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segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Narciso no mundo líquido





É uma peça quase invisível. Uma parede retangular de vidro, um espelho circular na parte de cima. Quem passa apressada, mal percebe que ali temos vidro e espelho e não apenas vidro. É arte, uma instalação e, como tal, pede desaceleração. Então eu desacelero. Mas isso não é suficiente, ela também pede interação.
A delicadeza do vidro parece um lânguido convite ao espelho em seu topo. Lembro que a obra se chama “Narciso”. Sinto-me provocada, rio sozinha, porque quero mesmo usar aquele espelho. Meus 1,56 m, contudo, não são suficientes para que eu tenha meu rosto refletido, afim de tirar uma foto. Observo o vidro, algumas pessoas passam por trás- existem árvores e um muro perto. O vidro é um espelho translúcido, por conta da poeira que acumulou durante o dia.  Penso que eu precisaria de um banquinho para conseguir fazer a foto usando o espelho e não o vidro.  Pensando bem, quase todas as pessoas que eu conheço precisariam de uma ajuda para se mirarem no alto daquele espelho. 

Fiquei a divagar. Qual o sentido de um espelho que não consegue refletir o rosto humano? Ele deixa de ser um espelho? O quanto seríamos capazes de fazer para finalmente conseguirmos nos ver por aquele espelho, ou em qualquer outro espelho? Por que precisamos nos ver em algum espelho, para começar? O que não queremos deixar escapar? O nosso olhar? O olhar do outro, fantasiado, imaginando como parecemos a esse outro? Temos que parecer bem? O que “Narciso” tem a nos dizer? Somos iguais ao Narciso da lenda e, logo, compartilharemos seu trágico destino? É um alerta? Um jogo? Uma provocação?

Enquanto o vidro me permite o acesso visual ao outro, que passa, o espelho me dá o acesso visual ao meu eu físico. O outro e o eu deveriam estar ali (vidro e espelho), mas o outro é bem mais presente por meio das pessoas que aproveitam o espaço do parque. Ainda que apressados e, portanto, indiferentes à relação que ali estava se estabelecendo (eu, o espelho, o vidro, os outros). 

O eu está se fazendo de difícil, quase inalcançável. Se finalmente o alcanço, tenho minha imagem acima dos outros. Era isso que eu queria? Por certo, algum prazer teria ao conseguir alcançar o espelho circular. E se eu não alcançasse? Teria que haver algo para além do meu eu refletido de, que indicasse minha existência. O mundo da imagem, das selfies, das miragens me aceitaria?

Consegui, na ponta dos pés, fazer uma foto das minhas mãos segurando o celular na frente do espelho. Acho que garanti minha existência no mundo líquido, de espelhos e de vidros.




sexta-feira, 2 de setembro de 2016

O fluxo e o riacho


And nobody knows, so still it flows,
That any brook is there;
And yet your little draught of life
Is daily drunken there.

flow (quando tirei esta foto eu já estava em fluxo, o que foi uma pena)

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Átomos do Anjo de Paul Klee: Fabiano




Angelus Novus- Paul Klee


Se Fabiano foi arranjo dos átomos do anjo de Paul Klee, posso imaginá-lo como anjo do povo mineral. Mas não parece distante aquela seca da primeira metade do século XX, destruidora de homens, mulheres, crianças, bichos e plantas. É um preço alto da renovação do nordeste. Vida e morte, morte e vida, sem entremeios. Fabiano, quase um ser bruto, mas bruto de sentimentos não extravasados, que, não tendo outro modo de transmutá-los em fala e criação, escorrem-lhe pelos poros e fazem grudar a poeira do éden que lhe foi destinado. Gruda na garganta, o que não lhe permite denunciar o que só sente; seu corpo pressente que o estado em que se encontra, e, sua família, e, sua cachorra, não foi fruto de um Deus misericordioso como lhe ensinaram.

A renovação é mito ultrapassável, por enquanto, só pela morte, mas quem sabe, um dia, ela não será mais necessária para os trâmites terrestres- ouviu um assobio de pássaro, certa vez, confirmar que, noutras terras, a paga já não era mais tão necessária e que o homem (e a mulher, certamente), já inventou meios de não lhe pedir sua vida, ou dos filhos, ou da cachorra e até das plantas da caatinga, para o procedimento.


Fabiano a a cachorra Baleia
(Morte por holocausto, sa-cri-fi-ci-o, parece ter sido o preço cobrado, até aquele exato instante, por cada sopro daquela tempestade, que também embasbacou o anjo de Klee, a tempestade do progresso, veja bem.)

O vento e a areia que aderiram ao pêlo e à pele da família de Fabiano. Família que era extensão de um sentimento de cada um, ou algo anterior ao sentimento e posterior ao presságio já dito. A quem ouvir os olhos do anjo de Klee, a quem tocar as sílabas caídas, mal articuladas do bruto anjo Fabiano, terá posse mesmo da senha para o que vem, que, contudo, não é segredo, posto que os anjos sofrem de onipresença (assim como Fabiano) como Quem os criou, logo, basta saber ler “Os que têm olhos para ler, que leiam”.

Ainda nesse estado de coisas, sabe-se que Fabiano persiste em átomos sobre os átomos nas esperanças que escaparam fora da moldura do quadro de Klee.

E esses átomos contaminam a todos que pisam com os pés descalços a terra de Fabiano, que é toda terra que a lua bate de crescente, porque crescente é ter futuro e os átomos de Fabiano bem sabem o que estavam a procurar. Por isso, resolvi aceitar que pisei esse mesmo chão e, por isso, sofro de alguma fabianice e talvez você também, ainda que faça essa cara de engrenagem satisfeita na máquina que os ventos da tempestade criou- a tempestade criava, a despeito de tudo.

Mas trabalho de criação mesmo é tentar esticar e retecer as esperanças, nem sequer articuladas, do pobre Fabiano dentro de mim- só posso falar de mim, mas fico torcendo para que você esteja chegando a mesma conclusão ou, pelo menos, parecida. Retecer o não dito, mas sentido e sofrido até. Você pode não lembrar, mas sobre esses retecidos se construíram muitos desses edifícios, com cubículos, onde estamos armazenados para comentar as notícias que saíram no site, enquanto nos interrompemos para uma selfie.

Fabiano nunca foi interrompido por uma selfie- talvez, se tivesse tentado, jamais teria alcançado a série #selfie assim, meio derretida, sem olhos nem boca que o identificasse. Ou teria, já que #selfie é em desfeito de selfie, uma abertura, um buraco, possível saída cheia do infinito que coube ao Fabiano e a mim e se você quiser a você, também, linhas sem fim para o tecer futuro. A pedra bruta da alma dele, do Fabiano, contudo, já havia nos cravado alguma trilha no neon das estrelas do céu da caatinga que lhe emprestaram, era um negativo cuneiforme, tatilforme do porvir. As instruções estão lá: imite as asas na mão, como o Angelus Novus, para traduzir e não se espante se logo em seguida esse céu desmontar em blocos, em pedaços de quebra- cabeça como o chão rachado em tempos de seca. É assim, mesmo.

#selfie o A. Gonçalves

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Átomos do anjo de Paul Klee




Vez ou outra eu passo uns momentos meditando sobre alguma pintura, uma frase que me chamou a atenção de um autor que eu gosto. Ontem foram os rabiscos do André, obra que acompanho e que em geral, gosto. Rabiscos de sombra e de luz. Obra de arte é boa para se perder em devaneios e fazer conexões.

Olhando os rabiscos lembrei do anjo do Paul Klee.O anjo do Paul Klee que Benjamin tanto gostava. Aquele Angelus Novus era um anjo feio. Cabeça grande, braços/asas pequenos, pele amarelada. Será que era um anjo? Eu lembrei de Fabiano, das Vidas Secas de Graciliano. Fabiano quase não falava. O anjo do Klee também não fala. Parece que têm algo em comum. Mas isso fica para depois. Por enquanto: o anjo do Klee. O anjo afastava-se de algo que lhe capturava o olhar, olhava assim de soslaio, parecia com medo. As asas tesas, os pés, que mais parecem pés de galinha que cisca. O anjo de Klee viu algo que fez com que se sujasse de uma lama que ressecou suas asas e seus pés de galinha que não ciscam mais. Não era uma lama irmã da sujeira que Manoel de Barros me fez amar, era a lama que se formou de uma tempestade futura. A lama agora compunha a pele e as asas não mais funcionais do anjo bidimensional. Seus olhos se fixaram eternamente na tempestade que viria a lhe constituir. Klee era o profeta de Benjamin (e Benjamin se tornou o de muitos).
 
Das fotos do André, eu me detive na série mais recente #selfie e nas últimas d'[os rostos]. Fiquei pensando na ironia da sugestão. Não há selfie, não há o rosto do fotógrafo ou de quem quer que seja. Se a selfie deve mostrar o rosto de quem fotografa, a série [os rostos] poderia mostrar: rostos. Pelo menos é o que o tema leva a supor. Por trás da selfie não há rosto e na [os rostos] também não há rosto.
Imagino-me realizando o seguinte processo. Abro o instagram, viro a câmera para o módulo de selfie e, pronta para a próxima hashtag que me garanta algumas visualizações: tiro a foto. Mas não há um rosto, o meu rosto. Pele negra, traços de uma mistura indígena, negra e de algum carcamano renegado, algum europeu periférico, olhos grandes e castanho escuros, cabelos ondulados, da mesma cor. Foi assim que acostumei a me ver. E maquiagem, quando quero. Mas o que tenho de mim é um borrão, como no filme “O chamado”. Ou algo que derrete na horizontal como o rosto dos "Os amantes" de Magritte. Penso que é um problema da câmera ou do aplicativo (app). Retorno ao módulo normal da câmera e decido ir a um espelho tirar uma estilo old school do insta. Sim, já se sabe. Não há rosto. Eu duvido muito que estaria aqui digitando tranquila se isso tivesse acontecido. Estaria desesperada.
Benjamin também escreveu sobre as primeiras décadas da descoberta mais amada das nossas tecnologias atualmente compartilhadas: a fotografia. Falou também sobre fotografias em velocidade que viraram o nosso cinema e que deram ideia para outras tantas coisas depois. Meditou sobre a perda da “aura” da obra de arte com o efeito quantidade e velocidade da fotografia em relação ao quadro pintado, à escultura e até em relação à arquitetura. Estávamos começando uma relação intensa com o mundo agora fixado em objetos e seres fotografados. Com a revolução trazida pelo smartphone, cada uma e cada um passou a uma relação ainda mais próxima. Eu havia escrito simbiose aqui na versão anterior do texto, para descrever o processo, mas simbiose é uma troca positiva. Algo próximo ao parasitismo talvez nos explicasse melhor. E, bom, não é o parasitismo do celular em relação a nós.
Volto ao anjo do Klee. O anjo não é anjo: não é belo, está sujo, olhar vidrado, não voa mais, não canta "hosana nas alturas". É a sombra de um anjo. Mas foi meditando sobre o anjo que Benjamin achou que Klee antecipou algo do século que passou: a tempestade de areia era um certo tipo desastroso de progresso. No meu caso, eu acho que essas duas séries do André não antecipam nada. Não depois do século XX. Não nesse meu texto. Agora não há mais o passado, o presente e o futuro como no tempo de Benjamin. São todos simultâneos, misturados, sobrepostos, escorrem entre si. Fractais de tempo. Detox de tempo. A selfie some na #selfie, justo ela, que parecia ser nosso aconchego, nossa marca. Tentativa de segurar nas bordas da roda louca que gira. Que sobe, que desce, que revolve o fundo de coisas que pareciam esquecidas. As duas séries que nada dizem estão plenas do vazio que a arte pede, mas um vazio que já está imediatamente atravessado por aquelas fractais. Parece que gera um eco que carrega átomos fantasmagoricamente rearranjados daquele anjo de Klee.
[continua]


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