Dedico ao amor que vai & ao amor que vem: dois vídeos poemas da portuguesa Matilde Campilho (declamados por ela), seguidos de seus versos.
We've changed, honey boo
Como estava previsto nos registos, agora você é muito mais dada à astrologia e eu ao estudo dos cafés servidos nas beiras de estrada. A polícia não nos procura mais. O tribunal dos seiscentos dias resolveu que a misturada que fizemos com os nomes dos pássaros já não é uma questão para a segurança interna. Mensagens encriptadas na bula dos medicamentos, aromas desleais enfiados à socapa nos pacotinhos de sorvete, assobio nos ouvidos do sinaleiro- tudo parou. Quase nos prendiam por tráfico de influências, mas agora as urbanizações andam muito sossegadas. Daniel, entretanto, está morto. Walter emudeceu no caminho da composição e os jornais usam datas estranhas em seus cabeçalhos. Junto àquelas figuras de aviões e homens fardados aparece o nome do décimo sexto mês. Mudou tudo, honey, e a distância entre nós não foi certamente a causa para toda a explosão. Existem mais de 39 marcas diferentes de café, isso sem contar as misturas solúveis. As professoras de Westbridge preferem-no forte. Os astronautas fora de missão bebem cafezinho claro, não vá acontecer uma emergência qualquer - quem entende de gravidade está muito consciente da ligação entre leveza e sono. Antes do horóscopo e dos mapas você prestava alguma atenção ao despertar do soldado. Acho que tinha qualquer coisa a ver com luz ou com melancolia, tinha certamente tudo a ver com crença. Quero dizer, tu trabalhavas na tipografia e eu ainda guardo a revista onde plantaste o retrato do barcalhão fazendo a vênia à alvorada. Falávamos muito de príncipes nessa época, e os príncipes pertencem às manhãs. Cada motel serve um café diferente, raios. Distingo os ares da China do vento do Cazaquistão num minuto. We've change, honey boo, mas os climogramas permanecem.
Fevereiro
Escute só, isto é muito sério.
Anda, escuta que isso é sério!
O
mundo está tremendamente esquisito. Há dez anos atrás o Leon me disse
que existe uma rachadura em tudo e que é assim que a luz entra, não sei
se entendi. Você percebe alguma coisa da mistura entre falhas e
iluminação?
Aliás, me diga, você percebe alguma coisa de
carpintaria? Você sabe por que meteram um boi naquele estábulo ao invés
de um pequeno rinoceronte? Deve ter tido alguma coisa a ver com a
geografia. Ou com os felizmente insolussionáveis mistérios que só podem
vir do misticismo asiático. Um boi é um bicho tão… inexplicável. Ainda
bem.
O amor é um animal tão mutante, com tantas divisões possíveis.
Lembra daqueles termômetros que usávamos na boca quando éramos pequenininhos? Lembra da queda deles no chão?
Lembra daqueles termômetros que usávamos na boca quando éramos pequenininhos? Lembra da queda deles no chão?
Então,
acho que o amor quando aparece é em tudo semelhante à forma física do
mercúrio no mundo. Quando o vidro do termômetro se quebra, o elemento
químico se espalha e então ele fica se dividindo pelos salões de todas
as festas. Mercúrio se multiplicando. Acho que deve ser isso uma das
cinco mil explicações possíveis para o amor.
Ah é! Eu gosto de
você. A luz entrou torta por nós a dentro, mas, olha, eu gosto de você!
A luz do verão passado quebrou o vidro da melancolia e agora ela fica
se expandindo pelas ruas todas. Desde aquele outro lado do Sol até esse
tremendo agora.
Hoje ainda faz bastante frio. As cinzas ainda
não aterraram sobre as cabeças disfarçadas, tem gente batucando suor e
cerveja pelas ruas de nossa cidade sul. Na cidade norte, há ondas de
sete metros tentando acertar no terceiro olho dos rapazinhos disfarçados
de cowboys.
[suspiro]
O mestre ainda não veio
decretar o começo da abstenção e, olha, a luz ainda está conosco. Sim, o
mundo está absurdamente esquisito. Já ninguém confia nas imposições dos
prefeitos, a esta hora na terra é um tanto carnaval, um tanto
conspiração, um tanto medo. Metade fé, metade folia, metade desespero.
E, provavelmente, a esta hora, uma metade do mundo está vencendo e a
outra metade dormindo, há ainda outra metade limpando as armas, outra
limpando o pó das flores. Mas, por causa do que me ensinou o místico,
eu acredito que exista, agora, alguém profundamente acordado. Alguém que
esteja vivendo entre o intervalo tênue entre o sonho e a agilidade.
Suponho que ele saiba perfeitamente que este começo de século será nosso
batismo do voô para nossa persistência no amor.João molhou a testa de
Manuel. Os gritos das ruas molham as testas de nossos corações.
De
que lado você está, eu não me importo! De que garfo você come, de que
copo você bebe, que posto certo você escolhe, qual é seu orixá, seu
partido, sua altura, de qual de suas cicatrizes cuida, que pássaro você
prefere, quem é seu pai, qual é seu samba, Pinot noir ou Chardonay, que
protetor você usa, qual é sua pele, seu perfume, qual político, quantos
amores você sonha, em que Fernando, em que Ofélia, em que cinema, em
que bandeira, em que cabelo você mora, qual dos túneis de Copacabana.
Rezo para seus santos quando atravessar.
É… é impossível viver
no país de Deus. Isso eu te dou de barato. Mas, atravessar o gramado de
Deus em bicicleta, isso não é impossível, não.
Escuta, isso é sério!
Andamos
crescendo juntos, distraidamente. As árvores crescem conosco. Nossa
pele se estende, nosso entendimento, teso, também. O século cresce
conosco. O amor pelas ventas da cara do mundo, também.
Quanto a um pra um entre nós dois, isso logo se vê. Não sei nada sobre a paixão, suspeito que você também não. Mas, começo a entender que o compasso da fé está mudando a passos largos. Dois pra lá e dois pra cá.
Quanto a um pra um entre nós dois, isso logo se vê. Não sei nada sobre a paixão, suspeito que você também não. Mas, começo a entender que o compasso da fé está mudando a passos largos. Dois pra lá e dois pra cá.
Portanto, escute.
Isto é muito serio!
Isto é uma proposta aos trinta anos.
Isto é muito serio!
Isto é uma proposta aos trinta anos.
Agora
que o mercúrio assumiu sua posição certa, vem comigo achar o meu trono
mágico entre a folhagem. E, no caminho até lá, vem dançar comigo, vem!
28/06/2017
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