André na sua instalação [ quanta fotografia]. Foto tirada pelo Maurício Pokémon |
Na postagem especial de hoje, eu trago o artista que mais apareceu no meu blog desde o início dele. Fiquei bastante feliz e até emocionada com o resultado da conversa (que foi por email, por questões geográficas) e com a disponibilidade do André Gonçalves em atender meu singelo convite em fazer essa participação no Diário, agora como voz ativa.
Espero que curtam como eu curti ler e pensar sobre o que André compartilha conosco:
[DCPA] Antes
de tudo, eu gostaria de agradecer a sua disponibilidade em participar como
entrevistado do blog. Faz algum tempo que lhe acompanho como artista e
eventualmente algumas obras já foram usadas aqui como “pré-texto” de algumas
divagações do Diário, com sua
autorização (rs), por isso eu gostaria de frisar minha alegria com a
entrevista. Agora posso começar.
A. De nada.
A. De nada.
[DCPA] André, como
surgiu essa vontade de se expressar por meio da arte? Houve um momento
epifânico?
A. Se houve esse momento eu não percebi. O que
lembro, e não sei até que ponto lembro ou preencho lacunas na memória, é que desde
muito cedo eu já tinha o hábito de criar imagens e personagens pra mim. Aprendi
a ler muito cedo, aos 3 anos já lia frases e aos 5 lia e escrevia, lia
inclusive revistas e começava a ler livros. Aos nove eu já fazia textos,
arremedos de poemas. Nessa época também ganhei minha primeira câmera
fotográfica, dessas de plástico, passava o dia fotografando. Com 12 ou 13 anos
acompanhava meu padastro que era fotógrafo de casamentos, e eu segurava o “pau
de luz”. Além disso fui criado sozinho,
e brincava comigo mesmo. Imagine, eu jogava War sozinho, sendo, ao mesmo tempo,
5 ou 6 jogadores. Era algo até meio esquisito, eu fazia disputa de pênaltis
comigo mesmo, era ao mesmo tempo goleiro e batedor, chutando a bola na parede e
tentando defender. Então, tudo isso me leva a crer que nunca houve “um”
momento: isso de criar personagens, histórias, imagens, vem mesmo desde muito
cedo, quase que como uma necessidade para sobreviver a uma infância bem
solitária e com momentos bem difíceis.
[DCPA]Lembrando
do seu trabalho, que passeia pela fotografia para publicidade, fotografia
enquanto arte, literatura, instalações artísticas, pintura: haveria uma
hierarquia entre essas suas escolhas no sentido de que uma delas ocuparia o lugar
de destaque dentre as demais? Se existe, qual delas e por quê?
A. Não vejo nenhuma hierarquia, não que saia de mim, pelo menos. Talvez alguém, olhando de fora, perceba algo. Não tenho nenhum rigor para quase nada na vida, então isso também vai acontecendo. Tem dias que fico louco para fazer uma imagem com a câmera, às vezes passo 6 meses sem nem olhar para ela, é um objeto estéril. Às vezes passo dias intermináveis lendo, querendo escrever, e acontece de passar 2, 3 meses sem abrir um livro (digo, abrir de forma “ordenada”, ler inteiro), fico vendo um trecho aqui e ali, lendo na internet. Então, não tenho nenhuma hierarquia. Na verdade eu não suporto hierarquias, luto intimamente comigo mesmo para sobreviver a cada dia nesse mundo tão hierarquizado. Às vezes é bem complexo acordar, passar o dia e chegar à hora de dormir. Até nisso “desierarquizo”, às vezes. Às vezes decido não dormir, e pronto: porque, sou mesmo obrigado a isso?
A. Não vejo nenhuma hierarquia, não que saia de mim, pelo menos. Talvez alguém, olhando de fora, perceba algo. Não tenho nenhum rigor para quase nada na vida, então isso também vai acontecendo. Tem dias que fico louco para fazer uma imagem com a câmera, às vezes passo 6 meses sem nem olhar para ela, é um objeto estéril. Às vezes passo dias intermináveis lendo, querendo escrever, e acontece de passar 2, 3 meses sem abrir um livro (digo, abrir de forma “ordenada”, ler inteiro), fico vendo um trecho aqui e ali, lendo na internet. Então, não tenho nenhuma hierarquia. Na verdade eu não suporto hierarquias, luto intimamente comigo mesmo para sobreviver a cada dia nesse mundo tão hierarquizado. Às vezes é bem complexo acordar, passar o dia e chegar à hora de dormir. Até nisso “desierarquizo”, às vezes. Às vezes decido não dormir, e pronto: porque, sou mesmo obrigado a isso?
[DCPA] Até
o momento, você escreveu dois livros de literatura, fora os livros jornalísticos
pela Revestrés. Nos dois livros, fica bem claro seu desapego aos modelos
tradicionais da escrita e do formato literário, no “Coisas de Amor Largadas na
Noite” nós temos as páginas soltas como cartões e em cada uma das páginas um
escrito seu, que pode ser descrito como poesia, mas nem sempre. Eu vejo alguma
influência da literatura do século XX nisso, nesse modelo mais fluido, mas
também percebo sua habilidade como comunicador na publicidade. Já no "Pequeno
dicionário das mínimas certezas", além do texto escrito, também bastante
provocador em termos de forma, inclusive tem um que chega ao meio e você
precisa lê-lo de cabeça para baixo que eu achei ótimo, a numeração aleatória ou
com algum padrão desconhecido, a linguagem com imagens construídas tão repentinamente
que umas se sobrepõem às outras ao longo do desenvolvimento do texto e todos
esses volteios que, tenho a impressão, dialogam bem com uma parcela da
juventude que te consome como escritor, tendo alguns até já transformado em música
teus poemas. Eu queria saber três coisas sobre seu processo de escrita: quais
suas influências literárias, ou pelo menos, qual o tipo de literatura que te
agrada? Qual o conselho que você daria para uma escritora ou um escritor
iniciante que gostaria de se aventurar no mundo da criação e publicação
literária? Quando teremos um novo livro de literatura seu?
A. Eu sou do século XX, né? Com tudo que isso
pode ter de bom e ruim. Nasci em maio de 1968 e desde muito cedo, com aquela
curiosidade infantil, fiquei sabendo que era uma época muito simbólica, e
certeza que isso interferiu demais em mim, mesmo que eu nem entendesse bem o
que significou maio de 1968 naquela época. Claro que a literatura do século XX
grudou em mim. Em Minas tive um contato bem cedo com Roberto Drummond, cheguei
a conhecê-lo pessoalmente ainda garoto, lia os livros dele e tive um encontro
emblemático com ele quando eu tinha uns 12 ou 13 anos, que me marcou
profundamente. Para dar uma ideia, ele perguntou se eu lia os livros dele e eu
citei de cor duas páginas inteiras de Sangue de Coca-Cola, e ele ficou um tanto
abismado. De algum modo tentei imitá-lo, escrever como ele, e daí a coisa foi
se tornando algo que ia aglutinando as referências dele, Roberto, e você sabe:
é como quando se lê um livro de filosofia, por exemplo. Você lê, diz “uau, sei
de tudo” e chega à bibliografia: aí tem mais 50, 60, 70 autores que você
precisa ler, que são as referências daquele que você acabou de ler, e aí você
volta a se sentir quase um analfabeto. Isso foi acontecendo, e alguns
escritores em especial foram me formando “enquanto pessoa”. Vou citar alguns,
mas vou esquecer de algumas dezenas: Cortázar, Borges, Bioy Casares, Saramago,
Carlos Drummond, Ana Cristina César (que conheci em mais uma coincidência
quando eu era criança, em Brasília), Manuel Puig, Caio Fernando Abreu, Leminski,
o próprio Roberto Drummond, Rubem Fonseca, Garcia Marquez, Neruda, Alejandra
Pizarnik, Carlos Eduardo Novaes, Luís Fernando Veríssimo, um pouco de Machado
de Assis, um pouco de Guimarães Rosa. E ainda um Sidney Sheldon, de vez em
quando. Perceba que tem muitos argentinos. Fui vizinho de argentinos, minha avó
viajava com frequência para a Argentina, então eu me considerava quase
portenho, e isso me trouxe a literatura argentina. Adolescente, li Henry Miller
(Sexus, Nexus e Plexus), o que era meio “pesado” para quem tinha 13, 14 anos .
E a partir dele li mais alguns beats: Kerouac, Allen Ginsberg, Neal Cassady.
Então, veja que eram muitos e, ainda hoje, é uma literatura não muito
“comportada”, digamos. Só depois de adulto cheguei a alguns clássicos, à literatura
europeia, além de filosofia, psicanálise, psicologia, etc. Mas tudo muito
aleatório, sem grande ordenamento nem orientação de ninguém. Tenho buracos
enormes na minha formação literária. Digamos então que, com toda a modéstia que
é possível, essas pessoas formaram uma “base”, não apenas literária, mas
existencial. Como disse, fui muito solitário na infância, e esses eram meus
amigos e amigas. Com elas e eles aprendi sobre amor, sobre vida, sobre amor,
desamor, hierarquia, desierarquia, medos, valores, tristeza, melancolia. Não
tem como, mesmo com uma certa avalanche de leituras posteriores, deixar de
perceber que desde uma forma de escrita (pretensiosamente falando, já que tenho
dois livrinhos, apenas) até a busca dessas falta de ordem: numeração de páginas
trocada, histórias entrecruzadas, textos “sem começo”, ou sem linha mestra. O que
eu li nessa fase, e eu lia às vezes dois ou três livros de uma vez (hoje estou
bem preguiçoso), me formou como cidadão e todo meu “ideário” surge a partir
deles e delas.
Quanto a conselhos, sou incapaz de dá-los, ao menos de forma “séria” ou “profunda”. Digo apenas para procurarem sua verdade. Fazerem como e o que quiserem e os fizer felizes. O resto, não importa. Não fazer do criar um “negócio”, mais do que um momento de libertação. Se isso é um bom conselho, depende de quem lê. E sobre um novo livro meu, não sei. Tentei fazer um romance, mas sou um desastre para ter a disciplina necessária para isso, ainda. Vamos ver um dia se sai algo, se possível melhor que o que já fiz. Mas, no mínimo, se sair, eu terei sido verdadeiro com o que sair.
Quanto a conselhos, sou incapaz de dá-los, ao menos de forma “séria” ou “profunda”. Digo apenas para procurarem sua verdade. Fazerem como e o que quiserem e os fizer felizes. O resto, não importa. Não fazer do criar um “negócio”, mais do que um momento de libertação. Se isso é um bom conselho, depende de quem lê. E sobre um novo livro meu, não sei. Tentei fazer um romance, mas sou um desastre para ter a disciplina necessária para isso, ainda. Vamos ver um dia se sai algo, se possível melhor que o que já fiz. Mas, no mínimo, se sair, eu terei sido verdadeiro com o que sair.
[DCPA] Agora
sobre as artes plásticas, que apesar de ser sua incursão mais recente em termos
de arte, me sugere uma certa conexão, mesmo que por meio de um salto, com o
trabalho que você vinha desenvolvendo com a fotografia, já que ambas apelam
para um certo grau de abstração, a fotografia eventualmente e a pintura,
sempre. Então: por que o abstrato? Você poderia falar um pouco dos artistas que
te inspiram na pintura? Como você tem percebido a relação do seu público com
sua obra mais recente?
A. Não pensei sobre isso, mas acredito que
haja, sim, uma conexão forte. Durante um bom tempo tive a ilusão de que ser
fotógrafo era ser Bresson, o que, claramente, é impossível. E limitador. Hoje,
com a fotografia expandida e todas as convicções virando pó (eu falava sobre
isso há 20 anos, o fim das convicções, e olha como isso chegou), a gente vê que
é impossível ser uma coisa só, “a fotografia” são muitas e, de certo modo,
radicalizando um pouco, nem dá para afirmar com certeza de que ainda existe “A”
fotografia. Isso abre espaço para que possamos ser nós mesmos, e não novos “Bressons”.
Clicar subjetividades, transformar a realidade ao invés de retratá-la, ou mais
ainda, criar uma não-realidade maravilhosa para se viver. Ou seja: a
fotografia, se ainda a chamamos assim, se liberta definitivamente da obrigação
documental que muitos ainda impunham a ela, e se torna imagem, o que faz, dela,
qualquer coisa que se queira. Então chegamos a um certo estatuto “mole” da
fotografia contemporânea, que se liberta também da eterna discussão “é arte x
não é arte” e vai além de qualquer definição clara. Quanto a meu fazer arte,
posso dizer que só foi possível quando percebi essa libertação em mim mesmo. Um
dos lados ruins do século XX foi uma tendência a tentar definir algumas coisas
dentro de estruturas rígidas, de certo modo um contrassenso histórico, né?
Então eu nunca me senti “artista”. Sempre fui algo paralelo, que caminhava ao
lado flertando com o fazer artístico, mas nunca me pensei “artista” porque
veja, eu mal sei desenhar um círculo, e por muito tempo me disseram que para
ser artista era preciso desenhar círculos perfeitos, corpos humanos
irretocáveis, saber a escala cromática mesmo de olhos fechados, e por aí vai.
Descobri ficando mais velho que não é isso “A” arte. Porque, talvez, ela não
“seja” nada. Há pouco tempo decidi que não interessa o que pensem, eu sou
artista – mas também posso não ser – dependendo, apenas, do que penso e faço a
esse respeito. Você pergunta porque o abstrato, e mais uma vez não sei
explicar. De novo, acho, são as questões pulsantes no século XX me pegando pelo
pé. Sempre gostei dos artistas e dos movimentos do pós-guerra – o expressionismo
abstrato norte-americano de Franz Kline, Rauschenberg, Pollock, De Kooning,
Rohtko, Reinhardt; o tachismo europeu de Soulages, Hartung, Tápies; desobri os
coreanos do Dansaekhwa, como Lee Ufan e Park Seobo; o movimento Gutai do Japão;
- todos eles se ligando, de alguma maneira, pela recusa à forma figurativa, pela
crítica às belas-artes, pela valorização do gesto e se contrapondo a qualquer
formalismo, no caso dos japoneses e coreanos de alguma forma também ligados a
alguns norte-americanos a busca pelo mínimo, seja em cores ou gestual, além de
materiais fora da produção industrial ou “caros”. Acho que aí chego também no
lugar de recusar as formalidades e hierarquias, e instintivamente, claro, tento
me aproximar deles. Mas é ainda um momento de estudos, de busca, ainda em busca
da minha verdade e do meu fazer como artista visual. Já sei muito claramente o
que não quero, mas ainda não cheguei a definir algo que queira. E ainda tem as
frustrações do não ter habilidade para algumas coisas e ter para outras: quero
dizer que muitas vezes quero algo mas nunca conseguirei fazê-lo, então vai por
ai também a busca dessas “verdades”. Descobrir o lugar onde meu querer se cruza
com o meu conseguir fazer. No fim das contas, o mais importante é mesmo o caminho,
é nesse caminho que a gente se diverte e sobrevive. Chegar a um ponto
determinado anteriormente é algo bem utópico e, talvez, meio sem graça. Sobre a
relação com o público preciso, antes, ter um “público”. Não sei se já o tenho
e, mesmo que tenha, não tenho condições de falar sobre. Quero que esse público
se relacione com o que faço, porque será nessas coisas que eu estarei. Gostaria
que um dia as pessoas possam se relacionar com meu trabalho. Eu, eu mesmo, não
importo. Eu sou aquilo que está exposto nisso que chamam de minha “obra”. Todas
as minhas contradições e dúvidas e convicções que se dissolvem e se tornam
outras estão ali.
O que tenho visto é gente criando e
produzindo independentemente da certeza de viver desse ou daquele modo. A
experiência da Revestrés tem me mostrado muita, muita gente maravilhosa jogando
suas verdades, seus sonhos, suas vidas no fazer artístico, e isso emociona
quando se sente essa tal verdade na criação. Não posso dizer qual o caminho
ideal, nem se a arte como modo de produzir possibilidades de sobrevivência
material é algo assim ou daquele jeito. São questões que me afligem no dia a
dia, como observador, como divulgador, como espectador ou como artista, mas não
consigo fechar uma equação. Não sei se um dia “o artista”, esse ser um tanto
genérico, poderá sobreviver dentro de padrões e expectativas sociais.
Certamente alguns sim, muitos não. Uns vão abandonar a arte por necessidade
material, outros vão abandonar o material e dar a vida pela arte. Alguns devem
ficar ricos, outros, a maioria, talvez não. Acredito, sim, que o Estado tem a
obrigação de apoiar os fazeres artísticos, porque nem tudo que se produz em
arte – talvez a grande maioria da produção artística – não tem nem deverá ter
“valor de marcado”, não será vendida, o artista não poderá viver apenas do que
fizer e precisará de apoio. E a busca pela sobrevivência pode atrofiar certas
formas de criação. No fim de tudo, acredito mesmo que quem sobreviverá será a
arte. O poder público tem de pensar a arte não como produto nem como mercado,
porque isso é a lógica de outra esfera, de outro campo. A arte é maior que
qualquer mercado, por mais que existam mercados que façam circular fortunas por
obras de arte, nem todas sendo arte. Os artistas, ricos ou não, com grandes
resultados de mercado ou com grandes obras fantásticas porém esquecidas, vão
passar. Só a arte não passa. Daqui a mil anos só o que for arte verdadeiramente
falando vai estar aqui, se não fisicamente (afinal, pode haver arte sem objeto),
como experiência inesquecível, ou simbólica, ou transformadora. E isso tem de
ser pensado, preservado, compreendido. Outro dia alguém me disse: “porque você
não assina seus trabalhos? Daqui a cem anos ninguém vai saber quem fez”.
Respondi que, daqui a 100 anos, não farei a menor questão de que saibam que fui
eu quem fez isso ou aquilo, já que estarei morto. Se o que fiz estiver ainda
ali e despertando algo em alguém, eu estarei. Pensar nessa possibilidade, que é
até remota, me basta, me move.
Para quem ainda não conhece. O trabalho do André pode ser apreciado nas redes sociais abaixo:
http://cargocollective.com/andrepiaui
https://www.instagram.com/andrepiaui/
https://www.flickr.com/photos/andrepiaui
E claro, a maravilhosa Revestrés: http://www.revistarevestres.com.br/ http://www.revistarevestres.com.br/blog/andregoncalves/
Nenhum comentário:
Postar um comentário
mensagem passíveis de moderação