quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Reminiscências, filosofias e palestra: bloqueando o raio homogeneizador

Uma das coisas que sempre me encantaram com a internet, foi ter acesso a um tipo de conhecimento que eu dificilmente teria, se ela não existe ou até teria, mas com com muito mais sacrifício. Faço parte da geração de transição do mundo analógico para o digital, que já na infância viu o computador (ainda na escola), na adolescência frequentou as lan houses, mesmo que só fosse ter o seu só depois de entrar na universidade. Na universidade, terminamos restritas ao saber que oferece  um corpo docente muitas vezes precarizado pela própria instituição, ou pelo habitus [Bordieu] bem distante de uma vivência acadêmica de pesquisa e de crítica de fato, como no curso de direito da minha época. Depois, na filosofia, ainda que tivéssemos um ou outro professor bastante dedicado ao seu trabalho, a escassez de espaço e de recursos (humanos, inclusive, não tive aula com uma professora mulher no mestrado), talvez tivessem deixado árido demais o ambiente. Fora as boas almas que compartilham conosco dessas vivências no imediato e amenizam o cenário- pelo menos o suficiente para não desistir, coisa que acontece bastante-, a janela da internet e das redes sociais que começavam a se afirmar, me aproximaram não só do lazer e de contatos outros, mas também me permitiram saber e aprender com a produção de outros tantos centros desse país e de fora dele.

Não está no lattes, mas eu devo minha formação a muito mais instituições que as que oficialmente me matriculei. Todas as vezes que eu sentia a epistemologia dominante me sufocar, eu recorria a outros livros, outras revistas, outras palestras e a conversar com outros professores. Hoje os feminismos e outros tantos movimentos sociais vem se tornando presentes nas ferramentas de mídia mais avançadas, disponibilizando uma maravilhosa vitrine de possibilidades para quem não se encaixa, para quem sente uma necessidade de uma outras crítica, um viés que não os ignore- e para convidar quem parece estar encaixado, também. É importante que se compreenda que isso é novo, se veio um tanto com o governo do PT e sua abertura (que poderia ter sido bem melhor), sobreviveu a ele e na verdade floresceu depois da queda.

E que bom que as novas gerações tem essas opções. Eu sou mais da geração imediatamente anterior[geração se tornou essa coisa tão variável], ainda estou tendo que lidar com os velhos sábios, que hoje a gente compreende que nem eram tão sábios assim para tantas questões relevantes como racismo, misoginia, escravidão, homofobias, desconsideração por vidas não humanas e um monte de coisa. É aqui que eu me localizo e eu considero um lugar estratégico, talvez menor, mas importante, porque as perguntas que aqueles senhores fizeram e tentaram responder ainda movem as grandes instituições e poderes que ignoram o meu mundo (e muitos outros mundos). As perguntas deles tem que mudar dentro deles, dentro dos sistemas que eles criaram, também. As contradições estão lá e vão cumprir sua missão, sendo de se transmutar, numa outra síntese, ou de se destruir e fazer-se desaparecer no que não cabe mais.

A filosofia é duríssima. Muitos dizem que ela deveria desaparecer- eu poderia dizer isso de outras tantas coisas, mas sou apegada demais à noção de caos e sistemas-, outras estão tentando mostrar que já existiam outras filosofias, quando só um tipo era escutado. Eu tendo a esse grupo, desejar desaparecer o que há de ruim em uma área, não faz desaparecer suas consequências milenares no mundo e muito menos na prática do dia a dia. Então, recomendo um site, que ainda está começando, com muitas coisas a aprender, mas que já é bastante, pois não tínhamos nada, é o site Rede de Mulheres Filósofas. Ainda não estou lá, mas quem sabe uma hora apareço? Meu livro, fruto de um mestrado e de uma vaquinha realizada on-line e, certamente só possível por isso, sai ainda este ano- em 2011 tava eu lá tentando falar de feminismo no deserto do programa. 

Então, em lembrança às minhas escolhas, eu posto aqui uma palestra de filosofia feita por um antropólogo. Para quem não é da área eu aviso, de antemão, que isso é um tipo de heresia; mas eu reafirmo mais explicitamente: o professor Eduardo Viveiros de Castro é um filósofo, também. A sua palestra me deu os insights e a energia para escrever essa postagem para o blog, do mesmo modo que cerca de 4 anos atrás, me ajudava a sobreviver nas horas mais chatas e pouco estimulantes da pós. Essa palestra, que é uma belíssima metafísica, usando do seu perspectivismo ameríndio, aprendido também dos indígenas, me parece um palco argumentativo suficiente para introduzir a defesa das verdades culturais profundas de tantos grupos homogeneizados pelo raio homegeneizador* da modernidade capitalista. Aí eles aparecem como interlocutores tão fortes quantos, numa arena que costuma rir do poder do maracá**. Talvez seja uma das vantagens da antropologia, isso que na filosofia nós acusamos horrorizados de relativismo (eu não!). De todo modo, veio a mim que ainda que as primeiras e últimas questões sempre retornem, as perguntas precisam urgentemente alterarem seu formato.

Individualmente, não pretendo subestimar a força conservadora do habitus acadêmicos e institucionais em termos gerais por meio de um moralismo (apesar de achar que tem lá sua força), aponto as rachaduras e aproveito as frestas, quem está numa condição parecida com a minha: doente, vivendo aqui e ali, com raiva, inserida num jogo que entra em desvantagem, com dificuldade de apelar para uma formação que faça uma mínima crítica por questão de vida e morte, eu reitero: temos as frestas. Imagine, se eu acredito que até existam matemáticas e matemáticos dispostos à crítica, a que leitura fodona da área apelariam? Há se pensar nisso. Deixo aí minhas divagações para o ar, que eu não ando com o espírito para responder- espírito que é sopro que não deixa de ser ar.  Acho que isso também faz parte.

Por fim, lembro que essa palestra foi feita em 2017, no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, mas promovida no Youtube em nome do Museu Nacional, onde Eduardo era professor. O Museu, incendiado em 2018, num desses anos difíceis, na sequências de anos dificeis dessa nossa vivência coletiva brasileira recente, onde se perdeu o registro de várias línguas indígenas raras, ou que não tem mais falantes vivos, por exemplo, ou o registro de migrantes nordestinos da década de 1960, além de estudos e pesquisas em outras tantas áreas. Ficam aí alguns pedaços da ruína dele, memórias de coisas mortas, mas acreditando que elas retornam, como novas vidas ou como assombração mesmo- pra puxar o pé e levar embora quem deixa essas coisas acontecerem. #pas 



* Eu tenho quase certeza que esse termo da ficção científica meu inconsciente trouxe de algum episódio do primeiro semestre de 2020 do podcast Benzina- que eu recomendo sempre.

** O maracá é um instrumento importante para muitas etnias indígenas tanto pela sua musicalidade, como para seu uso nos mais diversos rituais. É uma palavra que no presente pandêmico e de governo fascista vigente, vem sendo utilizado para reunir algumas diretrizes internas de organização e cuidado de muitas comunidades. Conferir: https://racismoambiental.net.br/2020/08/30/maraca-emergencia-indigena-veja-os-quatro-primeiros-episodios/

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