modos de compartilhar conhecimento.

O ponto de partida do Clube do Vinil, em 2012, partiu da constatação de que não fazia muito sentido uma casa com cerca de 500 discos (à época), um par  de vitrolas sem, contudo, pessoas para compartilhar os discos e histórias em torno deles. Além de uma linha editorial definida (música das Américas e, sempre que possível, música negra das Américas), diretamente relacionada às atividades de ensino e pesquisa desempenhadas na UFPI, o Clube do Vinil sempre se propôs um espaço de escuta e compartilhamento de música em uma sala onde caiba muita gente, uma sala de ondas de rádio – e onde se possa, frequentemente, sem contradição de termos, viver a experiência solitária do disco, algo para beber, luzes apagadas, apenas os ruídos dos seres da noite lá fora: um recurso corrente em programas noturnos de rádios brasileiras, entre 20 horas e uma da madrugada, todas noites. O Clube do Vinil recorre a este tipo de linguagem, muito mais próxima de programas em frequência AM, embora hospedado em uma rádio pública, universitária. Como programas dos quais bebemos para conceber o programa na FM Universitária 96,7 em seu formato, é preciso salientar que a cultura de ouvinte de rádio está presente ao longo de boa parte da vida, de toda ela, talvez: ouvinte de rádio em busca de informação (naquele tempo em que, ainda, se associava rádio a qualidade de informação, de modo mais comprometido), ouvinte creditando sua formação musical ao rádio. Os discos do Clube do Vinil, assim como a chave de leitura a eles, reatualizada a cada novo programa, advêm dessa cultura de audição de rádio (quase sempre, de rádio AM e, hoje em dia, de rádio em streamings salvos no telefone celular). Como programas dos quais bebemos para conceber o Clube do Vinil, destacaria, sobretudo, dois programas de rádio ainda em Porto Alegre, o Conversa de Botequim (diário, na FM Cultura de lá; em sua linha editorial, discos de MPB) e o Noturno Guaíba (diário, na madrugada, já não existe mais; em sua linha editorial, a coleção de discos de acetato do Museu Hipólito José da Costa). Nos últimos anos, houve um programa especialmente marcante nesta formação em música das Américas: Tímpano, apresentado por Daniel Viglietti, até o fim de sua vida; escutava-o em 2016, mateando nas tardes de sábado às margens do Rio Mapocho (naquela parte mais arborizada, cerquita do Teatro del Puente), em sua reprodução pela rádio da Universidad de Chile (outra rádio pública imperdível a se ouvir por streaming, particularmente a quem, como nosso querido Prof. Luizir de Oliveira, aprecia repertório de música erudita). Mais contemporaneamente, audíveis por streaming, recomendo imensamente dois programas seguidos, diários, exibidos nas manhãs de dias úteis na rádio pública uruguaia Emisora del Sur: o Música de dos orillas, tocando tango argentino e uruguaio; o El sonido de todos, apresentado de modo brilhante por Héctor Numa Moraes. Além deles, há muitas surpresas incríveis em rádios públicas universitárias, muitos programas do gênero à espera da descoberta de novas(os) ouvintes. Hoje em dia, escuto rádio por streaming para estudar conteúdos, chaves de leitura e modos de apresentar o Clube do Vinil.

Mais recentemente, o ponto de partida do Podcast Anansi, além de ampliar as possibilidades de extensão acadêmica, em uma linha editorial definida (a fruição de literatura; a divulgação científica em torno de uma ideia de Ciência da Literatura), também diretamente relacionada às atividades de ensino e pesquisa desempenhadas na UFPI, este podcast parte de uma ideia similar: uma biblioteca não compartilhada, apenas disponível ao uso de um único indivíduo ou grupo, compromete algo substancial de seu sentido. Por mais que, em meu caso específico, este compartilhamento tenha sido levado razoavelmente a sério ao longo de todos estes anos nesta empresa vital (discentes que entram em contato com os livros, os tocam, cheiram, leem, tomam emprestado, efetuam tarefas e avaliações coletivas democratizando seu uso), é preciso, sempre, ter em mente que o mundo é bem maior que a universidade. Ainda pertenço a uma última geração docente (espero, do fundo do coração, que tenha sido a última com este pensamento) a dividir o mundo em duas grandes metades: o dentro e o fora da universidade federal onde trabalham. E, corolário: a divisão humana em quem está dentro ou fora deste espaço especifico que nós, de tão absortas(os) em sua rotina, tomamos como equivalência do mundo. Neste sentido, o Podcast Anansi se requer uma partilha da biblioteca hospedada na mesma sala onde repousa a discoteca básica do Clube do Vinil; a sala como espaço de diálogo e partilha com espaços maiores que ela; o setor em que trabalho, em uma universidade pública, tentando se abrir como espaço de diálogo e partilha com espaços maiores que ele – e, nos pensando como docentes, a consciência de que existe mundo fora dele, que existem espaços maiores que ele.

Por sua vez (e relacionado a ambas iniciativas de extensão acadêmica), as redes sociais me têm ocupado mais nos últimos tempos, em um uso dedicado à discussão e divulgação científica. Se, enquanto indivíduo, me comporto e me movo no mundo virtual (no físico, também, de certa forma) como um usuário low profile flopado, sem interesse algum em expor dimensão alguma de sua vida pessoal, tenho buscado novas possibilidades neste domínio de divulgação científica. Não uso Whatsapp, por exemplo (por não dispor de saúde mental suficiente a esta rede; e por sua parcela de responsabilidade neste atoleiro macropolítico em que nos encontramos); tampouco Instagram, por não compreender sua linguagem e seus códigos; nem apepês de quaisquer redes sociais em meu telefone celular. Meu perfil pessoal de Facebook tem servido, unicamente, para anunciar episódios novos do Clube do Vinil. Em contrapartida, amo Twitter e o tenho utilizado, especificamente, para seguir perfis de pessoas negras ou coletivos de ativismo negro, aprendendo com eles para levá-los (conteúdos e, eventualmente, as pessoas) aos espaços de ensino, pesquisa e extensão. Ademais, não tenho perfil de Instagram mas nosso Projeto de Pesquisa, sim: <@nucleoifarada>; se dedica a uma função semelhante, de modo a integrar redes negras de produção, discussão e compartilhamento de conhecimento. O time do Projeto, de posse de acesso ao perfil (e, diferentemente de meu caso, alfabetizadas nesta rede), se entregam ao ofício de divulgação científica mediante o perfil de Instagram e o perfil de Twitter do Projeto: <@projetoteseu>.

 

4. Qual sua cantora e seu cantor favorito? E qual o show que mais marcou você que é colecionador de discos de vinil?

Sobre a relação com discos de vinil, o programa mudou, ao longo dos anos, tanto o modo de apreciá-los quanto de adquirir novas peças velhas à coleção: chegar à feira em alguma cidade latinoamericana e, entre os álbuns que passam ao olhar, se defrontar com um que “Nossa, isso dá um programa!” como critério para levá-lo. Em alguns momentos, a velocidade de compra supera a de escuta (como o que nos passa, frequentemente, na relação com livros). Alguns discos anteriores passaram a ganhar um sentido novo quando lidos pela chave de leitura do programa, das rotinas da Rádio, do planejamento de tudo.

Contudo, aquilo que repousa na base de minha própria formação musical, como ouvinte de rádio, por vezes difere bastante das escolhas semanais do Clube do Vinil. Se, na infância  ena adolescência precoce, trazia uma herança paterna de repertório de Jovem Guarda e de Roberto Carlos – sem jamais a abandonar; se, na adolescência tardia, cheguei a ter todos discos de Dire Straits e todos de Elton John antes de sua operação de cordas vocais (boa parte destes últimos, seguindo na coleção, hoje); se a vivência na Universidade Federal do Rio Grande do Sul trouxe o repertório de música brasileira própria a estes espaços de sociabilidade (uma certa ideia de MPB dos anos 70; e alguns de seus diálogos com música dos anos 2000), assim como o início da motagem da atual coleção básica do programa; se, ao final da graduação, eu colecionava discos de novelas dos anos 70, naquilo que eles implicam em uma formação musical básica – e, no mais das vezes, inconsciente – ainda vigente em nosso país (seguindo a tese de Nilson Xavier em seu sítio http://teledramaturgia.com.br/ ); 

com todos estes ses, 

no momento de minhas próprias escolhas, como ouvinte físico portador de CPF e de um imaginário moldado pela ascensão de rádio e de televisão dos anos 70, 80 e 90; no momento de minhas  próprias escolhas musicais, três têm sido as linhas daquilo que toca mais na intimidade. Primeiramente, com muito espaço, um repertório de love songs, nacionais e internacionais, em um estilo bem próximo daquela rádio teresinense que, nos últimos meses, se tornou a coqueluche do momento; tenho uma lista inteira disso, salva no Spotify, chamada “Love songs nojentas”, até seguida por algumas pessoas, que costuma funcionar como ruído branco durante turnos de trabalho. Tem muita importância, também, nos últimos dez anos, um repertório de música da pampa, tomada como um lugar no mundo muito específico. Repertório de corte folclórico, vigente, se renovando permanentemente na Argentina e, em certa medida, também no Uruguai e desde alguns nomes do sul do Rio Grande do Sul (Pirisca Grecco, com grandissíssimo exemplo contemporâneo). Mais antigamente, destacaria, nesse sentido, a geração em torno da primeira formação portoalegrense do Paralelo 30, dentre os quais aprecio, mais que todos, a figura de Raul Ellwanger como, talvez, um dos artistas brasileiros mais empenhados em uma ideia de música de las Américas – cantou em dueto com Mercedes Sosa e com Pablo Milanés, compôs em espanhol e em portunhol, organizou xous no Uruguai, compôs canção a Nicarágua. Dignos de menção, ainda, os demais irmãos de Vitor Ramil, em seus primeiros anos de carreira, na formação do Almôndegas – deles, o disco Alhos com bugalhos, de 1977, consiste em uma das peças com maior valor afetivo da coleção toda. Esta herança gaucha vem, diretamente, desde meu ex-cunhado Daniel Hennemann, como resultado de minha vinda ao Piauí e as mudanças no modo de perceber a pampa, o sul do mundo, uma vez fora dela: de “tradição inventada” ao melhor estilo de Eric Hobsbawn, a pampa passou a espaço decisivo em meus modos de estar-no-mundo não apenas na música mas em como me visto, em como me exprimo quando inevitável, em como escolho interior da Argentina, Montevideo ou sul do Paraguai como lugares para estar quando não estou aqui. 

 

5. Pra finalizar, quais livros escrito por uma negra  um negro brasileiro todos nós deveríamos ler para nos conhecermos melhor como povo?

Dia desses, um pouco no clima da gravação dos dois pilotos do Podcast Anansi, passei um tempo precioso na companhia de Quando me descobri negra, de Bianca Santana; hoje, particularmente, essa circunstância se mostra atual, dada a repercusssão da 44ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Talvez este livro de Bianca Santana, assim como, por exemplo, uma tradição contemporânea de contística negra brasileira, na qual Olhos d’água pode nos fornecer um bom exemplo (percebemos a repercussão e distibuição da obra de Conceição Evaristo no momento em que seus exemplares nos chegam com o selo do Programa Nacional do Livro Didático), poderia iniciar um tratamento a tua ótima questão, sobre nos conhecer melhor como povo. Um dado fundamental na base deste problema, com força para mover nossas lutas a este respeito: gente preta, racializada, não cabe em uma ideia circulante de povo, no Brasil. Nossa presença, nossas agências, nossas resistências, nosso estar-no-mundo nos constroi como parte desta ideia de povo; mas, a quem nos racializa (e que, frequentemente, se apresenta como interlocução privilegiada de nosso discurso), ainda não está assegurada nossa humanidade; e, levando o tempo que seja necessário à garantia indubitável de nossa humanidade (que, em uma visão pessoal e pessimista, estaria pronto a dizer que ainda estamos deveras distantes; que, provavelmente, não acompanharei este estágio em vida), só e somente só após isso, poderíamos passar a discutir, de modo pertinente, nosso lugar nesta empresa de nos conhecer melhor como povo.

Evidentemente, há muita literatura negra em curso, neste momento, difundida por políticas editoriais renovadas e por uma atação crescente em redes sociais; contudo, acompanhando mais de perto resultados de pesquisas desenvolvidas pela equipe de nosso Projeto; e pensando, igualmente, nestes dois fatores supracitados como facilitadores ao acesso a esta literatura (novas traduções de literatura e de pensamento de mulheres negras, implicando a proposição e difusão de novas pesquisas a seu respeito; projetos macro- como a Biblioteca Assata Shakur, o Lendo Mulheres Negras, a Winnieteca); pensando nestes fatores, recomendaria um conjunto de contística de mulheres negras contemporâneas (além de Conceição Evaristo como uma espécie de metonímia desta literatura: Cristiane Sobral, Miriam Alves, Geni Guimarães, por exemplo) e um conjunto de romances negros contemporâneos não apenas de Eliana Alves Cruz mas, igualmente, de novas obras literárias negras nordestinas encontradas em perfis de Twitter como Resistência Afroliterária ou Impressões de Maria, para citar dois exemplos, assim como nos podcasts que dialogam com estas iniciativas). Começar por Conceição Evaristo e por estas mulheres negras supracitadas ofereceria um caminho ao início de uma resposta à pergunta.


sexta-feira, 27 de março de 2020

O conceito de humanidade em tempos de pandemia


Esses dias a noção de humanidade foi renovada. Não é todo dia que isso acontece. No dia a dia somos pouco coesos, tanto pela pluralidade como pela divergência. Uma historiadora que costumamos utilizar na especialização em direitos humanos Esperança Garcia (PI), chamada Lynn Hunt, defende a ideia de que a auto evidência (a obviedade, digamos) desses direitos foi algo construído com o tempo, às custas de um trabalho intenso do exercício de empatia e solidariedade, estimulado na esfera pública: mercados, cafés, ou qualquer local que as pessoas se reunissem para contar histórias e se condoer com as personagens delas, sendo reais ou não, sendo da sua classe social ou de outra, de seu gênero ou de outro, de sua raça e etnia ou outra- aí eu incluo até a fofoca de boa fé. O Rorty, que é um cara que eu estudei na filosofia, vai dizer que a humanidade não existe. A leitura que eu faço é que, nesse sentido, a humanidade não existe a não ser que você diga que grupo de humanos é esse- brasileiros ou chineses? Sempre achei um pouco pobre essa saída do Rorty. Não sendo a humanidade uma abstração permanente e distante, ela é, contudo, uma REALIDADE manifesta em nossa contiguidade como espécie. E eu invoco a pandemia do coronavírus como fundamento para essa afirmação. Se havia alguma dúvida de que havia uma humanidade entre todas e todos nós, o vírus veio tirá-la da frente. A característica da sua aleatoriedade, ainda que tomemos muitas precauções, exige que seja repensado a absurda continuidade da aplicação do neoliberalismo nas economias dos países: eu preciso salvaguardar a todos, já que não sei quem poderá ser atingido (um desconhecido, ou meu pai?). Basicamente um véu da ignorância de John Rawls, liberal que faz muita falta aos liberais do Brasil. Pensar cada ser humano como parte dessa humanidade nos ajuda a levar adiante iniciativas que mitigam os efeitos danosos dessa aleatoriedade da doença (que, contudo, afeta mais gravemente pessoas já debilitadas), como a renda básica universal, que está em vias de aprovação no congresso nacional, uma da poucas medidas de amplo alcance que estão sendo aplicadas. Infelizmente, o líder da nação e as pessoas que o seguem, não se reconhecem nessa noção de humanidade compartilhada. Acreditam pertencer a uma casta superior aos meros mortais, por isso não se protegem e ainda atrapalham quem tenta se proteger da pandemia. Acreditam-se inatingíveis. Eu suspeito que o COVID-19 não foi avisado a respeito dessa pretensa blindagem e vai continuar lendo “humanidade” escrito na testa deles. Muitos serão forçados a lembrar da nossa contiguidade como espécie. E não vai ser bonito.

Harmonia Rosales- Mulher vitruviana [uma outra humanidade é possível]


segunda-feira, 21 de outubro de 2019

No consultório com Frankenstein

Hoje eu estive pensando sobre ser uma boa pessoa.
E isso você retirou de algum livro de filosofia?
Não, tirei de um livro de terror.
Faz sentido. Vai me contar o título?
Sim, Frankenstein.
E o que você concluiu?
Há um trecho lá que diz expressamente que só é possível avaliar se se é uma boa pessoa alguém que  encarou a vida fora das expectativas alheias.
Não lembro desse trecho...
É porque está nas entrelinhas, você está com o mau costume dos livros acadêmicos.
Desculpe...Devo estar mesmo. Mas então não decorre que aquela que encara a vida seja boa, mas apenas que pode começar a ser inquirida a respeito da bondade ou não de seus atos.
É isso. Você fala tão bonito... Contudo, não pensei boa coisa a respeito dos que sequer ultrapassam aquele limite.
Se não podem ser avaliados, seriam amorais?
Não, ainda estou falando de Shelley. Seriam o monstro antes de ter buscado educar-se e arrisco dizer que seriam, também, a noiva de Victor, não lembro o nome dela...
Nem eu... E quanto a mim? Você acha que sou uma boa pessoa?
Não parei para pensar no seu caso, mas em geral todos achamos que somos boas pessoas, não?

Foto alterada de duas páginas do livro mencionado- A anatomia de um torso e o título  da obra, com o nome da autora.



sábado, 1 de junho de 2019

Relva ignara








Abaixar-me rente ao chão

Esticando o espírito na brisa certa...



Esconder-me debaixo do galho da quebra—pedra 
Me dar tempo para pensar.



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