quarta-feira, 13 de maio de 2020

Toró de ideias no fatídico ano de 2016


Compartilho esse texto/ensaio, para deixar registrado esse brainstorm/toró de ideias bonito que pude criar com uma pessoa amada no ano de 2016. Pois coisas boas também aconteceram naquele ano:


Se estou em uma parada de ônibus e não tenho mais rosto, o que resta de mim? Terminei meu processo de fusão com a estrutura que me aprisionava (o trajeto para o trabalho? O sistema de transporte?)? Se não tenho rosto e me encontro só andando pela rua, o que eu sou? Sou diferente do vento que sopra? Da luz da lua que me ilumina ou do sol que queima? Sou diferente do cachorro que passou agora há pouco? Sou uma sombra? Sou um espectro que não tem mais passado e nem futuro, só esse presente, anonimato construído por uma identidade que se perdeu (se é que algum dia foi)? Eu realmente fui/sou?

Para quem o padre faz ecoar sua homilia? Não temos mais rosto, agora somos um em Deus (?)? Ovelhas do Senhor em Disfarce de Dolly, a ovelha clonada? Somos muitos ou sou apenas um, sozinho em meio a todos esses bancos vazios diante do crucifixo, onde jaz um corpo que há muito também perdeu seu rosto, mas penso que por motivos outros? Ou talvez seja exatamente os mesmos motivos que me fizeram entrar aqui, ainda que sem rosto. O que eu vim fazer aqui? Não vim buscar a salvação da minha alma, vim antes de tudo saber o que me distingue. Aquilo que me faz especial. Eu sou especial, ainda que eu olhe ao meu redor e veja outros despidos de face como eu. No fundo não não somos iguais. Quiseram me fazer igual apagando meu rosto e também o rosto dos outros, ou das outras, quem pode saber?

Um mar de corpos sem rostos por trás de escrivaninhas digitando roboticamente. Pega o copo de café. Bebe o copo de café (simultaneamente). Põe o copo de café de volta na mesa. O tique taque do relógio de parede. 1 minuto para as 18h. 18h. Todos saem em sincronia com o ponteiro dos segundos. Um corpo sem rosto. Terno, gravata. Papéis diante dele. Burburinho eterno na sala. Um copo de plástico com café já frio. Frio porque o frio dessa sala ultrapassa o que o ar condicionado. Máscara. Eu sou um ser fracionado, minha máscara de ausência precisa estar sempre aqui comigo, qualquer vacilo que signifiquem sentimentos ou pensamentos divergentes é recebido com silêncio (ou risos). A empresa é o nosso rosto, vestimos a camisa (o que importa é a marca da empresa na camisa, meu rosto seria um marca menor se eu o usasse, então melhor não dar vexame).

Mais um blockbuster. Dezenas de corpos sentados em silêncio, ou rindo espalhafatosamente. Mais corpos sem rosto. Um casal sem rosto se beija(?). Um rapaz mais a frente come(?) pipoca. Todos saem ao toque do acorde final da trilha.

Um filme cult. Mais uma vez um corpo sozinho na sala do cinema. Me sinto confortável no início, tenho a sala só para mim. O filme se adianta. Me movimento na cadeira, olho para os lados, mesmo sabendo que não há ninguém. A trama da tela, muito densa, como eu esperava, me provoca esse desconforto na cadeira. O que eu esperava encontrar aqui? Sei que o vazio só se anestesia por um momento. E é isso que de fato acontece: sou tomada pela trama. Fim do filme. Saio do cinema e me olho no espelho que adorna a saída. Ainda aquele não-rosto (?) mirando seu revés. Me parece que a estrutura se agarra à minha pele, por mais filmes cults que eu assista. E então a estrutura sem subterfúgios agora me empurra de volta para sua lei da solidão coletiva no hall do cinema.

Acho que a idéia do homem inautêntico existencialista, aquele que absorveu acriticamente os papéis que a vida foi lhe impondo e que não consegue (ou não quer) escapar ao cotidiano ordinário, é uma espécie de exaltação da solidão. É a solidão que não pode ser mencionada porque se mencionada, esmaga esse sujeito, que prefere ignorar a dimensão dessa solidão para conseguir (sobre)viver.

A homogeneização da moda, as multidões como as torcidas de futebol (desculpe), os passageiros de um ônibus, os motoristas presos em um engarrafamento, estudantes em uma escola, prisioneiros em um presídio, eleitores em dia de votação, brincantes do carnaval, público de um show, pessoas em palestra acadêmica.

A solidão é um leito de Procusto para a condição humana? Somos seres com desejo de união com o outro, mas forçados à solidão? E toda nossa construção social é na verdade nada mais uma tentativa de alcançar o outro e finalmente poder tocá-lo? Ouvir e se fazer ouvir?
Segundo o mundo atômico nós nunca nos tocamos e isso é mais uma condenação à solidão.

Mas a solidão também é condição para a existência da beleza, da arte, da filosofia. A maldição vem com alguns bônus, então. E uma música aqui me veio à mente, também. 




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