quinta-feira, 20 de abril de 2017

Uma entrevista com André Gonçalves

André na sua instalação [ quanta fotografia]. Foto tirada pelo Maurício Pokémon


Na postagem especial de hoje, eu trago o artista que mais apareceu no meu blog desde o início dele. Fiquei bastante feliz e até emocionada com o resultado da conversa (que foi por email, por questões geográficas) e com a disponibilidade do André Gonçalves em atender meu singelo convite em fazer essa participação no Diário, agora como voz ativa.

Espero que curtam como eu curti ler e pensar sobre o que André compartilha conosco:



    [DCPA] Antes de tudo, eu gostaria de agradecer a sua disponibilidade em participar como entrevistado do blog. Faz algum tempo que lhe acompanho como artista e eventualmente algumas obras já foram usadas aqui como “pré-texto” de algumas divagações do Diário, com sua autorização (rs), por isso eu gostaria de frisar minha alegria com a entrevista. Agora posso começar.
A. De nada. 


[DCPA] André, como surgiu essa vontade de se expressar por meio da arte? Houve um momento epifânico?
A. Se houve esse momento eu não percebi. O que lembro, e não sei até que ponto lembro ou preencho lacunas na memória, é que desde muito cedo eu já tinha o hábito de criar imagens e personagens pra mim. Aprendi a ler muito cedo, aos 3 anos já lia frases e aos 5 lia e escrevia, lia inclusive revistas e começava a ler livros. Aos nove eu já fazia textos, arremedos de poemas. Nessa época também ganhei minha primeira câmera fotográfica, dessas de plástico, passava o dia fotografando. Com 12 ou 13 anos acompanhava meu padastro que era fotógrafo de casamentos, e eu segurava o “pau de luz”.  Além disso fui criado sozinho, e brincava comigo mesmo. Imagine, eu jogava War sozinho, sendo, ao mesmo tempo, 5 ou 6 jogadores. Era algo até meio esquisito, eu fazia disputa de pênaltis comigo mesmo, era ao mesmo tempo goleiro e batedor, chutando a bola na parede e tentando defender. Então, tudo isso me leva a crer que nunca houve “um” momento: isso de criar personagens, histórias, imagens, vem mesmo desde muito cedo, quase que como uma necessidade para sobreviver a uma infância bem solitária e com momentos bem difíceis.

     [DCPA]Lembrando do seu trabalho, que passeia pela fotografia para publicidade, fotografia enquanto arte, literatura, instalações artísticas, pintura: haveria uma hierarquia entre essas suas escolhas no sentido de que uma delas ocuparia o lugar de destaque dentre as demais? Se existe, qual delas e por quê?
A. Não vejo nenhuma hierarquia, não que saia de mim, pelo menos. Talvez alguém, olhando de fora, perceba algo. Não tenho nenhum rigor para quase nada na vida, então isso também vai acontecendo. Tem dias que fico louco para fazer uma imagem com a câmera, às vezes passo 6 meses sem nem olhar para ela, é um objeto estéril. Às vezes passo dias intermináveis lendo, querendo escrever, e acontece de passar 2, 3 meses sem abrir um livro (digo, abrir de forma “ordenada”, ler inteiro), fico vendo um trecho aqui e ali, lendo na internet. Então, não tenho nenhuma hierarquia. Na verdade eu não suporto hierarquias, luto intimamente comigo mesmo para sobreviver a cada dia nesse mundo tão hierarquizado.  Às vezes é bem complexo acordar, passar o dia e chegar à hora de dormir. Até nisso “desierarquizo”, às vezes. Às vezes decido não dormir, e pronto: porque, sou mesmo obrigado a isso? 
     
     [DCPA]  Até o momento, você escreveu dois livros de literatura, fora os livros jornalísticos pela Revestrés. Nos dois livros, fica bem claro seu desapego aos modelos tradicionais da escrita e do formato literário, no “Coisas de Amor Largadas na Noite” nós temos as páginas soltas como cartões e em cada uma das páginas um escrito seu, que pode ser descrito como poesia, mas nem sempre. Eu vejo alguma influência da literatura do século XX nisso, nesse modelo mais fluido, mas também percebo sua habilidade como comunicador na publicidade. Já no "Pequeno dicionário das mínimas certezas", além do texto escrito, também bastante provocador em termos de forma, inclusive tem um que chega ao meio e você precisa lê-lo de cabeça para baixo que eu achei ótimo, a numeração aleatória ou com algum padrão desconhecido, a linguagem com imagens construídas tão repentinamente que umas se sobrepõem às outras ao longo do desenvolvimento do texto e todos esses volteios que, tenho a impressão, dialogam bem com uma parcela da juventude que te consome como escritor, tendo alguns até já transformado em música teus poemas. Eu queria saber três coisas sobre seu processo de escrita: quais suas influências literárias, ou pelo menos, qual o tipo de literatura que te agrada? Qual o conselho que você daria para uma escritora ou um escritor iniciante que gostaria de se aventurar no mundo da criação e publicação literária? Quando teremos um novo livro de literatura seu?

A. Eu sou do século XX, né? Com tudo que isso pode ter de bom e ruim. Nasci em maio de 1968 e desde muito cedo, com aquela curiosidade infantil, fiquei sabendo que era uma época muito simbólica, e certeza que isso interferiu demais em mim, mesmo que eu nem entendesse bem o que significou maio de 1968 naquela época. Claro que a literatura do século XX grudou em mim. Em Minas tive um contato bem cedo com Roberto Drummond, cheguei a conhecê-lo pessoalmente ainda garoto, lia os livros dele e tive um encontro emblemático com ele quando eu tinha uns 12 ou 13 anos, que me marcou profundamente. Para dar uma ideia, ele perguntou se eu lia os livros dele e eu citei de cor duas páginas inteiras de Sangue de Coca-Cola, e ele ficou um tanto abismado. De algum modo tentei imitá-lo, escrever como ele, e daí a coisa foi se tornando algo que ia aglutinando as referências dele, Roberto, e você sabe: é como quando se lê um livro de filosofia, por exemplo. Você lê, diz “uau, sei de tudo” e chega à bibliografia: aí tem mais 50, 60, 70 autores que você precisa ler, que são as referências daquele que você acabou de ler, e aí você volta a se sentir quase um analfabeto. Isso foi acontecendo, e alguns escritores em especial foram me formando “enquanto pessoa”. Vou citar alguns, mas vou esquecer de algumas dezenas: Cortázar, Borges, Bioy Casares, Saramago, Carlos Drummond, Ana Cristina César (que conheci em mais uma coincidência quando eu era criança, em Brasília), Manuel Puig, Caio Fernando Abreu, Leminski, o próprio Roberto Drummond, Rubem Fonseca, Garcia Marquez, Neruda, Alejandra Pizarnik, Carlos Eduardo Novaes, Luís Fernando Veríssimo, um pouco de Machado de Assis, um pouco de Guimarães Rosa. E ainda um Sidney Sheldon, de vez em quando. Perceba que tem muitos argentinos. Fui vizinho de argentinos, minha avó viajava com frequência para a Argentina, então eu me considerava quase portenho, e isso me trouxe a literatura argentina. Adolescente, li Henry Miller (Sexus, Nexus e Plexus), o que era meio “pesado” para quem tinha 13, 14 anos . E a partir dele li mais alguns beats: Kerouac, Allen Ginsberg, Neal Cassady. Então, veja que eram muitos e, ainda hoje, é uma literatura não muito “comportada”, digamos. Só depois de adulto cheguei a alguns clássicos, à literatura europeia, além de filosofia, psicanálise, psicologia, etc. Mas tudo muito aleatório, sem grande ordenamento nem orientação de ninguém. Tenho buracos enormes na minha formação literária. Digamos então que, com toda a modéstia que é possível, essas pessoas formaram uma “base”, não apenas literária, mas existencial. Como disse, fui muito solitário na infância, e esses eram meus amigos e amigas. Com elas e eles aprendi sobre amor, sobre vida, sobre amor, desamor, hierarquia, desierarquia, medos, valores, tristeza, melancolia. Não tem como, mesmo com uma certa avalanche de leituras posteriores, deixar de perceber que desde uma forma de escrita (pretensiosamente falando, já que tenho dois livrinhos, apenas) até a busca dessas falta de ordem: numeração de páginas trocada, histórias entrecruzadas, textos “sem começo”, ou sem linha mestra. O que eu li nessa fase, e eu lia às vezes dois ou três livros de uma vez (hoje estou bem preguiçoso), me formou como cidadão e todo meu “ideário” surge a partir deles e delas.
Quanto a conselhos, sou incapaz de dá-los, ao menos de forma “séria” ou “profunda”. Digo apenas para procurarem sua verdade. Fazerem como e o que quiserem e os fizer felizes. O resto, não importa. Não fazer do criar um “negócio”, mais do que um momento de libertação. Se isso é um bom conselho, depende de quem lê. E sobre um novo livro meu, não sei. Tentei fazer um romance, mas sou um desastre para ter a disciplina necessária para isso, ainda. Vamos ver um dia se sai algo, se possível melhor que o que já fiz. Mas, no mínimo, se sair, eu terei sido verdadeiro com o que sair.

      [DCPA] Agora sobre as artes plásticas, que apesar de ser sua incursão mais recente em termos de arte, me sugere uma certa conexão, mesmo que por meio de um salto, com o trabalho que você vinha desenvolvendo com a fotografia, já que ambas apelam para um certo grau de abstração, a fotografia eventualmente e a pintura, sempre. Então: por que o abstrato? Você poderia falar um pouco dos artistas que te inspiram na pintura? Como você tem percebido a relação do seu público com sua obra mais recente?
A. Não pensei sobre isso, mas acredito que haja, sim, uma conexão forte. Durante um bom tempo tive a ilusão de que ser fotógrafo era ser Bresson, o que, claramente, é impossível. E limitador. Hoje, com a fotografia expandida e todas as convicções virando pó (eu falava sobre isso há 20 anos, o fim das convicções, e olha como isso chegou), a gente vê que é impossível ser uma coisa só, “a fotografia” são muitas e, de certo modo, radicalizando um pouco, nem dá para afirmar com certeza de que ainda existe “A” fotografia. Isso abre espaço para que possamos ser nós mesmos, e não novos “Bressons”. Clicar subjetividades, transformar a realidade ao invés de retratá-la, ou mais ainda, criar uma não-realidade maravilhosa para se viver. Ou seja: a fotografia, se ainda a chamamos assim, se liberta definitivamente da obrigação documental que muitos ainda impunham a ela, e se torna imagem, o que faz, dela, qualquer coisa que se queira. Então chegamos a um certo estatuto “mole” da fotografia contemporânea, que se liberta também da eterna discussão “é arte x não é arte” e vai além de qualquer definição clara. Quanto a meu fazer arte, posso dizer que só foi possível quando percebi essa libertação em mim mesmo. Um dos lados ruins do século XX foi uma tendência a tentar definir algumas coisas dentro de estruturas rígidas, de certo modo um contrassenso histórico, né? Então eu nunca me senti “artista”. Sempre fui algo paralelo, que caminhava ao lado flertando com o fazer artístico, mas nunca me pensei “artista” porque veja, eu mal sei desenhar um círculo, e por muito tempo me disseram que para ser artista era preciso desenhar círculos perfeitos, corpos humanos irretocáveis, saber a escala cromática mesmo de olhos fechados, e por aí vai. Descobri ficando mais velho que não é isso “A” arte. Porque, talvez, ela não “seja” nada. Há pouco tempo decidi que não interessa o que pensem, eu sou artista – mas também posso não ser – dependendo, apenas, do que penso e faço a esse respeito. Você pergunta porque o abstrato, e mais uma vez não sei explicar. De novo, acho, são as questões pulsantes no século XX me pegando pelo pé. Sempre gostei dos artistas e dos movimentos do pós-guerra – o expressionismo abstrato norte-americano de Franz Kline, Rauschenberg, Pollock, De Kooning, Rohtko, Reinhardt; o tachismo europeu de Soulages, Hartung, Tápies; desobri os coreanos do Dansaekhwa, como Lee Ufan e Park Seobo; o movimento Gutai do Japão; - todos eles se ligando, de alguma maneira, pela recusa à forma figurativa, pela crítica às belas-artes, pela valorização do gesto e se contrapondo a qualquer formalismo, no caso dos japoneses e coreanos de alguma forma também ligados a alguns norte-americanos a busca pelo mínimo, seja em cores ou gestual, além de materiais fora da produção industrial ou “caros”. Acho que aí chego também no lugar de recusar as formalidades e hierarquias, e instintivamente, claro, tento me aproximar deles. Mas é ainda um momento de estudos, de busca, ainda em busca da minha verdade e do meu fazer como artista visual. Já sei muito claramente o que não quero, mas ainda não cheguei a definir algo que queira. E ainda tem as frustrações do não ter habilidade para algumas coisas e ter para outras: quero dizer que muitas vezes quero algo mas nunca conseguirei fazê-lo, então vai por ai também a busca dessas “verdades”. Descobrir o lugar onde meu querer se cruza com o meu conseguir fazer. No fim das contas, o mais importante é mesmo o caminho, é nesse caminho que a gente se diverte e sobrevive. Chegar a um ponto determinado anteriormente é algo bem utópico e, talvez, meio sem graça. Sobre a relação com o público preciso, antes, ter um “público”. Não sei se já o tenho e, mesmo que tenha, não tenho condições de falar sobre. Quero que esse público se relacione com o que faço, porque será nessas coisas que eu estarei. Gostaria que um dia as pessoas possam se relacionar com meu trabalho. Eu, eu mesmo, não importo. Eu sou aquilo que está exposto nisso que chamam de minha “obra”. Todas as minhas contradições e dúvidas e convicções que se dissolvem e se tornam outras estão ali.

 [DCPA] Sobre seu trabalho com criação e divulgação de arte e cultura, você vê caminhos possíveis do artista sobreviver do trabalho dele mesmo em um estado com recursos escassos como o nosso?

O que tenho visto é gente criando e produzindo independentemente da certeza de viver desse ou daquele modo. A experiência da Revestrés tem me mostrado muita, muita gente maravilhosa jogando suas verdades, seus sonhos, suas vidas no fazer artístico, e isso emociona quando se sente essa tal verdade na criação. Não posso dizer qual o caminho ideal, nem se a arte como modo de produzir possibilidades de sobrevivência material é algo assim ou daquele jeito. São questões que me afligem no dia a dia, como observador, como divulgador, como espectador ou como artista, mas não consigo fechar uma equação. Não sei se um dia “o artista”, esse ser um tanto genérico, poderá sobreviver dentro de padrões e expectativas sociais. Certamente alguns sim, muitos não. Uns vão abandonar a arte por necessidade material, outros vão abandonar o material e dar a vida pela arte. Alguns devem ficar ricos, outros, a maioria, talvez não. Acredito, sim, que o Estado tem a obrigação de apoiar os fazeres artísticos, porque nem tudo que se produz em arte – talvez a grande maioria da produção artística – não tem nem deverá ter “valor de marcado”, não será vendida, o artista não poderá viver apenas do que fizer e precisará de apoio. E a busca pela sobrevivência pode atrofiar certas formas de criação. No fim de tudo, acredito mesmo que quem sobreviverá será a arte. O poder público tem de pensar a arte não como produto nem como mercado, porque isso é a lógica de outra esfera, de outro campo. A arte é maior que qualquer mercado, por mais que existam mercados que façam circular fortunas por obras de arte, nem todas sendo arte. Os artistas, ricos ou não, com grandes resultados de mercado ou com grandes obras fantásticas porém esquecidas, vão passar. Só a arte não passa. Daqui a mil anos só o que for arte verdadeiramente falando vai estar aqui, se não fisicamente (afinal, pode haver arte sem objeto), como experiência inesquecível, ou simbólica, ou transformadora. E isso tem de ser pensado, preservado, compreendido. Outro dia alguém me disse: “porque você não assina seus trabalhos? Daqui a cem anos ninguém vai saber quem fez”. Respondi que, daqui a 100 anos, não farei a menor questão de que saibam que fui eu quem fez isso ou aquilo, já que estarei morto. Se o que fiz estiver ainda ali e despertando algo em alguém, eu estarei. Pensar nessa possibilidade, que é até remota, me basta, me move.


Para quem ainda não conhece. O trabalho do André pode ser apreciado nas redes sociais abaixo:
 http://cargocollective.com/andrepiaui

https://www.instagram.com/andrepiaui/

https://www.flickr.com/photos/andrepiaui

E claro, a maravilhosa Revestrés:  http://www.revistarevestres.com.br/ http://www.revistarevestres.com.br/blog/andregoncalves/

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