sábado, 5 de abril de 2025

Lendo o Coração das Trevas em 2025

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Terminei de ler ontem Coração das trevas (1899), do Joseph Conrad. Do autor, eu só havia lido A Juventude. Essa edição da companhia das letras tem 214 páginas, reúne a história principal e um conto, além de um posfácio muito interessante. 

O livro ficou particularmente famoso na época, por ser uma denúncia das práticas coloniais da europa, especialmente no Congo, que havia caído nas mãos do sanguinário rei Belga Leopoldo II. Apesar da história ocorrer antes do recrudescimento do que já era a barbárie branca, se passando antes do terrível ciclo da borracha, ela teve uma recepção em um meio que já discutia, pelo menos formalmente, o fim da escravidão no mundo inteiro, sendo o próprio Brasil considerado uma vitória desse movimento, com o fim do tráfico negreiro em 1950 (com muitas aspas). 

Depois a fama se consolidou quando esse livro foi adaptado em Apocalipse Now (1979), onde em vez do Congo, tem-se o Vietnã. 

Da minha parte eu achei a escrita de Conrad de qualidade, melhor do que eu lembrava. Há uma mistura entre o narrador e o personagem narrador, muitas vezes, no que ele foi muito sagaz, porque dá espaço para que eu pense que, apesar de alguma boa intenção de Marlow, ele é europeu branco, ainda que não seja de uma elite de fato, ele não consegue se expressar sem passar incólume pelo asqueroso imaginário supremacista e irremediavelmente incapaz de respeitar o Outro em sua diferença. São momentos pontuais, mas que convergem com o personagem que é o vilão da história, o senhor Kurtz. No final das contas, [spoiler] Marlow se reconhece como discípulo de um Kurtz já podre de morto.

É chocante refletir, mais uma vez, a respeito da atmosfera de ignorância e manipulação, que estimulou o medo e a violência, mobilizando contingentes humanos a perseguir, sequestrar, torturar, estuprar e matar pessoas negras por mais de 300 anos.

A esfera pública europeia, ao mesmo tempo que sentia (finalmente) uma vergonha na cara (vou deixar a intenções para outra oportunidade), demorou uns bons anos para conseguir retirar o poder do rei Leopoldo, que havia sido autorizado pelas maiores nações do mundo décadas antes. E nem vamos entrar no caso das lutas coloniais do século XX (aí a dica que o comentador dá do filme). Quer dizer, não era o lombo deles e nem a terra deles e nem o braço deles sendo decepado. 

Apesar de tudo isso, eu ainda acho que valeu a leitura. Porque o Conrad, ele também era alguém no meio do caminho, ele não era bem um europeu inglês ou francês, por exemplo. Ele era polonês (que não era um estado ainda) e ucraniano (que eram perseguidos por uns 3 impérios), antes de se naturalizar inglês. Então ele bem pode ter desenvolvido um modo de percepção que é dentro e fora desse grupo violento.

Na edição passada eu recomendei um podcast que pode ajudar a trazer o contexto brasileiro da época, para o que o livro denuncia sobre o Congo do século XIX. 

Finalizo afirmando que “O horror! O horror!” nada mais é que a alma colonial expressando sua, mais uma vez, incapacidade de sentir empatia, de enxergar grupos com modos de vidas diferentes como humanos e ser capaz de fazer algum tipo de troca real, seja material, afetiva, saberes. Realmente pavorosos, um HORROR.

Ps. Eu nem falei do Kurtz direito, porque eu ainda preciso de tempo pra passar a raiva.

Pps. O conto ao final é muito bom.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Li no final de semana 📚

 

Nesse final de semana, eu terminei de ler dois livros que me deixaram reflexiva, com os olhos marejados, mas menos dolorida do que pensei que ficaria.

O primeiro deles é já bastante conhecido, há pelo menos um século, que é a "Carta ao pai do Kafka", que não é bem texto literário no sentido estrito mas é um texto que passa por várias classificações, sendo principalmente um texto biográfico. Nela lemos uma resposta de Kafka ao tratamento que o pai lhe dera toda a vida. Fala da relação dele com pai, de como mesmo aos 36 anos ele ainda não conseguiu elaborar suficientemente, nem superar, se é que era para isso acontecer. Um pai agressivo, um pai fruto do machismo da época, da nossa sociedade patriarcal, seja por conta da religião, por conta de condições econômicas, sociais, um tipo de masculinidade que só saberia ser violenta, bruta, quase sem demonstração de afeto pelos filhos. Ao mesmo tempo, se eu for considerar apenas a descrição da personalidade, era uma bastante expansiva, de modo a obrigar a todos o seu modo, esmagadora, como Kafka acusa.O que mais me chamou a atenção foi a extensão dessa carta nunca entregue e como ele pesou seus argumentos e a possível resposta do pai. É possivel sentir a angustia que essa presença impunha na vida mesmo do Kafka adulto. 

O segundo livro, "O rio que me corta por dentro", foi como fazer uma viagem pela história da minha família, há poucas gerações atrás, talvez da família de muitas pessoas de um certo Brasil. Um autor tão jovem, conseguiu escrever em 127 páginas uma história rica de acontecimentos, de afetos de verdade e delicadeza, mesmo diante de muitas violências acumuladas ao longo dos anos, ao longo dos nascimentos e das mortes não explicadas até que um dia se encontra uma explicação. Fala do amor de uma mãe, impedida por questões maiores do que ela mesma: mais uma vez o patriarcado, suas condições econômicos, não podendo ficar com filho dela, mas sempre voltando no final do ano, até que não volta mais... Fala de um amor entre dois amigos, que nasceu desde uma infância compartilhada no meio do mato, da natureza, da vida na simplicidade e que a mesma vida tratou de embaralhar tão tragicamente como uma peça de Shakespeare ou uma Fantasia Chinesa Danmei. Fala do amor de um aluno por sua professora que lhe ensinou as letras e uma outra camada de acesso aos próprios sentimentos, no meio de toda essa brutalidade... 

Falar de família parece uma fórmula fácil, para incitar sentimentos profundos no leitor e na leitora, não importa se esses sentimentos não são tão bons, porque todo mundo veio de algum lugar, mesmo que não seja familia de sangue, ou mesmo uma familia sequer, e mesmo uma família judia, na distante Europa do início do século XX ou de uma família do interior do nordeste nas década de 60 ou 90. Há em ambos uma enxurrada de emoções, uma necessidade desesperada de se sentir amado e de amar, de pertencer a um lugar, que pode ser um lugar-pessoa, que nos respeite. Às vezes isso não é possível...e às vezes é... 


O próximo livro que quero ler do autor é esse do link 




Carta ao Pai- Companhia das Letras 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Mudando a narrativa: sobre DeepSeek e IA. (tradução)

o logo da deepseek é uma baleia em azul


Por Karen Hao/@karenhao.bsky.social

27 de janeiro de 2025 às 11:12

(de um fio do bluesky)


Como alguém que cobriu o tema da Inteligência Artificial por 7 anos e os assuntos de tecnologia da China também, acho que a maior lição a ser tirada do DeepSeek são as enormes rachaduras que ele ilustra, diante do paradigma dominante atual do desenvolvimento de IA. Um longo tópico. 

Primeiro, o que é a DeepSeek? É uma empresa chinesa que foi capaz de produzir um modelo de IA de código aberto com aproximadamente 1/50 dos recursos dos modelos de última geração, mas ainda assim superou o 01 da OpenAI em vários benchmarks [indicador de desempenho]. 

Grande parte da cobertura [jornalística] tem se concentrado na competição tecnológica EUA-China. Isso ignora uma história maior: a DeepSeek demonstrou que escalar modelos de IA implacavelmente, um paradigma que a OpenAI introduziu e defende, não é a única, e nem de longe a melhor, maneira de desenvolver IA. 

Até agora, a OpenAI e seus peers scaling labs [grupos de influência da área] têm procurado convencer o público e os formuladores de políticas de que o escalonamento é a melhor maneira de atingir o chamado AGI (Inteligência Artificial Generativa).

Este sempre foi mais um argumento baseado em negócios do que em ciência.

Existem evidências empíricas de que o escalonamento de modelos de IA pode levar a um melhor desempenho. Para as empresas, essa abordagem se presta a ciclos de planejamento trimestrais previsíveis e oferece um caminho claro para vencer a concorrência.

O problema é que há uma miríade de enormes externalidades negativas ao adotar essa abordagem, e a menor delas é que você precisa continuar construindo enormes data centers, o que exige o consumo de quantidades extraordinárias de recursos. Muitos jornalistas escreveram extensivamente sobre essas externalidades [esse é um termo usado na economia e na ciência do clima, por exemplo].

Quando esses enormes data centers são instalados na cidade, eles consomem muitos recursos. Eles pegam água potável- sim, ÁGUA POTÁVEL, por conta da qualidade da água exigida para resfriar esse avanço tecnológico que ameaça aumentar o preço da água para as famílias...

Esse modelo estende a vida útil da indústria de carvão e petróleo, piora na qualidade do ar (segundo @evanhalper.bsky.social do @washingtonpost.com) - não apenas porque os combustíveis fósseis são a maneira mais rápida de aumentar o fornecimento de energia, mas porque as instalações têm que funcionar 24 horas por dia, 7 dias por semana, e isso não é possível apenas com energias renováveis intermitentes.

Depois, há os impactos globais. Mais carvão e gás significam mais emissões de carbono, acelerando nossa crise climática. Daí o motivo pelo qual o Google e a MSFT tiveram um salto de ~50% e 30% nas emissões desde 2019 e 2020, respectivamente (de @darakerr.bsky.social em @npr.org). 

OpenAl & co criaram um argumento engraçado sobre o porquê de aceitar essas externalidades: sim, infelizmente, há perdas no curto prazo, eles dizem, mas elas são necessárias para atingir a chamada AGI; a AGI então nos ajudará a resolver todos esses problemas! Então as perdas vale a pena.

Esta linha de pensamento tem sido tão eficaz em capturar a atenção dos poderosos, que o presidente Trump anunciou na semana passada o Projeto Stargate, um investimento privado de US$ 500 bilhões em data centers e outras infraestruturas de computação para a OpenAI.

Se a Stargate seguir adiante com US$ 500, será o maior gasto em infraestrutura da história e acelerará significativamente o ritmo já assustador do desenvolvimento de data center pós-ChatGPT. Por sua vez, isso acelerará significativamente as consequências mencionadas anteriormente.

Agora, além das externalidades negativas sobre o poder do povo, água, ar e clima global, temos outra: a cessão de mais e mais controle sobre a infraestrutura crítica de energia e água para o Vale do Silício. Escrevi sobre isso na semana passada em @theatlantic.com.

Mas o DeepSeek mostra, no mesmo momento do anúncio do Stargate, que a troca do OpenAI & co frame como totalmente necessária na verdade não o é

Espere um minuto. Você quer dizer que não precisamos cobrir a Terra com data centers e usinas de carvão e gás para talvez chegar a um futuro onde podemos acenar uma varinha mágica AGI para fazer todas as consequências disso irem embora? Sim. Essa é uma falsa troca. Vamos deixar essa ideia amadurecendo.

Como eu disse antes, escalar sempre foi mais sobre negócios do que ciência. Cientificamente, não há nenhuma lei da física que diga que os avanços de IA devem vir da escala em vez de abordagens que usam os mesmos ou menos recursos. Escalar é apenas uma fórmula incrivelmente fácil de seguir.

O DeepSeek agora também enfraquece esses casos de negócios que pretendem escalar na infraestrutura. O OpenAI tem queimado somas impressionantes de dinheiro para manter o paradigma de escalonamento e ainda precisa descobrir como equilibrar seus talões de cheque e acontece que nem precisava gastar tanto dinheiro. 

Então, não importa se você é uma empresa nos EUA, China ou outro lugar. O DeepSeek deve ser uma sinal para mudarmos a rota, com toda a força, em direção ao investimento em métodos muito mais eficientes de desenvolvimento de IA. Mesmo que você não se importe com os impactos na comunidade e no clima, é simplesmente um negócio muito melhor.

E se uma empresa não fizer essa alteração da rota, isso deve ser um grande sinal de alerta para sua capacidade de inovar. E não me refiro à inovação de produtos, mas à inovação em como desenvolver modelos de IA. A base de tudo.

Quando trabalhei em uma startup do Vale do Silício, costumávamos chamar um investimento do SoftBank de beijo da morte. O SoftBank injetava tanto dinheiro em startups que isso acabaria completamente com a necessidade dessas startups de inovar ou desenvolver um negócio financeiramente sustentável.

Eles poderiam mascarar toda a instabilidade em suas fundações com as hilariantes e imensas injeções de dinheiro por um bom tempo, mas eventualmente tudo ruiria. A necessidade é a mãe da inovação. Sem necessidade, o impulso existencial para inovar desaparece. 

Estamos basicamente vendo isso de novo. A OpenAI com Sam Altman é tão boa em levantar capital (inclusive agora do SoftBank), que está encobrindo as fraquezas técnicas e comerciais da empresa.

Veja este relatório do @ainowinstitute.bsky.social do @bcmerchant.bsky.social [todos os links ao final].

DeepSeek é o outro lado da mesma moeda: ela inovou por causa das restrições e não a despeito delas. E agora que ela pôs de cabeça para baixo as assunções do paradigma dominante da Inteligência Artificial, nós deveríamos rejeitar esse custo e procurar novas maneiras de desenvolver IA sem tantos danos.


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