Convidei a Lara Matos, advogada e escritora que já apresentei aqui no blog (clica aqui), para fazer uma postagem sobre mulheres escritoras negras da preferência dela. O pedido foi uma referência ao novembro negro, que acabou ontem e ao movimento nacional que busca incentivar a leitura de mulheres negras, que no Piauí, ganhou força na Campanha Esperançar (clica aqui e aqui), incentivada pela professora da UESPI Andreia Marreiro.
Seguem a postagem e as dicas:
Seguem a postagem e as dicas:
A maior parte dos livros que vão
estar na lista dos melhores do ano, uma tradição minha das festas de Natal e
Ano-Novo, foram escritos por mulheres, e deste universo, muitos por mulheres
negras. Hoje eu vou falar sobre as melhores leituras de autoras negras que fiz
ao longo da vida, e comentar minha lista de desejos (meu aniversário é dia 09
de dezembro, oie). Minhas leituras de ficção são bem maiores que as de
não-ficção, e por isso vou me concentrar na primeira modalidade.
I-A Cor Púrpura, Alice Walker: quando eu tinha 11 anos, meu livro
didático de inglês propunha que escolhêssemos um filme dirigido/produzido por
Steven Spielberg de uma lista. Eu escolhi a Cor Púrpura pelo título, aluguei o
filme e quando descobri que Cellie existia em livro, e ainda mais, que tinha
este livro em casa, me entreguei às páginas. Minha infância e adolescência foi
meio assim mesmo, lendo coisas não tão apropriadas para a minha idade mas que
me deram uma visão de mundo mais humana. Cellie, uma mulher negra, lésbica, que
nunca entendi como ela se dizia, feia, com um coração tão bonito, foi a
primeira personagem que despertou minha curiosidade.
II-Amada, Toni Morrison: É um dos meus livros preferidos de sempre,
mesmo porque o começo enigmático, descrevendo a ação de um fantasma, me
intrigou bastante. Demora um pouco até você entender o que está acontecendo,
mas quando o enredo se mostra, é de uma grandeza e de uma potência absurda. A
relação da mãe Sethe com os filhos ainda hoje me dá nós na garganta. Em algum
momento, filhos que lêem est livro verão suas mães, seja de modo positivo ou
não. De Toni, até ler Amada, eu havia
tido contato apenas com Jazz, um livro curto que dá conta de muito da dinâmica
urbana dos negros dos EUA e cuja personagem principal, Violet, me causou uma
profunda empatia; não gostaria de estar em sua pele novamente, embora já tenha
estado, e a entendo demais. Na verdade, eu poria tudo de Morrison nessa lista,
inclusive meu desejo Deus Ajude Esta Criança, seu livro mais recente traduzido
no Brasil pela Companhia das Letras.
III-O Ódio que Você Semeia, Angie Thomas: Eu levei esse livro para
votar, só para vocês terem um ideia, e foi o destaque dos meus livros
preferidos de 2017. Poucas vezes eu li
algo tão bom com a temática de raça quanto ele, que inclusive zomba na cara de alguns curadores que dizem que romances
YA estão fora de um espectro artístico. Nunca leram Angie Thomas, Jacqueline
Woodson ou Nnedi Orokafor. Coitados. As palavras de Angie na estreia do filme
baseado em O Ódio que Você Semeia “eu fui assistida pelo seguro social, vim de
uma periferia violenta e cheguei a achar que não terminaria a escola; hoje, na
estreia do filme baseado no livro em que escrevi, eu digo: tudo é possível”.
Angie é uma voz negra intelectual com uma relevância enorme, pois como mulher
jovem, é a prova viva de que a juventude negra precisa de ações afirmativas e,
uma vez tendo acesso a elas, é capaz de alçar voos inimagináveis para elas
mesmas. É uma reconstrução não só de uma autoestima individual, mas de toda uma
comunidade.
IV-O Caminho de Casa, Yaa Gyazi: a diáspora africana com todas as
dores, alegrias e anseios. Eu gostaria de dar este livro para cada um que fala
“negros escravizavam negros”, porque as páginas dissolvem esse preconceito
ignorante com um lirismo belíssimo, explicando toda a complexidade de relações
do colonialismo escravagista. Você aprende a não falar besteira com uma história
bem amarrada e com imagens deslumbrantes. Além disso, personagens como Marcus
situam a compreensão de uma questão ainda muito pouco abordada: a saúde mental
de pessoas negras, em especial dos homens negros; a incursão nas drogas desse
personagem, inclusive, é uma descrição que gera muitas nuances de análise,
exigindo um texto próprio.
Antes de falar da poesia,
gostaria de falar sobre um incômodo: a mulheres poetas, em especial mulheres
negras poetas, é negado o dom à exatidão e à observação. Mulheres são seres
empíricos, levados por paixões, e não racionais e cognoscíveis: é um
preconceito velado ou muitas vezes até manifesto mesmo em muitos ensaios
críticos. Uma mulher negra que escreve, se instrui e aprende o letramento em
formas de prosa e poesia com técnica, ritmo e lirismo impecáveis, então, uma
afronta. Algumas mulheres que entram chutando as portas do formalismo branco da
poesia hermética estão aqui:
I-Lívia Maria Natália de Souza: O
Poema As Mãos de Minha Mãe me leva às lágrimas toda vez que leio. Durante o
Colóquio de Gênero realizado na Universidade Estadual do Piauí, no mês de
setembro deste ano, a própria poeta recitou esses versos, que falam sobre sua
mãe com mal de Alzheimer. Minha avó foi levada por esta doença, também, e a dor
profunda de sentir o fio da vida de alguém que amamos escoando aos poucos pesa
ao mesmo tempo que encontra alívio nas palavras dessa poeta, que tive a honra
de abraçar e conversar. Meu livro preferido de Lívia é Correntezas e Outros
Estudos Marinhos, mas indico todos.
V-Eliane Marques: Para escrever
poesia é preciso ler poesia. Para versificar bem, é preciso ver a prática de
versificação. Eliane Marques me ensinou lições preciosas que acredito que não
extrairia de tratados de poética. Há uma precisão nos versos que fez com que eu
recitasse fragmentos espontaneamente apenas algumas leituras depois. Uma
amostra:
e se irene não-à-lei
e se irene não-sinhô
e se não-tão-preta
e nem-tão-boa
e se ainda aos piores mortos
o amém das moças
VI-Não Vou mais Lavar os Pratos,
Cristiane Sobral: Uma mulher negra que resolve se instruir. A afronta que uma
pessoa sempre relegada aos bastidores e aos cuidados rudimentares lendo,
escrevendo, pensando, criando e sendo protagonista altiva não só da própria
história, mas inventando novos mundos líricos. Esta é Cristiane.
III-Bone, Yrsa Daley-Ward: tenho
minhas ressalvas em ler poemas em línguas estrangeiras traduzidos; por isso,
geralmente me atenho a versos escritos em inglês ou espanhol, idiomas que
domino e sei traduzir. Digo isto para marcar minha ignorância acerca de poetas
cujos versos só conheço por traduções em português ou inglês que de certo modo
me parecem estranhas, com algo fora do lugar, seja a estrutura da versificação
ou as imagens obtidas. Ah, e outra coisa: Daley-Ward é modelo e atriz também;
artista da cabeça aos pés. Abaixo, um dos poemas dela, que eu mesma traduzi.
Nada é dito na mesa de jantar
Porque todo mundo tem raiva
O único barulho é o tilintar dos talheres de prata na porcelana chinesa
E o som das brincadeiras dos filhos de outras pessoas lá fora
Mas isto te dará poesia
Na cozinha não há faca
Afiada que possa cortar a tensão
E as mãos de sua avó tremem
A carne e o inhame entalam na garganta
E você nem ousa mais sussurrar “passe o sal”
Mas isto te dará poesia
Seu pai está bufando
Ele poderá extrair toda seu viço esta noite
Por razões que nem ele mesmo sabe
Ainda
Você sairá machucada
Você sairá machucada
Mas isto lhe dará poesia
A ferida irá se espalhar
Dispersar até ser
um diamante negro
Ninguém sentará ao seu lado na aula
Talvez sua vida dê certo
Embora de primeira
Não pareça:
Isto lhe dará poesia
Maya Angelou: Olha ela de novo! O
gênio que foi Angelou é uma coisa rara. Eu me atrevi a traduzir alguns poemas
dela, e aqui está o meu preferido, Mulher Fenomenal. Não pus um livro em
especial porque sempre consumi Maya de maneira dispersa, e já mencionei o I
Know why the caged Bird Sings. E o “Mamãe e Eu e Mamãe”, que ainda não li
porque sou muito sensível a histórias que tratam das relações entre pais e
filhos: mesmo depois de três anos ainda tento me recuperar da última leitura deste tipo que fiz, Patrimônio, de Philip
Roth. Aqui está minha tradução de Mulher Fenomenal (poema que Angie Thomas,
em o Ódio que você semeia, diz descrever totalmente sua avó):
Mulher fenomenal
Lindas mulheres perguntam
Que segredos escondo
Não sou adorável ou feita
Para envergar um traje de modelo
Se eu começasse a contar sobre mim
Diriam que minto
Se disser que está no movimento dos meus braços,
No sacudir do meu quadril
No molejo dos meus passos
Na curva dos meus lábios:
Sou fenomenalmente
Uma mulher fenomenal
É quem sou
Quando entro em um recinto
Fresca e cheia de graça
Faço homens e seus companheiros
Levantarem ou caírem de joelhos
Eles me cercam
Sou uma colmeia vazando mel
Digo:
É no fogo dos meus olhos, no brilho dos meus dentes
Minha cintura malemolente
A alegria dos meus pés
Sou uma mulher fenomenalmente
Fenomenal
É quem sou
Homens perguntam a si mesmos
O que veem em mim
Eles até tentam
Mas não conseguem tocar
Meu mistério interno
Quando eu tento lhes mostrar
Eles inda não veem
Eu digo
É na curvatura das minhas costas, no sol do meu sorriso
No elevar dos meus seios
Meu estilo impecável
Uma mulher fenomenalmente
Agora você entende
Que é minha mente errante: não grito, salto
Ou preciso falar alto
Quando você me vê passar, deveria se orgulhar
Eu afirmo:
É no som dos meus saltos altos
Meus cabelos penteados
A palma da minha mão
A necessidade do meu cuidado
Fenomenalmente
É quem sou
fenomenal
Lista de desejos e leituras
futuras/em andamento:
I-Filhos de Sangue e Osso, (Série
Legado de Orïsha #1), Tomi Adeyemi: Tenho verdadeira paixão por autores que
estudam religiões e mitologias a fundo para criar suas próprias versões em
histórias originais. Exemplos conhecidos dessa capacidade de “aprender tudo
como um especialista e recriar como artista” são Neil Gaiman e Maggie
Stiefvater. Tomi foi além deles. Toda a pesquisa minuciosa se descortina numa
história cheia de alegorias e imagens que parecem sonhadas. Estou no início da
leitura e espero conseguir terminar logo, porque este livro merece estar numa
lista de melhores pelo fascínio que me induziu, estou obcecada! Este livro,
inclusive, vem com um guia de pronúncia Iorubá, GENTE!!!!!!!!!
II-Fique Comigo, Ayòbámi Adébáyò:
Margaret Atwood, autora de O Conto da Aia e Vulgo Grace, é uma autora ativa nas
redes sociais, e partilha suas leituras para os seguidores. Foi assim que tomei
conhecimento deste livro de Adébáyò, uma jovem escritora que teceu um romance a
partir da experiência com violência, exílio, costumes e particularidades de
relacionamentos amorosos. Não falo mais porque ainda não comecei a leitura de
fato, porém mal posso esperar.
III-Bruxa Akata, Nnedi Okorafor:
Chimamanda plantou sonhos na Nigéria ao riscar seu país com palavras. Nnedi, ficcionista exímia, fala da
realidade na Nigéria a partir do olhar de uma garota albina. Mal posso esperar
para começar a leitura do novo romance da autora de Quem Teme A Morte, a única
ficção distópica que conseguiu prender minha atenção. Agora, com um tema ainda
mais cativante, vou pular uns livros da minha fila de leitura (desculpa Becky
Albertalli).
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