Vez ou outra eu passo uns momentos meditando sobre alguma pintura, uma frase que me chamou a atenção de um autor que eu gosto. Ontem foram os rabiscos do André, obra que acompanho e que em geral, gosto. Rabiscos de sombra e de luz. Obra de arte é boa para se perder em devaneios e fazer conexões.
Olhando os rabiscos lembrei do anjo do Paul Klee.O
anjo do Paul Klee que Benjamin tanto gostava. Aquele Angelus Novus era um anjo feio. Cabeça
grande, braços/asas pequenos, pele amarelada. Será que era um anjo? Eu lembrei de Fabiano, das Vidas Secas de Graciliano. Fabiano quase não falava. O anjo do Klee também não fala. Parece que têm algo em comum. Mas isso fica para depois. Por enquanto: o anjo do Klee. O anjo afastava-se de algo que lhe capturava o olhar, olhava assim de soslaio, parecia com medo. As asas tesas, os pés, que mais
parecem pés de galinha que cisca. O anjo de Klee viu algo que fez com que se
sujasse de uma lama que ressecou suas asas e seus pés de galinha que não ciscam
mais. Não era uma lama irmã da sujeira que Manoel de Barros me fez amar, era a
lama que se formou de uma tempestade futura. A lama agora compunha a pele e as asas não mais funcionais do anjo
bidimensional. Seus olhos se fixaram eternamente na tempestade que viria a lhe constituir.
Klee era o profeta de Benjamin (e Benjamin se tornou o de muitos).
Das fotos do André, eu me detive na
série mais recente #selfie e nas últimas d'[os rostos]. Fiquei pensando na ironia
da sugestão. Não há selfie, não há o rosto do fotógrafo ou de quem quer que
seja. Se a selfie deve mostrar o rosto de quem fotografa, a série [os rostos]
poderia mostrar: rostos. Pelo menos é o que o tema leva a supor. Por trás da selfie não há rosto e na [os rostos] também
não há rosto.
Imagino-me realizando o seguinte processo. Abro o instagram, viro a câmera para o módulo de selfie e, pronta para a próxima hashtag que me garanta algumas visualizações: tiro a foto. Mas não há um rosto, o meu rosto. Pele negra, traços de uma mistura indígena, negra e de algum carcamano renegado, algum europeu periférico, olhos grandes e castanho escuros, cabelos ondulados, da mesma cor. Foi assim que acostumei a me ver. E maquiagem, quando quero. Mas o que tenho de mim é um borrão, como no filme “O chamado”. Ou algo que derrete na horizontal como o rosto dos "Os amantes" de Magritte. Penso que é um problema da câmera ou do aplicativo (app). Retorno ao módulo normal da câmera e decido ir a um espelho tirar uma estilo old school do insta. Sim, já se sabe. Não há rosto. Eu duvido muito que estaria aqui digitando tranquila se isso tivesse acontecido. Estaria desesperada.
Imagino-me realizando o seguinte processo. Abro o instagram, viro a câmera para o módulo de selfie e, pronta para a próxima hashtag que me garanta algumas visualizações: tiro a foto. Mas não há um rosto, o meu rosto. Pele negra, traços de uma mistura indígena, negra e de algum carcamano renegado, algum europeu periférico, olhos grandes e castanho escuros, cabelos ondulados, da mesma cor. Foi assim que acostumei a me ver. E maquiagem, quando quero. Mas o que tenho de mim é um borrão, como no filme “O chamado”. Ou algo que derrete na horizontal como o rosto dos "Os amantes" de Magritte. Penso que é um problema da câmera ou do aplicativo (app). Retorno ao módulo normal da câmera e decido ir a um espelho tirar uma estilo old school do insta. Sim, já se sabe. Não há rosto. Eu duvido muito que estaria aqui digitando tranquila se isso tivesse acontecido. Estaria desesperada.
Benjamin também escreveu sobre as
primeiras décadas da descoberta mais amada das nossas tecnologias atualmente
compartilhadas: a fotografia. Falou também sobre fotografias em velocidade que
viraram o nosso cinema e que deram ideia para outras tantas coisas depois. Meditou
sobre a perda da “aura” da obra de arte com o efeito quantidade e velocidade da
fotografia em relação ao quadro pintado, à escultura e até em relação à
arquitetura. Estávamos começando uma relação intensa com o mundo agora fixado
em objetos e seres fotografados. Com a revolução trazida pelo smartphone, cada
uma e cada um passou a uma relação ainda mais próxima. Eu havia escrito simbiose aqui na versão anterior do texto, para descrever o processo,
mas simbiose é uma troca positiva. Algo próximo ao parasitismo talvez
nos explicasse melhor. E, bom, não é o parasitismo do celular em relação a nós.
Volto ao anjo do Klee. O anjo não é anjo: não é
belo, está sujo, olhar vidrado, não voa mais, não canta "hosana nas alturas". É a sombra de um anjo. Mas foi meditando sobre o anjo que
Benjamin achou que Klee antecipou algo do século que passou: a
tempestade de areia era um certo tipo desastroso de progresso. No meu caso, eu acho que
essas duas séries do André não antecipam nada. Não depois do século XX. Não
nesse meu texto. Agora não há mais o passado, o presente e o futuro como no
tempo de Benjamin. São todos simultâneos, misturados, sobrepostos, escorrem
entre si. Fractais de tempo. Detox de tempo. A selfie some na #selfie, justo
ela, que parecia ser nosso aconchego, nossa marca. Tentativa de segurar nas
bordas da roda louca que gira. Que sobe, que desce, que revolve o fundo de
coisas que pareciam esquecidas. As duas séries que nada dizem estão plenas do
vazio que a arte pede, mas um vazio que já está imediatamente atravessado por aquelas
fractais. Parece que gera um eco que carrega átomos fantasmagoricamente
rearranjados daquele anjo de Klee.
[continua]
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