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quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Histórias a serem (re) contadas: Victoria de Santa Cruz


 
Catálogos das exposições e folder.



Semana passada eu tive o privilégio de, andando por São Paulo, poder visitar algumas exposições. Histórias Afro-Atlânticas e Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana (1960-1985), a primeira no MASP e no Museu Tomie Ohtake e a segunda na Pinacoteca. Das muitas comoções, surpresas, risos e abalos que sofri me detendo nas obras expostas, uma feliz e forte coincidência: em meio a uma variedade incrível de obras e artistas, em dois projetos independentes, o poema-dança de Victória Santa Cruz, de 1978, apareceu com destaque em ambas as exposições. Eu já trouxe uma vez aqui essa potência que nos foi legada em forma de vídeo. Permita-se, contemplar-participar, novamente, do texto, do balançar dos corpos e da firmeza das expressões dos artistas ali, que trazem a dor da rejeição pelo outro e do acolhimento de si por si, e de si no grupo antes rejeitado.

Volume 1 do catálogo das Histórias Afro-Atlânticas na página que menciona Victoria Santa Cruz (1922-2014). Três fotos da apresentação.




Monturo máter

𝚄𝚖 𝚖𝚘𝚗𝚝𝚞𝚛𝚘 𝚜𝚎 𝚊𝚙𝚛𝚎𝚜𝚎𝚗𝚝𝚊 
𝚀𝚞𝚊𝚗𝚍𝚘 𝚕𝚎𝚟𝚊𝚗𝚝𝚘 𝚊 𝚜𝚊𝚒𝚊 𝚍𝚊 𝚗𝚘𝚒𝚝𝚎,
𝙲𝚊𝚌𝚘𝚜 𝚍𝚎 𝚝𝚎𝚕𝚑𝚊, 𝚙𝚎𝚍𝚊ç𝚘𝚜 𝚍𝚎 𝚝𝚒𝚓𝚘𝚕𝚘𝚜,
𝚄𝚖 𝚊𝚛𝚊𝚖𝚎 𝚒𝚗𝚞́𝚝𝚒𝚕 𝚜𝚊𝚕𝚝𝚊𝚍𝚘 
𝙲𝚒𝚖𝚎𝚗𝚝𝚘 𝚎𝚗𝚍𝚞𝚛𝚎𝚌𝚒𝚍𝚘 𝚊𝚘𝚜 𝚙𝚎𝚍𝚊ç𝚘𝚜,
𝙰𝚛𝚊𝚗𝚑𝚊𝚜, 𝚌𝚎𝚗𝚝𝚘𝚙𝚎𝚒𝚊𝚜, 𝚏𝚘𝚛𝚖𝚒𝚐𝚊𝚜 𝚎 𝚕𝚊𝚐𝚊𝚛𝚝𝚘𝚜 
𝙼𝚘𝚗𝚝𝚞𝚛𝚘 é 𝚖ãe 𝚚𝚞𝚎 𝚊𝚋𝚛𝚒𝚐𝚊.
𝙳𝚎𝚙𝚘𝚜𝚒𝚝𝚘 aqui 𝚞𝚖 𝚙𝚎𝚍𝚊ç𝚘 𝚍𝚘 𝚎𝚜𝚙𝚒́𝚛𝚒𝚝𝚘 
𝚎 𝚊 𝚌𝚎𝚗𝚊 𝚎𝚜𝚝𝚊́ 𝚌𝚘𝚖𝚙𝚕𝚎𝚝𝚊.

sábado, 8 de setembro de 2018

Seja amiga da arte

mesmo que só para você

Fernanda Takai

Giz pastel seco

Desenho com giz pastel

Desenho com giz pastel

Flor e tapete- fotografia
curso de gravura

Arte como terapia. Depois eu apresento as colagens, pinturas e junk journals.

quinta-feira, 1 de março de 2018

O reencontro com uma certa terapêutica




Nunca morei no interior e nem estive por mais que alguns minutos em uma roça. Apesar disso, fui uma criança e uma adolescente sempre próxima de plantas, animais e outros reinos. Eu sabia sem saber, que me fazia muito bem estar perto desse mundo. Tantas foram as vezes que me imaginei como alguém próximo ao natural que, a uma certa altura, tive a certeza de que queria ser bióloga.
Fui aprovada no vestibular de biologia: primeiro lugar da turma. Uma festa! Mas como é até bastante comum na vida, nem tudo se segue como nos nossos primeiros planos- e isso pode ser muito bom, inclusive. Minha experiência com a biologia acadêmica se encerrou cedo, por volta do terceiro ano do curso, que não cheguei a concluir. Foi uma rica vivência que até hoje rende bons frutos distintos e distantes de certificados e diplomas e à qual sou grata. Mas de algum modo, a aparente suspensão desse primeiro caminho, não foi suficiente para extinguir um certo tipo de necessidade: a necessidade do mundo natural.
Por isso, esse texto nasce da necessidade de um resgate ativo e afetivo ao que nasce, ao que brota, ao que germina ao meu redor. Certamente estar morando na verdíssima ilha de Florianópolis teve sua quota nisso. Estar lá, reforçou o desejo, já meu discreto amigo, de me sentir cultivadora de alguma planta, de flores, de ervas, de alimentos, uma necessidade que entendi como tal desde os já longínquos dias da minha infância em Teresina, em que travava uma disputa silenciosa- e às vezes nem tão silenciosa- com minha mãe, pela permanência do meu canteiro de quebra pedras ao lado da casa, a“florestinha”, com o tempo tão espertamente cultivado, mesmo às escondidas, com as sementes jogadas aos montes por cima da terra, a cada vez que ela o condenava à capina.
Eu me agarrava àquelas ervas. Elas eram as grandes amigas da criança tímida que eu era, por muito tempo.
Recentemente, terminei de ler um livro que descobri ser uma referência da psicanálise voltada para os arquétipos femininos associados aos mitos e fábulas transmitidos pela história oral. É este “As mulheres que correm com os lobos”, da psicanalista junguiana Clarissa Pinkola Estés, de 1992 e que ganhou uma nova edição brasileira pela Rocco, em 2014. Compartilho com vocês o alívio que me foi encontrar uma autora que fizesse um uso tão pedagógico do melhor dos estudos de Jung sobre arquétipos e a experiência das mulheres, porque não é de hoje a crítica aos marcos da área e uma certa misoginia que os cerca. Eu diria que Estés-Jung trouxeram para mim um dos melhores diálogos interiores para o cuidado de si enquanto conhece-te a ti mesmo, segundo aprendi com Sócrates, com os estoicos e suas reverberações modernas-  nas aulas do professor Luizir.
Estés proporciona essa reaproximação da mulher que eu chamo aqui de suas primeiras experiências histórico-arquetípicas e corpóreo- arquetípicas. A mulher que faz nascer, a mulher que cria enquanto ser criativo, a mulher astuta, a mulher que renasce todos os meses. Para mim, tão próxima academicamente do pragmatismo, corrente que se não nega, pelo menos evita o vocabulário essencialista, ou do eterno, me senti pragmaticamente convencida da utilidade desta obra para a minha vida.
Plantar, de algum modo, ativa uma memória coletiva em mim guardada e não ensinada na esfera prática individual. As mulheres foram as primeiras agricultoras, sabemos disso. E existem muitos bônus ao nosso bem estar no cultivo: a germinação da planta tem seu tempo próprio. Ela me obriga a desacelerar minha ansiedade. Ela precisa de cuidados, sol, terra e água, numa certa medida. E ela é vulnerável: pode ser que algum fungo a ataque, ou um sol mais forte a resseque em demasia (e esse é um risco sempre possível em Teresina). É manifestação da vida-morte-vida, seguindo a linguagem de Estés. Numa outra linguagem: é terapêutica, palavra derivada do grego therapeutike, aquela que cura. Lá na minha infância eu já sabia onde procurar a cura.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Um pouco de música para hoje

Tem semanas que não posto, mas hoje trouxe dois presentes, duas músicas que andei ouvindo nos últimos dias. Um pouco de soul music e outro de pop experimental argentino: Al Green (com 'Let's stay together') e Rosario Bléfari (com 'Intactos'), algo como se uma garrafa solitária de conhaque se surpreendesse esquecida em um amanhecer numa praia frequentada por jovens veganas abstêmicas. Ufa!







Ps. Aqui a wikipedia sobre eles:
Al Green  --> https://es.wikipedia.org/wiki/Al_Green
Rosario Bléfari --> https://es.wikipedia.org/wiki/Rosario_Bl%C3%A9fari



segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Victoria Santa Cruz: Me Gritaron Negra

Outro dia, seguindo o rastro da dica de uma amiga no YouTube, terminei achando uma outra coisa, tão preciosa quanto a indicação dela: a artista peruana, Victoria Santa Cruz, declamando e cantando sua negritude.

Esse maravilhoso poema, que a própria artista interpreta, está no vídeo abaixo. É de arrepiar!  Arrepio vindo da força dessas palavras e desses corpos no vídeo em preto & branco. Arrepio porque esse conteúdo ecoa em parte esquecida da minha primeira infância. Ecoa aqui e agora, também.



Me Gritaron Negra

Tenía siete años apenas,
apenas siete años,
¡Que siete años!
¡No llegaba a cinco siquiera!

De pronto unas voces en la calle
me gritaron ¡Negra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!

“¿Soy acaso negra?” – me dije ¡SÍ!
“¿Qué cosa es ser negra?” ¡Negra!
Y yo no sabía la triste verdad que aquello escondía. Negra!
Y me sentí negra, ¡Negra!
Como ellos decían ¡Negra!
Y retrocedí ¡Negra!
Como ellos querían ¡Negra!
Y odié mis cabellos y mis labios gruesos
y miré apenada mi carne tostada
Y retrocedí ¡Negra!
Y retrocedí…
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Neeegra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!

Y pasaba el tiempo,
y siempre amargada
Seguía llevando a mi espalda
mi pesada carga

¡Y cómo pesaba! …
Me alacié el cabello,
me polveé la cara,
y entre mis cabellos siempre resonaba
la misma palabra
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Neeegra!
Hasta que un día que retrocedía,
retrocedía y que iba a caer
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
¿Y qué?

¿Y qué? ¡Negra!
Sí ¡Negra!
Soy ¡Negra!
Negra ¡Negra!
Negra soy

¡Negra! Sí
¡Negra! Soy
¡Negra! Negra
¡Negra! Negra soy
De hoy en adelante no quiero
laciar mi cabello
No quiero
Y voy a reírme de aquellos,
que por evitar – según ellos –
que por evitarnos algún sinsabor
Llaman a los negros gente de color
¡Y de qué color! NEGRO
¡Y qué lindo suena! NEGRO
¡Y qué ritmo tiene!
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO
Al fin
Al fin comprendí AL FIN
Ya no retrocedo AL FIN
Y avanzo segura AL FIN
Avanzo y espero AL FIN
Y bendigo al cielo porque quiso Dios
que negro azabache fuese mi color
Y ya comprendí AL FIN
Ya tengo la llave
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO
¡Negra soy!

Ps. E aqui uma wikipedia básica sobre Victoria: https://pt.wikipedia.org/wiki/Victoria_Santa_Cruz

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Bons encontros acontecem quando a gente sai da toca

Semana passada fiz uma das melhores coisas desses meses de crise depressiva: participei da "Oficina de Narrativas Breves", do escritor, promovedor cultural (agitado cultural, segundo ele), criador da Balada Literária: Marcelino Freire.

Numa sala com algumas participantes pela manhã e muitas pela tarde (sim, a maioria mulheres), durante uma terça e uma quarta, Marcelino contou suas histórias com Millôr Fernandes, Manoel de Barros, Raduan Nassar, deixando esta aqui que vos escreve en-can-ta-da. Depois nos propôs uma série de exercícios criativos, individuais e em dupla, para que soltássemos a imaginação e a escrita. Num dos jogos, inclusive, terminei ganhando um livro com o selo que Marcelino promove: Edith (adouro). É uma obra de contos, chamada: "Sem vista para o mar", de Carol Rodrigues, nascida no ano de 1985, por acaso, meu ano de nascimento. Sentir nisso uma deliciosa coincidência.

Durante a oficina, o pernambucaníssimo Marcelino, mesmo tendo saído da sua terra aos 3 anos de idade para viver em São Paulo, falou bastante de sua Sertânia. Defende que o escritor e a escritora precisam falar do seu próprio lugar, não importa sobre o que fosse falar. O lugar dele é a Sertânia que grudou no corpo dele, ainda criança e nos muitos retornos ao lar.

Disso e de outras coisas que ele disse, eu estendo que a escrita precisa ter alma e não só ser um amontoado de palavras gramaticalmente bem organizadas e rimadas. E alma musicada, heim! A música, eu acho que ela vem do nosso caminhar nas ruas, do sol da nossa cidade; tá na comida, nos cheiros da comida, das pessoas, dos lugares. A alma musicada parte da gente em relação com o mundo, que é única, o poeta, o escritor, é resultado de se querer apresentar essa relação única. Mesmo que se vá falar de outros lugares nunca pisados, de fantasias aparentemente distantes do nosso cotidiano, a alma musicada está sempre engajada com as vivências. É isso que contamina a palavra. 

"Contamina" é uma palavra que eu aprecio. Marcelino começou seus dois dias de provocação lúdica, fazendo uso de uma expressão bem melhor: o poeta inaugura o olhar. Eu gostei disso: o poeta inaugura o olhar.

Uma pessoa que tem Manoel de Barros como inspiração, só pode construir esse tipo de coisa bonita, né?

Obrigada pela troca, Marcelino! Qualquer dia apareço na sua Balada Literária.  ;)


Aqui o Marcelino proseando com a turma, no SESC-PI. (A Lara no primeiro plano)

E aqui o sarau na livraria Anchieta, pelo lançamento da Revestrés número 26. Marcelino Freire era um dos homenageados. Aproveitei e comprei o livro dele "Contos Negreiros", que foi prontamente autografado- já devidamente lido e, agora, recomendado.


Ps. Depois posto alguma coisa que comecei a produzir na oficina. =]

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Fotografia e/é arte: Lola Álvarez Bravo


Quando fui à exposição da Frida Kahlo em Brasília, alguns meses atrás, tive a oportunidade de conhecer os trabalho de outras artistas mexicanas, algumas contemporâneas da pintora. Além de quadros, haviam uma ou duas instalações e também fotografias e fotomontagens. Fiquei de ir atrás de conhecer melhor o trabalhos delas e a oportunidade surgiu hoje, quando meus sobrinhos encontraram o folder da exposição, por acaso (ou não), enquanto derrubavam meus livros. rs

Hoje apresento a Lola Álvarez Bravo, que era próxima de Frida e de Diego Rivera, tendo fotos dos dois em seu imenso acervo (para a época), inclusive foto da pintora em seu leito de morte. 

Em geral as fotos variam entre uma sensibilidade social, algo de surrealismo, mas um surrealismo imediatamente vinculado aos temas do mundo cotidiano. Surgem desde as pessoas mais simples, como os maravilhosos nus, todas em P&B. As fotomontagens, como esse trabalho que tá aí em cima do meu texto, foram uma das coisas mais especiais que encontrei nela.

O New York Times fez uma reportagem com um pouco do trabalho da Bravo, em uma edição de 2013, disponível on-line. Você pode encontrar aqui: http://lens.blogs.nytimes.com/2013/02/25/a-mexican-photographer-overshadowed-but-not-outdone/http://lens.blogs.nytimes.com/2013/02/25/a-mexican-photographer-overshadowed-but-not-outdone/ 

Espero que gostem.

El sueño de los pobres II

"Indiferença" ...
Os nus da Bravo são uma coisa linda. Só encontrei mulheres, inclusive grávidas.




Auto retrato


sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Vampira do X Men

não sei quanto tempo da minha vida passei me esforçando para me interessar pelas conversas das pessoas. em geral preferia meu mundo, que nem era só um mundo interior, não. era meu mundo e das coisas do mundo, não das pessoas do mundo. as pessoas do mundo, quando eram só meu mundo, eram como coisas.

no final das contas terminei me adestrando em parecer muito interessada e de fato até comecei a me interessar. ficava comovida da pessoa confiar seus pensamentos a mim, seus comentários, apropriados ou não. mas provavelmente a minha maior motivação tenha sido o fato de que aquelas conversas desinteressantes muitas vezes escondiam ou apontavam para algum tesouro.

de alguma conversa desinteressante poderiam surgir conexões interessantes em mim. e as pessoas de conversas desinteressantes conheciam outras pessoas com conversas muito mais interessantes. e assim eu seguia. 

o problema eram os efeitos colaterais. eram muitos. falo aqui de um. eu ficava cheia dos pensamentos, das idéias, dos gostos, das opiniões daquelas pessoas.

demorava um tempão para eu ser despossuída, como a Vampira dos X-Men, quando tocou no Wolverine. (ainda demora, mas menos).

hoje eu fico pensando se minha prima sem noção tinha razão em me chamar de autista (as crianças podem ser muito cruéis). e ela estando certa, não reclamo em absoluto hoje. se sou, faz parte da minha idiossincrasia. se não, também.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

sábado, 16 de abril de 2016

A fábula do santo e do passarinho azul


Um dia, andando pela floresta buscando inspiração, o jovem Giovanni di Pietro di Bernardone, que futuramente seria conhecido como São Francisco de Assis, encontrou um passarinho que chilreava baixinho, baixinho, em cima de uma pedra. Suas penas azuis pareciam folhinhas murchas, como se elas tivessem acabado de ficar sob a chuva. O estranho é que, olhando através das copas das árvores, Giovanni não viu qualquer sinal de nuvens no céu:
- Olá, senhor passarinho! O que houve que lhe deixou murcho de penas e de canto?- disse com bondade o rapaz.
- (Piiiu... Piiuu...) Amanheci com um profundo sentimento de solidão epistêmica, caro andarilho. Tentei explicar o que sentia ao primeiro rosto que me pareceu amigo aqui na floresta, e qual decepção não sofri quando ao dar a impressão que me ouvia, na verdade o dito amigo preparava um bote e, ai ai de mim, quase escorrego para o estômago daquele glutão!
- E quem era o amigo, meu caro?- perguntou o futuro santo, interessado.
-  (Piiu. Piiu!) Era o senhor Gato do Mato. Veja só: sei que parece imprudente minha atitude, agora que o senhor sabe de quais espécies se tratam. Mas compreenda que, junto ao sentimento de solidão epistêmica, paradoxalmente, me veio um ímpeto de que sim era possível ultrapassar o abismo dessa solidão no qual me encontrava, independentemente de com qual espécie eu me dispunha a dialogar.
- Sim, sim. É verdade, senhor passarinho, pois não estamos os dois aqui conversando?
- (Piu. Piu.) Isso é bem verdade. E até agora o senhor não tentou me devorar.
Após uma pausa constrangedora, o jovem disse num suspiro:
- Eu tenho um pensamento sobre a solidão epistêmica e gostaria de compartilhar com você. Esse é um sentimento de difícil expressão no mundo. A maior parte dos seres viventes (e talvez dos não viventes) nem mesmo se dá conta de que todos estão à mercê disso. No mundo humano da minha espécie, alguns grupos estão particularmente vulneráveis a esse fenômeno: as mulheres, as crianças, os indígenas, os idosos e aqueles que são chamados de loucos. O que eles falam tem o que chamamos de um status inferior, ou seja, não é levado a sério, sendo depreciado, ou mesmo ignorado, como acredito que tenha sido o seu caso.
- (Piu. Piu.) Na verdade, caro amigo, a coisa entre vocês parece mais grave do que eu imaginava, pois entre nós, os passarinhos azuis, sempre estivemos dispostos a ouvir e a perceber como relevante e bonita cada nota do canto do outro. Era uma das minhas maiores alegrias, aliás.
- Mas agora eu que não entendo, caro amigo. Por que então o sentimento de solidão epistêmica?
-(Piu...) Não percebe, meu senhor? Não existem mais passarinhos azuis... Todos um dia foram acometidos por esse sentimento de intensa solidão epistêmica compreendendo que conversar só entre nós, com o tempo, empalidecia nosso canto. Então, finalmente entendemos que havia todo um vasto mundo de amigos possíveis com os quais compartilhar nossa experiência de passarinho e receber de volta a sabedoria dos outros bichos. Até dos bichos da sua espécie. No entanto, todos tiveram o fim que eu teria hoje, caso o senhor Gato do Mato não tivesse ouvido seus passos na floresta. Pois os Gatos do Mato são assim: só se intimidam diante do fisicamente mais forte, fugindo. 
Depois de uma breve pausa para recuperar seu folegozinho de passarinho, chilreou num canto firme, um que Giovanni ainda não havia ouvido desde o início da conversa:
- (Piuuuuu. Piiiuuu.) Nós passarinhos azuis, contudo, sempre fomos até o fim quando se tratava das nossas disposições. Desse tipo de disposição que tomou a mim e a você nesta manhã.

Ainda naquele mesmo dia Giovanni saiu da floresta lamentando o fato dos passarinhos azuis já não mais existirem no nosso mundo. De fato tudo pareceu mais pálido, desde então.


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