quarta-feira, 17 de agosto de 2016

As reservas, as casas e os proprietários das casas (mais uma desculpa para falar de amor)




Um dos autores que mais me marcaram na última década da minha vida foi Luis Alberto Warat. Warat foi provavelmente o argentino mais brasileiro que viveu pelas nossas terras quentes. Começou como especialista no positivismo e semiologia jurídica e descambou para um tango-samba-cabaret chamado Surrealismo Jurídico. Fez outras coisas mais, mas aí você vai ter que dar uma procurada. Sugiro o blog da CasaWarat.

Lembrei do Warat agora porque no livro dele mais famoso e o que eu mais gosto, “A ciência jurídica e seus dois maridos” ele fala um pouco da delicadeza e da força das relações humanas. O título do capítulo que me interessa aqui é “Uma raridade chamada amor”. Antes de tudo, eu discordo do Warat de que o amor seja assim tão raro. Penso que, na verdade, ele seja difícil de definir, mas, de todo modo, achei válida a tentativa dele. 

O Warat fala de reservas selvagens. Fala que, para o amor acontecer, é preciso que haja o encontro de duas reservas selvagens. Aquela parte sua que você não costuma abrir para ninguém e que às vezes mal conhece, ou tem vergonha, ou tem medo e onde, numa aparente contradição, tem também seu maior manancial de belezas em estado bruto, pronto para deixar o estado de potência e saltitar para o mundo. O encontro das duas reservas ativa as cores antes insondáveis, antes adormecidas, antes desacreditadas.

E é um estado tão delicado...

Tentei em vão, meu relógio vermelho comprado no camelô do sul do país não foi capaz de marcar o tempo. Nem acho que um rolex original e nem o Big Ben marcaria. O encontro das reservas cria um outro tipo de necessidade cronológica. O infinito no finito. Apenas corpos amantes marcam o infinito no finito.

Mas quando as reservas se encontram... Ah! As formas, os sons, os cheiros, as línguas, o tato do corpo, esticados pela matéria dos sonhos que têm suas raízes profundas ali. Muitos suspiros.

Segundo Warat, a maioria de nós prefere a periferia da reserva. Porque deixar nosso mundo selvagem disponível ao outro também dá espaço para a dor, sabe? Dor de alma. Por isso a periferia é tão frequentada. Mas Warat diz que não tem outro jeito já que na periferia não há amoor, amoor.

Eu não lembro de alguma vez ter ficado na periferia. O que obviamente me abriu para muita dor. Mais um suspiro profundo aqui.

O que Warat não diz, contudo, é que lá no meio da reserva, tem uma casinha que requer muito cuidado. A casinha, aliás, é o grande segredo. Você não sabe que móveis quebrados tem ali, que piso está solto, que parte do telhado está mais frágil para uma noite de tempestade. Pode ser, é claro, que você encontre uma casa quase nova, em bom estado. Até que ponto você vai querer uma casa sem rastros de que gente viveu e foi feliz (ou não)ali, fica a seu critério. A mim, sempre me interessaram objetos que já tem alguma história no mundo. 

Nesse caso, quando a porta da casa finalmente se abrir para você, o que já é um grande feito, é preciso pisar com cuidado, de preferência com pantufas de gatinho, falar com a suavidade de um passarinho azul, ouvir o silêncio dos cômodos, acostumar-se ao tipo de luz, a uma certa desorganização da cozinha e ao possível ciúme dos livros. A casa, que se manteve de porta aberta durante muitos anos, pode ser que esteja um pouco deteriorada pelo uso e pelo passar dos anos- mesmo com a reserva selvagem ao redor como proteção, nem sempre é possível escapar de algum dano mais previsível- por isso seu proprietário pode ter andado preferindo deixar a porta fechada, só abrindo mediante senha, o que quase nunca se vê nas casas das reservas.

Quando fiquei sabendo de um caso assim, fui atrás de saber mais e achei muito justa a medida tomada pelo proprietário. Lá estava ele a tentar consertar o que podia, mesmo com poucas ferramentas à disposição. Talvez levassem alguns anos para que ficasse ao seu gosto- definitivamente ele era muito auto exigente. 

Ainda tentei ajudar no conserto, mas não tinha muita experiência com martelos e pregos, terminei quebrando uma luminária e o proprietário não ficou lá muito satisfeito. Na verdade, ele estava chateado com o resultado do que vinha fazendo, até havia parado o trabalho naquele dia. Talvez por isso quis que eu fosse embora, não parecia do tipo que aceitava ajuda com facilidade. Me afastei um tanto quanto magoada pela minha ajuda não ter sido aceita, mas ainda fiquei dentro da reserva, quieta. Pude olhar assim de fora e fiquei pensando muita coisa. Eu conseguia ver o quanto já havia sido encaminhado. Logo a casa estaria com seus alicerces bem sólidos novamente. Talvez, no fundo, até mesmo o proprietário, um tanto quanto pessimista, notasse isso. 

Também tenho minha casa, no interior da minha reserva. É interessantíssimo notar como muitos dos cômodos da casa só se tornam acessíveis de fato quando finalmente um visitante atravessa a reserva, alcança a casa e entra nela. Alguns dos meus móveis estão meio riscados e as cortinas rasgadas em alguns pontos-  uns vasos de flores quebrados no chão, também. Tem um ou outro quarto que nunca consegui abrir. Outros que comecei a decorar e depois fui obrigada a abandonar. Apesar disso, eu tenho tentado deixar a porta aberta, mesmo sob o risco de algo mais se quebrar lá dentro. O infinito no finito vale a pena.

E eu esqueci de dizer que as casas sobrepõem-se assimetricamente. É uma irregularidade festiva bonita de se ver.

2 comentários:

  1. Que lindo, Nay... To com o olhinho brilhando aqui. Sempre leio o que vc posta, mas fico quietinha... que nem um passarinho azul. Mas hoje deu vontade de comentar. É um texto tão lindo que queria ter sido eu a escrevê-lo! Mas, sabe que, só, por orgulho ou por ter tido tantos vidros estilhaçados por moleques, eu sempre me convenci a querer casas novas (embora também goste de coisas com história!). Inexploradas, nunca pisadas, como me iludira ser também, esquecendo não só os cacos de vidro no chão, como a beleza das outras matizes... A pintura gasta já pelo tempo que é, na verdade, o que vai lhe dando cor. Sem mais palavras, agora. Um dia nossas casinhas encontram bons moradores (ou as proprietárias descobrem mais e mais beleza...) :*

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    1. Que bom que gostou, baby. Vamos cuidando das casinhas na reserva selvagem. ;*

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